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    Ilustração: Carvall

questões da pobreza

O menino parteiro

Garoto de 11 anos ajudou nos partos de três irmãos; família de sete crianças, a oitava a caminho, não conseguiu Auxílio Brasil porque mãe não tem documentos

Elvira Lobato | 30 jun 2022_08h01
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Kauã

Kauã Guilherme de Assis tinha 8 anos de idade quando auxiliou um parto pela primeira vez. A mãe, Suelen Paulino de Assis, deu à luz no quintal de casa, ao lado do valão por onde corre o esgoto do bairro da Posse, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. “Me lembro bem. Era aniversário do meu irmão Caio. Comemos bolo e cantamos parabéns. Meus irmãos foram dormir e eu fiquei acordado, brincando com uma vizinha no quintal. Minha mãe começou a sentir dor e foi caminhar. Quando ela chegou perto do valão, a cabecinha dele começou a sair. Ela me disse que o bebê estava nascendo. Pensei que fosse brincadeira. Peguei panos, ajudei a puxar a placenta e limpei o bebê.”

O bebê, o quinto filho de Suelen, hoje tem 3 anos e se chama Allyson Victor. Um ano depois, Kauã socorreu novamente a mãe, que havia se separado do pai de Victor e vivia com o novo companheiro, que também estava presente na hora do parto. A família continuava morando ao lado do valão. O bebê, Kauê, nasceu dentro de casa e agora tem 1 ano e 9 meses. “Minha mãe estava na cozinha, com um espelho, vendo o bebê sair, e tinha muito sangue. Segurei o espelho, peguei pano e água da bica da cozinha”, conta o parteiro improvisado. 

— Você ficou vendo ele nascer?

— Fiquei.

— Não ficou assustado?

— Não. Fiquei com um pouco de medo de deixar a placenta cair no chão. O ex-marido dela pegou o bebê e deu pra ela.

 

O terceiro parto assistido por Kauã aconteceu há nove meses. O bebê, Anthony, é filho do atual marido de Suelen. Nasceu aos sete meses de gestação, mas recuperou-se bem. Está gordinho e com aparência saudável. “Não me lembro de muita coisa. O pai dele que ajudou mais. Eu o segurei, assim que ele nasceu. Ele não conseguia respirar, e minha mãe virou ele um pouco. Eu e meu irmão Caio saímos para pedir ajuda dos vizinhos para levar eles para o hospital.”

O menino diz que não ficou nem emocionado nem nervoso ao ver os irmãos nascerem. “Fiquei normal.” Sobre ser pai um dia, diz que não quer: “É muita responsabilidade.”

Kauã ainda não completou o 4o ano do Ensino Fundamental, mas tem boas noções de higiene e cuidados de recém-nascidos. Disse que tomou o cuidado de lavar e desinfetar as mãos com álcool antes de pegar os bebês, no que foi orientado pela mãe. Também descreveu com detalhes a aparência da placenta, que, segundo ele, tem formato de um saco. Ele segurou a placenta em um dos partos, enquanto o pai entregava o recém-nascido à mãe. O menino contou que os bebês foram para o hospital com umbigo preso à placenta para evitar infecção. “Se cortar o umbigo em casa pode pegar bactéria”, acrescentou.

A mãe confirma que o garoto participou ativamente dos três partos. Perguntada sobre se não teve receio de dar à luz em casa com ajuda de uma criança, respondeu que só sentiu medo na primeira vez, quando ela própria não sabia como proceder, e que descobriu sozinha que precisava puxar a placenta após a expulsão para passar a dor. “Perdi o medo nos outros partos.” Para ela, Kauã mostrou maturidade que muitos adultos não têm. “Um primo dele de 18 anos estava na casa, em um dos partos, e saiu correndo.”

As experiências obstétricas não inspiram Kauã a se tornar médico ou enfermeiro. Apaixonado pelo Flamengo, sonha em ser jogador de futebol profissional. Treinava em uma escolinha de futebol no bairro da Posse, mas parou quando a família se mudou para Vila de Cava. A mudança de bairro também fez com que ele interrompesse os estudos no 4o ano. 

Kauã é um garoto bonito e gentil. A mãe diz que sua maior preocupação é manter o filho afastado do tráfico de drogas e dos roubos. “Um dos meus ex-maridos foi assassinado. Não escondo a realidade dele”, acrescenta. Prefere manter o menino dentro de casa, por temer que se envolva com a criminalidade nas ruas.

 

Suelen

As façanhas de Kauã como parteiro são só uma parte da história de sua família, exemplo da pobreza estrutural no Brasil. Os Assis moram em Nova Iguaçu, no bairro de Vila de Cava, a 53 km do Centro do Rio de Janeiro e a cerca de 70 km da residência do presidente Jair Bolsonaro, na Barra da Tijuca. Todas as crianças da casa estão fora da escola. A mãe, Suelen Paulino de Assis, passou metade dos últimos doze anos grávida. E a outra metade amamentando e lutando para alimentar os filhos. Prestes a completar 28 anos, está na oitava gravidez e no sexto casamento. 

Suelen não tem documentos. Perdeu todos em um momento de desespero, quando buscava socorro médico para um dos meninos que havia introduzido um grão de feijão no ouvido, que infeccionara, e gritava de dor. Por não ter documentos, diz que está sem receber o Auxílio Brasil.

A família mora em uma casa de cinco cômodos, sem janelas. Todos os móveis foram doados pelos vizinhos. A geladeira e o fogão foram emprestados pelo proprietário do imóvel, que cobra 300 reais de aluguel por mês. 

Nos anos 1970 e 1980, Vila de Cava ficou conhecida como área de desova de cadáveres de esquadrões da morte que atuavam na Baixada Fluminense. Foi urbanizada aos poucos. Apesar de precária, não é favela. Não se veem pessoas com armas à mostra nas ruas, como em muitas regiões controladas pelo tráfico. As casas são de alvenaria e as ruas, asfaltadas. Moradores informam que as milícias controlam parte dos serviços de tevê por assinatura, venda de gás de cozinha, de terrenos e de imóveis de baixa renda. Placas nos postes oferecem 140 canais de tevê por 39 reais ao mês. Segundo a secretária municipal de Assistência Social de Nova Iguaçu, Elaine Medeiros, a miséria na região aumentou muito com a pandemia. Há 15.585 famílias de Vila de Cava em extrema pobreza inscritas no Cadastro Único dos programas sociais do governo federal. O bairro tem cerca de 70 mil moradores.

 

Suelen é a caçula de seis irmãos (cinco mulheres e um homem). Moravam ao lado do valão, no bairro da Posse, em Nova Iguaçu. Nos períodos de chuva, o valão vertia e enchia a casa de lama, lixo e água podre. O pai, analfabeto, não registrou os filhos. Ela só lembra o primeiro nome dele: Ailton. Diz que conheceu a fome na infância, e que muitas vezes a família catava inhame nas margens do valão para comer. “A imagem que guardo é de uma mãe guerreira e um pai fracassado”, afirmou. 

Com a morte da mãe, foi acolhida pela irmã mais velha. Na escola, tinha muita dificuldade para aprender e repetiu de ano várias vezes. “Não sei o que se passava na minha mente. Não conseguia gravar as coisas.” Parou de estudar na 5a série, quando teve o primeiro filho. Tinha 16 anos. O pai seria um traficante que a teria enganado dizendo que estava no Exército. Mal chegaram a morar juntos. Suelen voltou grávida para a casa da irmã. O primeiro filho, Kauã, foi registrado apenas por ela, sem identificação de paternidade. A mãe diz que o garoto rejeita o pai. O menino assente com a cabeça.

O segundo filho, Caio, nasceu dois anos depois. Nesse período, Suelen trabalhou sem carteira assinada em uma padaria do bairro e recebia o Bolsa Família. O novo marido também tinha um filho, e a família foi morar na casa deixada pela mãe dela ao lado do valão. Suelen estava grávida quando o então companheiro foi preso. “Era foragido, e eu, muito bobinha, não sabia de nada. Tinha matado o amante da ex-mulher a tiros, em São João de Meriti (município vizinho, na Baixada Fluminense) e fugido para Nova Iguaçu.” Tempos depois, ele foi solto por falta de provas do assassinato, mas ela já estava em outra. A fila tinha andado para ela, mais uma vez.

Com o marido seguinte teve os filhos Alana Victória (6 anos) e Alan Gabriel (5). Morreu assassinado no dia 7 de setembro de 2017. Teria hoje 32 anos. “Ele se envolveu com quem não devia. Roubava de tudo: caminhão de gás, lojas. Era bom pai, mas fazia besteiras fora de casa. Um garoto o chamou no portão e ele disse que iria fazer uma cobrança. Pressenti que alguma coisa estava errada, e pedi que me desse a chave do carro.” Suelen diz que sabia o que ele fazia. “Ele me dizia que o sonho dele era ter uma família. Estava com o sonho realizado, mas saiu para assaltar de novo. No dia seguinte, reconheci o corpo dele numa foto que estava circulando nas redes de WhatsApp. Foi morto a tiros. Me disseram na época que foi a milícia. Esmigalharam a cabeça dele. Tinha um sorriso lindo, e todos os dentes foram quebrados.”

Os meses que se seguiram foram muito difíceis para Suelen. Ela perdeu os documentos em uma enchente e, sem documentos, foi-se o Bolsa Família. Fazia biscates, limpava a sujeira deixada pela feira livre em troca de legumes e frutas dados pelos feirantes, e ganhava cesta básica mensal da paróquia da Posse. Com ajuda da Pastoral da Criança, refez os documentos e voltou a receber o Bolsa Família.

Seis meses depois do assassinato do ex-companheiro, se envolveu em novo relacionamento com um rapaz dois anos mais velho, trabalhador terceirizado em uma empresa de sinalização de ruas. Ela deixou a casa do valão e foi morar com ele no bairro do Areal, também em Nova Iguaçu. Ele passou a sustentar a família, e Suelen engravidou do quinto filho: Allyson Victor. Foi o primeiro irmão que Kauã, o primogênito, ajudou a pôr no mundo.

Um dia, o marido chegou bêbado em casa e agrediu Kauã. Suelen saiu de casa com os filhos e a roupa do corpo, mas acabou voltando. Quando o ex-companheiro começou a roubar, separaram-se de vez.

Quatro meses se passaram e Suelen iniciou novo relacionamento, que resultou no sexto filho. Mas os dois se separaram assim que o bebê, Kauê, nasceu. Foi o segundo parto assistido por Kauã.

 

Patrick

Suelen tinha dado à luz ao sexto filho havia apenas um mês quando conheceu o atual companheiro, Patrick de Souza. Aos 18 anos, o rapaz assumiu a responsabilidade pela família. Registrou o recém-nascido como se fosse filho dele. O pai biológico não fez objeção. Patrick trabalhava como ajudante de pedreiro e morava com a mãe, no bairro de Vila de Cava, também em Nova Iguaçu. Alugou no mesmo bairro uma casa para morar com Suelen e as crianças.

Kauê não havia completado um ano quando Suelen engravidou pela sétima vez. O bebê, o primeiro dela e de Patrick, nasceu prematuro e se chama Anthony Gabriel Assis de Souza. Foi o terceiro parto auxiliado por Kauã.

Patrick tem três irmãos e conta que se criou sem a presença de pai nem mãe em casa. A mãe, faxineira, estava sempre fora. Do pai ele não tem notícias há dezesseis anos. Ainda criança, levado por uma tia, começou a frequentar os cultos da Assembleia de Deus. Agora, todos os domingos, é ele quem leva Suelen e as crianças à igreja. Diz que os evangélicos o orientaram a ficar longe do tráfico de drogas e que sustenta a família como camelô nas ruas do Rio de Janeiro. Afirma que seus dois filhos biológicos com Suelen (Anthony e o bebê que ela carrega no ventre) vieram por opção e que não teme a responsabilidade de ser o único provedor da casa.

“Estudei até a 8a série. Vi que não conseguiria entrar para o quartel e não tinha por que estudar mais. O principal eu já sei. Agora é trabalhar. Quando conheci a Suelen, vi que ela precisava de muita ajuda. Falei para ela: ‘Vamos à luta? Você quer lutar comigo?’ Ela respondeu que sim, e eu disse: ‘Então vamos lutar juntos.’ A primeira coisa que fiz foi tirá-los da beira do valão, porque não adianta comprar coisas para a enchente levar.”

Patrick sai de casa às 6 horas e não tem hora para voltar. “Vendo aipim (mandioca) como camelô na Tijuca (bairro da Zona Norte do Rio). Quando o fornecedor não me entrega o aipim, vendo doces, panos de chão, tapete, esponja no Centro do Rio e em Niterói. Só não trabalho aos domingos. Minha maior preocupação é não ter dinheiro para comprar remédio quando as crianças ficam doentes.” De vez em quando, consegue comprar carne. “Em vez de gastar o dinheiro que eu ganho em bebida, compro comida.”

O rapaz conta que muitos de seus amigos ou parentes se envolveram com o tráfico e morreram. Diz que a vida no crime nunca o atraiu. “O poder e o dinheiro do tráfico não enchem os meus olhos. Do que adianta ter carro, dinheiro e mulheres, e morrer amanhã? Melhor trabalhar honestamente.”

Juntos há 20 meses, Patrick e Suelen aguardam a chegada do próximo bebê, que se chamará Artur Assis de Souza. Suelen está no quinto mês de gestação. O parto está previsto para outubro e ela planeja ligar as trompas. Mas, para realizar o sonho, tem de dar à luz no hospital.

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