Em Desnecessidade da Inteligência, Paulo Emílio Sales Gomes escreveu: “Se tomarmos […] o cinema como conjunto inseparável de inumeráveis atividades diversas e se o examinarmos historicamente, é bastante provável que encontraremos muito mais inteligência mobilizada nos campos da indústria e do comércio do que no plano da criação artística e da atividade intelectual que a critica.”
Nesse mesmo artigo, de 1963, Paulo Emílio escreve ainda: “Tudo ocorreu como se durante algumas décadas a criação cinematográfica negligenciasse a destreza intelectual indispensável à literatura romanesca e teatral. […] Ao fato intrigante da desimportância da inteligência devemos a surpresa com laivos de decepção que nos causa o conhecimento pessoal de grandes homens do cinema, como Pabst, Renoir, Pudovkin, Stroheim, o maior deles, e certamente, o menos inteligente.”
Paulo Emílio se refere ao período da história do cinema anterior à Segunda Grande Guerra, como ele a denomina, deixando claro que a “pouca inteligência na criação cinematográfica durante tantas décadas era expressão de desnecessidade e não de mediocridade. Não influiu na qualidade artística dos filmes. […] Procura-se levar a sério alguns instantes de maior vivacidade num panorama tradicionalmente medíocre mas se vislumbra a mágoa provocada pelo divórcio profundo entre os espíritos mais altos do século e as coisas do cinema. […] o fato de um Eisenstein ou um Orson Welles aparecerem, devido à qualidade rara de seus cérebros, como figuras excepcionais no mundo dos criadores cinematográficos, não invalida a obra de outros vinte ou mais nomes que lhe são artisticamente equivalentes”.
A lembrança de Desnecessidade da Inteligência, do qual fiz uma síntese aqui no site em 2010, foi despertada depois de assistir a O Mês Que Não Terminou, de Francisco Bosco e Raul Mourão, documentário que estreou ontem na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e terá mais duas sessões, uma hoje, outra na sexta-feira, mas ainda não tem data de lançamento comercial acertada.
A overdose de inteligência em cada um dos 104 minutos de O Mês Que Não Terminou me levou a questionar se, na atualidade, mais do que nunca, o cinema seria o meio adequado para reflexões intelectuais de envergadura. Ou, em outros termos, a perguntar: cinema e inteligência são compatíveis?
Ao comentar as transformações ocorridas no cinema com o advento das tecnologias digitais, Francesco Casetti, professor de cinema e mídia na Universidade Yale, escreve que “uma plateia concentrada assistindo [a um filme] não pode mais ser considerado algo [que esteja] garantido; pelo contrário, o ato de acompanhar um filme é uma ação cada vez mais solitária e superficial. Exagerando só um pouco, poderíamos dizer que o desaparecimento do escuro [da sala de projeção] pode sinalizar a dissolução da própria experiência cinematográfica […].
Nas páginas de The Lumière Galaxy – 7 Key Words For The Cinema To Come (New York: Columbia University Press, 2015, sem edição no Brasil), Casetti diz ainda, em resumo, que “nesta etapa de sua história, o cinema se torna mais inconsistente e mais leve. […] torna-se mais acessível, factível e polimorfo, […]. Leveza e reinvenção: se o cinema persistir entre nós, essas são as condições para que isso aconteça. Por um lado, […] a permanência do cinema nada mais é do que o adiamento desesperado do seu fim. Sua história, que reescrevemos para criar algum senso de continuidade, parece a última vontade e o testamento. O cinema é um objeto póstumo. De outro lado, o cinema se desloca para [novos dispositivos] com intuito de finalmente descobrir sua identidade completa. Torna-se diferente para se encontrar melhor. Ao reconhecer sua presença com nova aparência – ou melhor, reinventando-a assim como à sua história –, chegamos mais perto de sua verdade. O cinema ainda é um objeto a ser descoberto”.
Se admitirmos que a inteligência não é indispensável para criar filmes, como Paulo Emílio escreveu, e concordarmos que o cinema contemporâneo vem se tornando cada vez mais inconsistente, leve, acessível, factível e polimorfo, conforme os termos de Casetti, como devemos avaliar O Mês Que Não Terminou?
Bosco e Mourão propõem desvendar a origem das manifestações de junho de 2013 e os desdobramentos nos anos seguintes que culminaram na eleição de 2018, em que 57 milhões de votos foram dados a um capitão reformado do Exército, veterano deputado federal de extrema direita, notoriamente despreparado para ser presidente da República.
A relevância do tema é inquestionável, mas a dificuldade na tarefa de dar conta em um filme do que nos levou ao resultado da eleição presidencial e suas desastrosas consequências é diretamente proporcional à sua importância. Para agravar o desafio, os diretores recorreram a uma narração quase ininterrupta que, apesar de engenhosa, é difícil assimilar, mesmo Fernanda Torres se revelando excelente narradora. A esse comentário perpétuo em voz off são entremeadas entrevistas de intelectuais brilhantes, homens e mulheres – professores, economistas, filósofos, psicanalistas, cientistas políticos etc. Como é cada vez mais usual no cinema documentário, porém, tamanhas demonstrações de inteligência, quando reduzidas na edição a umas poucas frases espalhadas pelo filme, perdem valor e terminam ficando diluídas.
Distribuídos ao longo de O Mês Que Não Terminou, alguns vídeos de artistas conceituados e um acervo de cenas de arquivo, composto em grande parte de fotografias, completam o filme. O resultado é um documentário essencialmente oral, no qual, excetuadas as contribuições de videastas, a imagem é subordinada ao áudio que, devido à fartura, torna-se de difícil assimilação.
Entre texto e filme, visto cada vez mais de forma pouco concentrada, há um abismo em termos de profundidade e alcance difícil de vencer. Quanto mais inteligente a expressão verbal, maior a dificuldade de ajustá-la à inconsistência, leveza e acessibilidade que, nos termos de Casetti, tornou-se característica dominante do cinema contemporâneo, mas que, na verdade, sempre existiu.
No caso de O Mês Que Não Terminou, como acontece em muitos filmes, cinema e inteligência comprovam ser incompatíveis. O acúmulo excessivo de inteligência prejudica os objetivos do documentário. Junho de 2013 e o fortalecimento da direita permanecem como enigmas a serem decifrados, ao menos no que diz respeito às abordagens em filmes brasileiros.
No final do artigo Desnecessidade da Inteligência, Paulo Emílio indica que em algum momento depois do fim da Segunda Grande Guerra “o que ocorreu […] foi parte de um acontecimento muito mais geral, a inelutável irrupção da inteligência na criação cinematográfica”. Confirmando sua atração pelo paradoxo, ele publicou na semana seguinte Gosto pela Inteligência, no qual começa afirmando que “apesar de não a possuir no grau que me conviria, sempre gostei muito da inteligência”, e termina dizendo que “da necessidade da inteligência é tema que exige reflexão suplementar”.
A peculiaridade de O Mês Que Não Terminou é demonstrar que a “irrupção da inteligência”, mesmo quando excessiva, pode não excluir certa falta de inteligência.
Do excesso tratei acima.
Quanto à falta, neste caso ela se revela na escolha da forma convencional desgastada – a do documentário narrado em off com depoimentos de luminares intercalados. Ou seja, na ausência de uma solução narrativa própria, equivalente às contribuições videográficas incluídas no filme e adequada ao tema focalizado.