Ele estava de terno naquele estilo de sempre, uma elegância urbana à antiga moldada por calça social, sapato e paletó de tweed. A livraria Duas Cidades, no Centro de São Paulo, estava lotada. Eu tinha 28 anos e acabara de me mudar de Porto Alegre para São Paulo e era, como tantos outros, apenas mais um na fila naquele sábado de sol de 2002. Fui com um grupo de amigos poetas mostrar nossa revista de poesia, a Cacto, ao grande mestre. Quando chegou a minha vez, ele pegou a revista, folheou com gentileza e, ao ouvir meu sobrenome, parou a fila de autógrafos por alguns minutos para tecer uma série de comentários eruditos a respeito do meu sobrenome judeu-russo.
A gentileza, joia rara, chamava a atenção desde o primeiro contato com Antonio Candido de Mello e Souza, o crítico literário que morreu na noite desta quinta-feira, dia 11, aos 98 anos. Ele tinha um quê de nobreza antiga, ou daquilo que costumamos projetar – pés-rapados que somos – como atitudes da nobreza. Uma balela, claro. Os aristocratas “de sangue” são dados às maiores bandalheiras, vide literatura libertina ou desejos mais ou menos iletrados.
Candido, não. Ele falava baixo e claro, ouvia o interlocutor, memorizava seu nome, dava a graça de fazer alguns comentários generosos. Se comigo foi assim nos dois ou três encontros que tivemos, posso imaginar o tipo de memória que seus alunos, a geração de professores que conviveu com ele, os críticos ou apenas os leitores mais fiéis que assistiram às suas aulas devem ter acumulado ao longo de todos esses anos.
Mas essa gentileza era apenas uma fração, visível a olho nu, de uma empreitada maior. A obra de Antonio Candido, esse manancial de crítica literária atravessada por um país injusto com o qual o mestre nunca se conformou, é uma lição de agudeza e urbanidade, espírito inquisitivo e delicadeza, originalidade e leveza. Qualquer leitor que tenha entrado em contato com alguns de seus textos, hoje absolutamente centrais da experiência crítica brasileira, como “Dialética da malandragem”, “De cortiço a cortiço”, “Esquema de Machado de Assis”, “Inquietudes na poesia de Drummond” e muitos outros, saiu da leitura entendendo muito melhor sobre os livros e autores em questão – graças ao estilo límpido de conversa civilizada – e com uma ideia mais afinada de nossos descompassos como nação.
Se isso já é dominante nos ensaios avulsos compostos ao longo de uma intensa carreira, uma obra publicada na casa dos 40 anos, Formação da Literatura Brasileira (1959), ainda hoje o texto mais influente dos estudos literários brasileiros, alimenta e problematiza essa leitura de lente aberta. E carrega embutida toda uma teoria que iria irrigar outras manifestações do nosso pensamento. Inscrito numa tradição já respeitável na América Latina do ensaio de formação nacional – como Facundo, Os Sertões, Casa-Grande & Senzala entre outros –, o livro de Candido difere destes por eleger um aspecto em particular: a literatura produzida aqui, “esse galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”, como escreve.
Candido toma um largo desvio do antigo caráter autocongratulatório de muitos compêndios que examinam a tradição literária, projetando, por meio do conceito materialista de “formação” (que daria muito pano pra manga nas décadas seguintes), o caráter ainda precário e em evolução (com todas as aspas do mundo aqui, por favor) da nossa sociedade.
Como em todos os outros textos que viriam depois, o autor nunca esmaga o leitor com teorias ou discursos arcanos. A tônica é sempre o diálogo, a boa conversação – essa arte quase perdida –, a clareza expositiva do professor tarimbado e generoso.
Invejo demais as sucessivas gerações que puderam assisti-lo em plena ação na USP. Parece ingênuo – ou pueril – evocar esses traços na hora em que o mestre se vai. O necrológio é gênero dos adjetivos doces e do juízo crítico em pausa. Porém, no caso de Antonio Candido de Mello e Souza, lembrar de sua generosidade e de sua gentileza é entender melhor não só a pessoa que muitos tiveram o privilégio de conhecer, ainda que superficialmente, mas um estilo, uma leitura, e um tipo de país que estamos sempre a projetar, embora pareçamos tão longe disso tudo ainda.