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O mínimo e o justo

Menos Estado gera mais justiça social?

Fabiana Moraes | 16 set 2018_08h00
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José Moura, 68 anos, aposentado, soube há quatro meses que tem Mal de Parkinson. Começou o tratamento público no Hospital da Restauração, Recife. Na segunda consulta, foi atendido por uma médica que, irritada, tratava os doentes aos gritos, avisando a todos que votaria no candidato ex-militar “para finalmente mudar aquela situação”. Persuadia seus pacientes a fazer o mesmo. Na terceira consulta, José, que é meu padrasto, voltou cedo para casa: a médica faltou e nenhum outro profissional poderia atendê-lo. Para ele, 937 reais mensais de aposentadoria, o Estado é mínimo.

Severina Maria, 41, agricultora, vive no Sítio Rafael, Zona Rural de Caruaru, no agreste pernambucano. Durante mais de vinte anos, ela foi violentada pelo pai, de quem engravidou doze vezes. Cinco dos filhos-irmãos sobreviveram. Ao longo desse período, Severina procurou delegacias para denunciar o abusador. Também fez pré-natal no sistema de saúde local. Mas nunca recebeu ajuda dos agentes públicos. Em 2005, quando o pai anunciou que queria manter relações sexuais com a filha de ambos, Severina resolveu mandar matá-lo. No dia do enterro, ela foi presa. O delegado, na representação enviada ao juiz, dizia que a agricultora “era filha da vítima, mas, mesmo assim, e em completo menosprezo a todo e qualquer costume social, havia encomendado o crime”. Severina foi solta após mais de um ano de encarceramento. Hoje, convive com os filhos, alguns com problemas de saúde decorrentes da consanguinidade. Para ela e seus cinco filhos-irmãos, o Estado sempre foi mínimo.

Marcos Silva, 26, é ajudante de pedreiro. Quando começou nesse serviço, há um ano, um dos pagamentos pelo dia de trabalho incluiu um assento sanitário marrom, usado, que a família cujo apartamento ele estava reformando havia descartado. A mesma família também colocou no pacote de benesses uma massa congelada cuja etiqueta pequenina lá no canto lembrava: “produto perto da data do vencimento”. O jovem levava o assento sanitário para casa, a pé, percorrendo seis quilômetros com o objeto nas costas. Passei por ele, que estava ofegante. Quando lhe ofereci alguma ajuda, Marcos disse que tinha fome. Estava desempregado havia meses. Para ele, o Estado é mínimo.

Marcela, 16, cursa o sétimo ano do ensino fundamental público. Estuda em Caruaru, mas reside na cidade vizinha, Belo Jardim, a 53 quilômetros. Sem transporte público para levá-la até a escola e trazê-la de volta, precisa seguir o trajeto em vans particulares e irregulares cujo pagamento corrói uma parte considerável da parca renda familiar. O pai é garçom; a mãe, desempregada. Há alguns meses, em uma van lotada, ela, que estava no banco de trás, foi abusada sexualmente por um homem bem mais velho. Para Marcela, o Estado é mínimo.

Sônia da Silva, 29, amamentava o filho Vítor, 2 anos, em frente à estação rodoviária de Imbituba, no litoral de Santa Catarina. Era ali que ela e o marido, ambos do povo indígena Kaingang, vendiam artesanato durante o Carnaval. Vinham de Chapecó, oeste catarinense, e dormiam ao relento. Assim, economizavam dinheiro. Um desconhecido se aproximou, afagou os cabelos da criança e disse que era um menino bonito. A mãe, feliz, achou que ele daria algum presente ao bebê. O desconhecido enfiou uma navalha na garganta de Vítor, que morreu na hora. O crime aconteceu em 30 de dezembro de 2015. Não houve comoção nacional. Vítor faz parte dos cerca de mil indígenas assassinados no país desde 2003. Para eles, o Estado sempre foi mínimo.

O Estado é mínimo para 52,2 milhões de brasileiras e brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza. É mínimo para os jovens que não conseguiram sair de casa, no ano passado, para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), pois o lugar onde moravam, a Rocinha, no Rio de janeiro, estava sob ataque. O Estado revelou-se mínimo também para o Museu Nacional, cuja memória foi extirpada em nome da “austeridade”.

 

É preciso reconhecer, porém, que o Estado brasileiro ainda cuida de alguns dos seus.

Cármen Lúcia, 64, recebe 33.763 reais ao mês, mesmo valor que seus dez colegas do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas um aumento de 16% concedido em agosto corrigiu o valor – a partir de 2019, ministros e ministras do órgão ganharão 39.293,32 reais por mês. O empurrão salarial que o Supremo deu a si mesmo valerá para mais 18 mil pessoas, entre juízes, desembargadores e ministros. O Conselho Nacional de Justiça mostrou que, em 2016, o Judiciário consumiu 84,8 bilhões de reais, o equivalente a 1,4% do PIB do país. Com benefícios e auxílios, Cármen e cada um de seus colegas custam em média, por mês, 47,7 mil reais. Para ela e seus pares, o Estado não é mínimo.

Bruno Araújo, 46, candidato ao Senado (PSDB/PE), deputado federal três vezes, deputado estadual duas vezes, pode vir a ocupar um dos cargos mais protegidos pelo Estado brasileiro. Se eleito, continuará com salário bruto de 33.763 reais, pago tanto a deputados federais (são 513) quanto a senadores (são 81). Na nova função, Bruno poderá morar num dos 72 apartamentos funcionais de Brasília ou receber auxílio-moradia no valor de 5.500 reais por mês. Há ainda outros mimos: ressarcimento integral de todas as suas eventuais despesas hospitalares, cota mensal para atividade parlamentar entre 30 mil e 45 mil reais (com direito a cinco viagens de ida e volta ao estado de origem), uma média de 82 mil reais por mês para gasto com pessoal. No total, cada senador e deputado federal custa mais de 150 mil reais mensais. Mesmo não vencendo a disputa, Bruno não deverá enfrentar os percalços de um Estado enxuto: na declaração deste ano para a Justiça Eleitoral, registrou patrimônio de 5.217.232,02 reais. São 2 milhões de reais a mais que em 2014, quando declarou possuir 3.156.779 reais. Para o candidato, o Estado não é mínimo.

Flávio Gurgel Rocha, 60, é um celebrado empresário brasileiro: sua rede de lojas, a Riachuelo, conta com quase 300 unidades espalhadas pelo país. Ele já participou ativamente da vida política institucional da nação quando foi eleito duas vezes para o cargo de deputado federal pelo Rio Grande do Norte (1986 a 1995). Defensor aplicado do Estado mínimo e filiado ao Partido Republicano Brasileiro (PRB), Flávio nem sempre mostra coerência em relação à sua cartilha: já em 1987, como titular ou suplente em diversas comissões parlamentares, votou contra o rompimento de relações diplomáticas com países que praticassem políticas de discriminação racial e a pena de morte, por exemplo. Diversas vezes, o empresário precisou recorrer ao Estado para expandir seus negócios: na última década, conseguiu 1,39 bilhão de reais em empréstimos no BNDES. Entre eles, está o contrato 09211921, para implantação de dezenove lojas da Riachuelo em lugares como Salvador, Rio, Diadema e Feira de Santana. O empréstimo foi de 286.713 reais. As dezenas de outras negociações podem ser acessadas aqui (clicar em Transparência). O tino para os negócios e a facilidade estatal ajudaram o empresário a figurar entre os mais bem-sucedidos do país: suas lojas empregam cerca de 40 mil pessoas (a média salarial dos vendedores é de 1.300 reais por mês) e sua fortuna é estimada atualmente em 1,3 bilhão de dólares ou 4,1 bilhões de reais. Para Flávio Rocha, o Estado não foi mínimo.

Leonel Arcângelo Pavan, 64, empresário de Santa Catarina dedicado ao setor de turismo, tem uma extensa vida pública: foi vereador entre 1982 e 1988, prefeito de Balneário Camboriú três vezes, deputado federal entre 1995 e 1996, senador entre 2003 e 2006. Foi ainda governador de Santa Catarina entre 25 de março e 31 de dezembro de 2010, quando Luiz Henrique da Silveira deixou a cadeira para concorrer ao Senado. Os nove meses e seis dias no cargo deram a Leonel o direito de uma pensão vitalícia mensal de 30.471,11 reais. Mais sete ex-governadores e três viúvas recebem pensão em Santa Catarina, que totalizam 288.768,88 reais por mês. Em dezembro de 2017, a Assembleia Legislativa aprovou por unanimidade o fim das pensões vitalícias a partir de 2019. Mas os pagamentos anteriores continuarão sendo feitos em respeito à Constituição do estado. Melhor para Leonel Pavan: com ele, os sete ex-governadores e as três viúvas, o Estado segue não sendo mínimo.

João Campos, 24, conseguiu aos 22 anos um ótimo emprego no setor público, quando se tornou chefe de gabinete do governador de Pernambuco e candidato à reeleição Paulo Câmara (PSB) em 2016.  O Estado cuida, historicamente, bem de sua família: quando o seu avô, Miguel Arraes, foi governador pela segunda vez, Eduardo Campos, pai de João, assumiu a chefia de gabinete entre 1987 e 1990. Eduardo morreu em um trágico acidente de avião dois anos antes de seu filho passar a trabalhar no governo. Durante o período em que esteve lá, João, cujo salário líquido mensal era de 7.787,43 reais, recebeu prefeitos, governadores e chefes de legendas. Também viajou para o Reino Unido para participar de um programa de jovens líderes em ascensão. O rapaz virou funcionário do governo ao mesmo tempo que sua irmã, a arquiteta Maria Eduarda Campos, que assumiu a gerência de zoneamento especial do Instituto Pelópidas Silveira aos 24 anos (salário-base de 5.036,69 reais). Agora, João é candidato a deputado federal e deve ganhar um lugar no Congresso, do qual sua família participa desde 1995. Para João, que caminha para Brasília sem nunca ter ocupado um cargo eletivo, o Estado não é mínimo.

O Estado não é mínimo para Iraci Araújo Moreira. Quando foi vice-governadora na gestão de Blairo Maggi (PP/MT), entre 2003 e 2007, ela ocupava, como era de se esperar, o cargo principal durante viagens internacionais do titular. Hoje a interina recebe pensão vitalícia de 15 mil reais ao mês.

O Estado não é mínimo para a família de Evaristo Vieira da Cruz, governador do mesmo Mato Grosso durante dezesseis dias. Sua viúva, Maria Valquiria dos Santos Cruz, recebe uma pensão também de 15 mil reais mensais. O benefício foi concedido em 2002 pelo então deputado estadual Humberto Bosaipo (DEM), quando ele assumiu, por apenas dez dias, o cargo de governador.

 

Estamos nas eleições de 2018 e o “Estado enxuto” aparece novamente nas agendas de candidatos à Presidência como João Amoêdo, Jair Bolsonaro, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles e Alvaro Dias. Todos miram, no projeto neoliberal já em andamento, a saúde, a educação e a cultura, tradicionalmente sucateadas. Mas, como lembra Andréia Galvão, cientista social e professora da Unicamp, as áreas tidas como estratégicas (Legislativo, Judiciário, segurança, cobrança de impostos) não são afetadas – ou o são em menor medida.

Assim, o mesmo Estado que aprovou o congelamento de gastos em saúde e educação é o que mantém alguns dos parlamentares e juízes mais caros do planeta. Aqui, vimos apenas alguns exemplos de uma estrutura gorda, pesada. São nomes que servem antes de tudo para sublinhar benesses concedidas historicamente a inúmeras outras pessoas que ocupam altos cargos públicos. Também somos a pátria de um setor privado que se capitaliza largamente a partir dos mesmos recursos públicos que critica. “A ideia de Estado mínimo é uma falácia. O fato de os serviços sociais assegurados pelo Estado serem precários e de baixa qualidade no Brasil contribui para a crítica à intervenção estatal e para a apologia do livre mercado, mas isso não significa que o Estado seja mínimo. Pelo contrário, ele atua para favorecer certos interesses”, diz a cientista política.

Na quebra desse mito oco, cabem as perguntas: precisamos de um Estado mínimo ou de um Estado justo? Porque o mínimo, o irrisório, o inseguro, o ineficiente, sabemos, já existe. Na República em que o enxugamento estatal é absolutamente seletivo, fica a questão: esse Estado é mínimo para quem?

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