Eu tenho a foto dele, aquela tirada pelo Walter Firmo, bem aqui, em frente à minha mesa de trabalho, divina e diária inspiração: Pixinguinha em sua cadeira de balanço, à sombra de uma árvore frondosa, segurando com delicadeza o saxofone, semblante feliz e sereno. Há uma coisa que os santos e os artistas têm em comum: essa capacidade inata de transcender o aqui e agora, essa habilidade de criar e habitar um outro mundo dentro desse. Um mundo melhor.
Alfredo da Rocha Viana, Pixinguinha, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 23 de abril de 1897. Desde menino, não era muito ligado ao estudo convencional e já gostava de música. Seu pai tocava flauta e costumava reunir músicos amigos em casa para tocar e o menino ficava ali escutando até ser mandado pra cama dormir. Ir pra cama ele ia, que jeito! Mas dormir não dormia, ficava era escutando aquela música bonita… Começou a tocar cavaquinho ainda menino, com 11 anos, e o pai, vendo a habilidade do menino, levava-o para tocar nas festas. Depois do cavaquinho veio a flauta. Tocou na orquestra do grupo carnavalesco Filhas da Jardineira, antes de completar 14 anos. Depois disso, entrou para o conjunto Choro Carioca e não parou mais. Tornou-se um dos maiores flautistas brasileiros, se não o maior. Tinha um estilo inconfundível. Bem mais tarde, trocou a flauta pelo saxofone. Com seus irmãos, quando pequeno, estudava música e, conta Sérgio Cabral, que quando o professor perguntava o que era música eles respondiam: “Música é uma combinação de sons.”
Pixinguinha e a Velha Guarda do Samba, documentário de Thomaz Farkas e Ricardo Dias
Freqüentador da casa da baiana Tia Ciata, reduto do samba e do choro carioca, Pixinguinha contava entre as suas muitas amizades, duas inseparáveis, Sinhô e João da Baiana.
O choro, música instrumental brasileira, surge em meados do século XIX não ainda como um gênero musical, mas como um modo de tocar que os músicos imprimiam principalmente às polcas, música de origem européia que se propagava na cidade do Rio de Janeiro. Este modo de tocar caracterizava-se por certos esquemas de modulação de acordes que acabariam por se fixar e que, por acontecerem nos tons mais graves do violão, se estruturariam sob o nome de baixaria. “Pixinguinha conferiu personalidade e identidade ao choro, edificando-o como um gênero musical. A partir da herança dos chorões do século XIX e da tradição afro-brasileira, produziu a mais importante obra chorística de todos os tempos. A habilidade na flauta fez das suas interpretações o apogeu a história da flauta brasileira”, diz André Diniz. E o maestro Radamés Gnatalli completa “Choro é o gênero mais evoluído da música brasileira. Existem milhões de choros, mas os bons mesmo são os do Pixinguinha. Bom por estar muito mais elaborado? Não, é porque ele é um sujeito genial…” As suas composições exigiam tal destreza do instrumentista que muitas delas só ele mesmo e Benedito Lacerda conseguiam tocar. Um a zero foi uma delas.
Dentre suas composições, Lamentos, Sofres porque queres, Um a zero, Vou vivendo, Naquele tempo, Ingênuo, em parceria com Benedito Lacerda, Urubu.
Dentre suas canções, Carinhoso (Pixinguinha – João de Barro), Rosa (Pixinguinha, Otávio de Souza) e Página de dor (Pixinguinha, Candido das Neves) as três imortalizadas pelo cantor das multidões, Orlando Silva. Carinhoso, que muitos consideram como a mais bela canção brasileira, tem uma estória singular, ficou na gaveta por muito tempo: “Eu fiz o Carinhoso e encostei. Naquele tempo o pessoal nosso da música não admitia choro assim de duas partes.”
Carinhoso com Marisa Monte e Paulinho da Viola
Uma rosa para Pixinguinha / Radamés Gnattali, Elizeth Cardoso
Donga e Pixinguinha em 1919 formaram o grupo Os Oito Batutas, para tocar no Cinema Palais, um dos cinemas mais elegantes da cidade do Rio de Janeiro.
Em 1923, Orestes Barbosa, jornalista e poeta, autor da letra de Chão de Estrelas, escreveu uma crônica para o jornal A Notícia que diz assim: “Está tocando o Urubu, um choro do seu repertório. A flauta tem variações incríveis. Dá volta de cobra. Chora. Silva. Ri, na execução maravilhosa dos seus dedos.”
Pixinguinha era instrumentista, compositor, arranjador e maestro. Perguntei ao meu amigo, o violonista e arranjador Edmilson Capelupi, tocador e grande conhecedor de choro, o que para ele era essencial na música de Pixinguinha e ele respondeu: “Como é gostoso tocar os choros do Pixinga (desculpe, mas fãs se sentem íntimos), cheios de swing, melodias lindas, novidades harmônicas, um choro diferente do outro, cada um com uma surpresa, às vezes lento, às vezes mais rápido, um choro mais cadenciado, mas sempre sobrando criatividade, bom gosto, suavidade nas melodias e muita ternura, sim ternura, palavra que hoje está longe do nosso vocabulário, principalmente na música.”
Cochichando, músicos: Proveta, Jericó, Carlos Roberto, Cleber Almeida e Edmilson Capelupi
Ary de Vasconcelos disse: “Se você tem quinze volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha.” E Vinicius de Moraes: “É o melhor ser humano que conheço. E olha que o que eu conheço de gente não é fácil.” E como disse Paulinho da Viola, suas músicas fazem muito bem ao coração e à alma.
Pixinguinha morreu em plena segunda-feira de carnaval, no dia 17 de fevereiro de 1973, dentro da Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema e dizem que então ele foi pro céu. No entanto, aqueles que o conheciam sabiam que isto não era verdade: ele já vivia no céu há muito tempo.
O mundo melhor de Pixinguinha – Evaldo Gouveia e Jair Amorim.