Sintonizei a TV Justiça pela primeira vez em junho de 2011. Queria acompanhar o julgamento da ADPF 187, na qual a mais suprema das cortes brasileiras debatia se a Marcha da Maconha era um movimento legal ou configurava “apologia ao crime”. Em decisão unânime, os ministros concluíram não apenas que a marcha era legítima, como estenderam a decisão a qualquer grupo que milite pela legalização da erva. Resolveram numa tacada só várias encrencas, como o uso de bonés e camisetas estampados com a folha de cannabis (que já serviu para botar muito jovem preto e periférico em cana) e a perseguição a bandas como o Planet Hemp, que teve seus integrantes presos em 1997, em Brasília, por falarem de maconha nas músicas.
No ano seguinte ao julgamento, a cultura canábica viveu uma explosão no Brasil, com o surgimento de sites especializados, marcas de seda, roupas, lojas, blocos de carnaval e muitas marchas. Eu mesmo tomei coragem de pôr na rua a semSemente, primeira revista impressa sobre maconha no Brasil, que durou quatro edições. A decisão do Supremo também abriu a porteira para a discussão da cannabis medicinal, movimento liderado por mães de crianças com epilepsia que conheceram nas moléculas da maconha um remédio impressionante, capaz de zerar as convulsões de quem antes tinha trinta por dia. O assunto ganhou as editorias dos jornais e canais de tevê. Se naquela época perguntassem a mim ou a qualquer outro ativista quando a maconha seria legalizada de vez, provavelmente responderíamos: “Em até cinco anos.”
Passaram doze, e nada. Em busca de algum consolo, cá estou na ponte aérea Rio-São Paulo, numa sexta-feira de novembro, a caminho da segunda edição da Expocannabis. É o maior evento sobre o uso de maconha no Brasil, realizado num dos maiores centros de convenções do país, o São Paulo Expo. Fujo do G20 e de um Rio repleto de milicos e gradis em direção a um festival com a maior “apologia” possível ao consumo de cannabis. Três dias de palestras, estandes com variados produtos derivados da planta, jogos, uma penca de fumaça e milhares de maconheiros.
A discussão no Brasil avançou, é verdade, e esse evento é sinal disso. Mas é bom ver as coisas com cautela. Se, por um lado, ainda temos sonhadores buscando uma regulamentação da maconha que traga justiça social e reparação histórica, temos também uns espertinhos. Seguindo uma tendência inaugurada nos Estados Unidos nos anos 1990, tem ganhado força no Brasil uma narrativa torpe e inevitavelmente racista separando a cannabis medicinal da maconha recreativa, associada ao crime e à violência que matam brasileiros com uma determinada cor de pele e CEP.
O trabalho de anos feito pelas mães de crianças epilépticas resultou em decisões positivas do Conselho Federal de Medicina e em portarias da Anvisa, mas logo foi cooptado por farmacêuticas, lobistas e toda sorte de startupeiros, farialimers e outros tipos de picaretas que um mercado não regulado, ou mal regulado, atrai. Agora que a trilha de tijolos verdes está asfaltada, a tropa do sapatênis, uma galera que nunca levou um tapão na orelha de um PM, está querendo sentar na janelinha.
Há um certo oba-oba no ar. Segundo uma pesquisa do Núcleo de Estudos sobre Turismo de Drogas (Netud) da Uerj, o Brasil sediou no ano passado 123 eventos canábicos, dos quais 83% foram presenciais. Um terço focava no uso medicinal da erva, e os demais falavam de uso recreativo, cultura, legislação, negócios, gastronomia etc. Mais da metade foi realizada no Sudeste. A ExpoCannabis, em sua primeira edição, foi a maior de todas: segundo a organização, gerou 3 mil empregos temporários e movimentou cerca de 20 milhões de reais em negócios, fora os benefícios indiretos para o município de São Paulo.
Chegando de carro ao centro de convenções, me deparei com placas informando sobre as duas feiras que estavam sendo realizadas ali: na ponta esquerda, a Expocannabis; na ponta direita, a Dunamis Con 24. O nome da segunda me era enigmático, mas pesquisei e descobri se tratar de um evento onde “cristãos apaixonados se encontram num único espaço para adorar ao Senhor, buscar nova revelação do alto e receber direção profética”. É o que diz o site da Dunamis Con 24, cuja classificação é livre e o principal atrativo é o chamado “avivamento sustentável”.
Após uma longa caminhada na direção oposta à do avivamento, cheguei ao “Hall das Flores” – um monte de pés de maconha protegidos em aquários de vidro, para evitar que um cabeção qualquer tente subtraí-las. Seguindo reto pelo pavilhão, vi estandes de associações de usuários de maconha medicinal, um fornecedor de óleo gringo e, meio sobrando, uma banca da Uruguay XXI, agência que promove exportações e a imagem do “paisito”, como os uruguaios se referem à pátria-mãe.
Em termos de tamanho, público e organização, a Expocannabis Brasil não fica atrás da Expocannabis Uruguay, evento pioneiro que acontece todo ano em Montevidéu e já está na 11ª edição. Também não deixa a desejar às convenções que visitei no México e na Argentina, países com regulação mais avançada que a nossa.
Leve-me ao seu dealer (Foto: Matias Maxx)
Assisti, na sexta-feira, a uma mesa que reuniu justamente a fundadora da Expocannabis Uruguay, Mercedes Ponce de Léon, e o Secretário Nacional de Drogas do Uruguai, Daniel Radío. O assunto: “Atualização do mercado regulado no Uruguai.” A lei que legalizou a maconha, em 2013, durante o governo de José “Pepe” Mujica, permitiu o consumo por três caminhos: o autocultivo (até seis plantas em floração por pessoa), o cultivo associado (clubes que podem ter até 99 plantas em floração) e o fornecimento por meio de quarenta farmácias autorizadas, abastecidas por três grandes cultivos autorizados, regulados e vigiados pelo Estado. Para acender o beck, o usuário precisa preencher um cadastro do governo e escolher uma das três formas de acesso, limitadas sempre a 40 gramas por mês, por pessoa.
Em uma década, a lei provocou uma leve redução no consumo de maconha. Segundo os painelistas, 12,3% dos uruguaios consumiram cannabis em 2023, menos do que os 14,6% de 2018. Já o percentual de consumo considerado problemático permaneceu estável: 2,1% desde 2011. Houve também uma redução do consumo do ilegal prensado paraguaio de 58,2% em 2014 para 6,7% em 2024.
Mas nem tudo são flores resinadas. Os dois palestrantes reconheceram que, se por um lado o Uruguai facilitou o uso recreativo da maconha, sua aplicação na medicina foi escanteada. Não se encontram flores de CBD (canabidiol) no mercado privado, tampouco na rede de saúde e nas universidades, embora seu consumo esteja previsto em lei. “A franqueza que tivemos na discussão do uso recreativo acabou relegando o uso medicinal ao segundo plano. Ainda somos herdeiros de um século de obscurantismo. Somos a geração que tocou a transição”, disse Radío. Uma nova lei sobre o uso medicinal chegou a ser promulgada em 2019, mas ainda não foi totalmente regulamentada.
O Secretário Nacional de Drogas do Uruguai lançou a real: “quem quiser consumir maconha em qualquer lugar do mundo vai conseguir.” (Foto: Matias Maxx)
Ao final da palestra, fiz questão de enquadrar Radío numa pergunta pertinente aos brasileiros. Expliquei que, desde que o Uruguai legalizou o consumo da droga, muita gente viaja ao país vizinho em busca do sonho da maconha livre. O acesso à erva, no entanto, é vedado aos turistas. Isso vai mudar? “Apresentamos um projeto de lei para que se elimine o registro de usuários, e dessa maneira automaticamente o turista poderia comprar. Infelizmente não passou, mas vamos apresentá-lo novamente”, ele respondeu. Perguntei então se, caso o registro seja mesmo eliminado, não haverá mais o limite de 40 gramas por mês, já que a fiscalização ficará impossível. “Mas para que queremos controlar a quantidade? Quarenta gramas já é suficiente, não? Para que comprar mais que isso? Para vender? Mas se todo mundo pode comprar e não é preciso ter registro, por que vão deixar de comprar na farmácia?”, retrucou o secretário. “É absurdo achar que alguém vai comprar mais do que vai consumir.”
No pavilhão de entrada ficava a parte mais espaçosa da feira, chamada “Cannabis é plural”. Gigantescos estandes de patrocinadores dividiam espaço com marcas diversas, que vendiam seda, insumos para cultivo, sementes de maconha e parafernálias em geral. Aproveitando as largas avenidas do centro de convenções, as empresas recorriam a estratégias clássicas de feiras comerciais, como o uso de cenografia, farta distribuição de brindes, aparições de subcelebridades e jogatinas.
A marca de sedas brasileira Bem Bolado resolveu testar a capacidade cognitiva de seus usuários, oferecendo um quebra-cabeça e um jogo da memória – valendo brindes, é claro. Mas maconheiro é sangue bom e se apoia. O pessoal que estava na fila ajudava quem estava competindo, para assim tudo andar mais rápido. Numa ação ousada, a Smoking, provavelmente a marca de seda mais famosa e antiga do mundo, fundada em 1879 na Catalunha, propunha a você trocar sua seda pelo novo lançamento da marca, que diz ser a mais fina de todas. Como a Smoking é cara, quase um produto de luxo, o maconheiro viu vantagem.
Senti falta de duas marcas grandes do setor, a Raw e a Squadafum. Numa conversa com um sócio de uma delas, fui informado de que a ausência tinha razões geopolíticas. A guerra na Ucrânia e em especial os Houthis, grupo rebelde do Iêmen que tem atacado embarcações no Mar Vermelho, bagunçaram a logística global da empresa, afetando a linha de produção e o abastecimento.
O trapper Matuê bem “avonts” na Expocannabis (Foto: Matias Maxx)
O estande mais imponente de todos era o da Aleda. Fundada em 2006, a empresa dos irmãos brasileiros Renato e Giorgio Volonghi revolucionou o mercado quando lançou a seda de celulose. Transparente, mais fácil de apertar, resistente a água e portanto a chuva, chuveiros, praias e principalmente aos boquinhas de piscina, o produto fez sucesso e passou a ser exportado para o mundo inteiro. Incomodou marcas gringas, causou rachas entre distribuidores e foi pirateado por todos os cantos. Passado o hype, os irmãos criaram uma nova empresa, a HBT, para investir em outro mercado, o do “tabaco de apertar”, aquele tipo que vem em bolsinhas. Hoje os Volonghi são os principais mecenas não só da Expocannabis como de outras iniciativas culturais do setor, como a peça Diamba: Histórias do Proibicionismo no Brasil, inspirada no quadrinho de Daniel Paiva, da Brasa Editora, e os documentários Ver de Perto e Dab-a-doo Brasil: Mila na estrada.
O pavilhão mais modesto da feira recebeu o nome “Cannabis é cultura”. Reunia estandes menores, repletos de headshops e artistas que vendiam pinturas e fotos inspiradas pela erva – ou literalmente feitas dela, como no caso da fotógrafa Cristina Zarur, que comercializava colagens produzidas sobre papel de cânhamo (material extraído da fibra da cannabis). A lojinha La Belle Gallery vendia joias de prata no formato de folha de maconha e da molécula do princípio ativo mais famoso da planta, o THC.
Há um mercado editorial florescente no universo canábico. Duas editoras, a Vista Chinesa, do Rio de Janeiro, e a Brasa, de Porto Alegre, comercializavam livros e quadrinhos dedicados ao tema. Movimentos sociais como a “Marcha das Favelas pela Legalização” e a “Articulação Nacional de Marchas da Maconha” também tinham seus espaços, basicamente pontos de encontro entre ativistas e de venda de camisetas, até hoje o principal meio de arrecadação desses grupos.
A luz no final da feira era uma área aberta, conhecida como fumódromo. DJ’s subiam o grave, produtores de cerveja artesanal enchiam copos, e foodtrucks fritavam gordurosas laricas enquanto a galera promovia uma verdadeira olimpíada canábica. Não parava de chegar gente com seus kits, de onde saíam ervas e diferentes tipos de haxixe. A fumaça era tanta que chegou aos prédios vizinhos. Felizmente, estávamos ao lado do Jardim Botânico e do Jardim Zoológico de São Paulo, o que provavelmente compensou as nossas emissões.
O tanto de mato queimado na Expocannabis provocou eventos climáticos (Foto: Matias Maxx)
Formaram-se rodinhas de beck. Há quem fume maconha pura e quem misture com tabaco. Ex-fumantes de cigarro estão no primeiro grupo, então é de bom tom que, antes de passar o baseado para o lado, você avise ao amiguinho se o produto contém ou não tabaco – até porque o “tabeck”, como é chamado, deve ser tragado suavemente para evitar homéricas sessões de tosse.
Esqueçam as videoconferências, palestras e estandes: o verdadeiro networking rola nessas rodas, conectando as pessoas de saliva em saliva. Marinheiros de primeira viagem aproveitam a ocasião para aprender com growers, os cultivadores de maconha. Estes, por sua vez, contam vantagens e peripécias, histórias do cárcere e atualização de seus processos penais. Infelizmente, ainda é ilegal plantar no Brasil.
Na verdade, há poucas semanas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ordenou à Anvisa que regule o cultivo de cannabis para fins medicinais e industriais, autorizando, portanto, que empresas plantem aqui no Brasil. Até então os pacientes brasileiros estavam à mercê da importação de produtos canadenses, estadunidenses ou colombianos, ou do fornecimento de algumas poucas associações que, insistindo na desobediência civil, conseguem frágeis liminares na Justiça autorizando o plantio. O STJ deu prazo de seis meses para a Anvisa. Uma ótima notícia, sem dúvida, mas que não contempla os maconheiros recreativos.
Uma amostra responsa de Orange County Mac, 24K e Forbidden Lemon Glue. Pena que JPG não tem cheiro (Foto: Matias Maxx)
Numa das rodas, uma mina brotou com uma planta na mão e consultou todos os growers sobre os buracos que começaram a aparecer nas folhas dela. A conclusão do conselho de especialistas: devia ser obra de cigarrinhas-verdes. Cultivar é uma arte complexa. Se rega muito dá ruim, se rega pouco dá ruim e, quando menos se espera, brota uma praga. É como criar um pet, exige muito esforço, só que você não fuma o pet.
O primeiro evento canábico de que se tem notícia no Brasil do século XXI foi o Encontro do Fórum de Discussões de Cultivadores Growroom, realizado no Rio de Janeiro, em 2010. Foi um encontro super clandestino, que reuniu cultivadores de vários estados. Aos moldes das copas canábicas argentinas, frequentadas por alguns brasileiros, o evento foi divulgado só entre os integrantes do Growroom, uma comunidade online que reúne cultivadores de maconha. O ponto de encontro foi revelado no próprio dia, e de lá os visitantes seguiram para o evento.
Passada uma década e meia, a Justiça facilitou a vida da maconheiragem, mas eventos clandestinos ainda existem, como a Dab-a-doo, copa internacional organizada pela ativista inglesa radicada na Holanda Mila Jansen, conhecida no meio como “The Hash Queen” (a rainha do haxixe). A segunda edição brasileira da Dab-a-doo aconteceu poucos dias antes da Expocannabis, reunindo produtores e sommeliers dos diferentes tipos de extração da erva (a mais comum é o haxixe).
Copas canábicas são competições que elegem a melhor erva ou haxixe. Costumam ser exclusivas para competidores, comportando raros convidados. Para participar é preciso inscrever alguns gramas de sua lavra, que são analisados por um júri especializado e em seguida fracionados e distribuídos entre os próprios competidores, que degustam as amostras às cegas. A galera passa o dia inteiro fumando e avaliando características como sabor, odor, aparência e efeito psicoativo – de longe o critério mais capcioso, já que, uma vez chapado, chapado estás.
São eventos frequentados majoritariamente por homens, espécie que gosta de medir, comparar e contar vantagem. Mas nos últimos anos, graças a Jah, a coisa vem mudando, e é cada vez mais comum que minas com dedo verde participem das copas. Esses eventos servem para aproximar pessoas que, por causa da repressão, só costumam conversar por meio de nicknames e mensagens criptografadas.
Uma explicação, para quem não tem intimidade com o assunto: a folha da maconha, aquela que estampa camisetas e bonés, não se fuma. O ouro está na flor fêmea da cannabis, que é semelhante a um brócolis, com galhos, botões, cálices e pistilos – o que os especialistas chamam de “matéria verde”. Sobre a matéria verde temos os tricomas, também conhecidos como resina ou cristais, nos quais se encontram os terpenos, moléculas que dão sabor e odor à erva, e os canabinoides (como o THC e o CBD), responsáveis pelos efeitos psicoativos e terapêuticos.
“Pipoquinha” é o nome carinhoso dado às flores menores dos galhos internos ou mais baixos, que por secarem mais rápido costumam ser as primeiras a virar fumaça (Foto: Matias Maxx)
Há diferentes técnicas para extrair a resina da matéria verde, e disso resulta uma grande variedade de haxixes. Algumas técnicas são puramente mecânicas, como as usadas tradicionalmente no Marrocos e no Paquistão, e outras envolvem solventes químicos, como a extração de BHO (óleo de haxixe butano, na sigla em inglês). Um método muito popular é o ice-o-lator – para os íntimos, apenas ice –, que combina gelo, água e movimentos mecânicos para extrair os tricomas.
O ator Pedro Benevides exibe sua própria extração de BHO (Foto: Matias Maxx)
Mila Jansen, rainha do haxixe, revolucionou a produção da droga quando criou, nos anos 1990, o Pollinator, uma máquina que permite a extração do tipo Dry-Sift. Funciona como um tambor giratório envolto em redes com as mais finas gradações que a indústria permite, e a partir das quais se extraem finíssimos cristais da maconha. Pollinator vem de pólen, um dos nomes dados à resina da cannabis extraída à seco, que se assemelha ao pó produzido pelas flores. Mas pólen de verdade, que serve para fins reprodutivos, só as cannabis macho produzem.
Mila nasceu em 1944, em Liverpool, passou a maior parte da vida na Holanda, fumou um pela primeira vez em 1964 e, nos anos seguintes, peregrinou pelo Oriente acompanhada de suas filhas (ainda crianças) em busca de conhecimentos sobre o cultivo da erva e a produção de haxixe. Criou o Pollinator num momento de grana curta, quando tentava se virar como mãe solteira de quatro filhos. A ideia surgiu enquanto ela observava os movimentos de uma máquina de lavar roupa.
Eis que a inglesa aparece na Expocannabis para prestigiar a exibição do documentário Dab-a-doo Brasil: Mila na estrada. O filme foi dirigido no melhor estilo guerrilha pelo cineasta carioca Marcelo Gibson. Com 1 hora e 26 minutos de duração, é um divertido road movie que mostra a passagem da rainha do haxixe pelo Brasil em 2023. A viagem foi organizada por Moby Dick, ou Ricardo Petraglia, que se autodenomina “ator aposentado, ativista canábico e esculhamber”. Mila passou catorze dias em nossas terras, a maior parte deles dentro de uma van, promovendo sua autobiografia, Mila: Como me tornei a rainha do haxixe, lançada no Brasil pela editora Vista Chinesa. Veio também para prestigiar a primeira copa Dab-a-doo Brasil, em local não revelado, e depois rumou para o Uruguai, onde seguiu com sua turnê latinoamericana (mais tarde, visitou Argentina e México).
A exibição começou atrasada, pois o sexagenário Moby Dick, a bordo de sua motinho elétrica, fez questão de que a mulher e os amigos mais próximos de Morango Santos estivessem presentes para uma breve homenagem. Dono da loja virtual Namastey, Morango foi uma figura muito querida da cena canábica e aparece em vários trechos do documentário. Quando o filme já estava pronto, em setembro, morreu tragicamente num acidente de carro na Via Dutra.
Mila, trajando um vestido digno de realeza, se sentou na primeira fileira, a duas cadeiras de mim, para assistir ao documentário. Testemunhei as muitas risadas que deu de si mesma vendo as trapalhadas da viagem, que incluem uma mala extraviada, uma bolsa perdida e um integrante da trupe escondido nos fundos da van ao atravessar a fronteira com o Uruguai, porque estava sem seu documento.
A sorridente Mila e, ao fundo, o diretor Marcelo Gibson (Foto: Matias Maxx)
“Só fumo haxixe, porque quero fumar a essência da cannabis, não o resto”, disse Mila à plateia, terminada a sessão. Prestes a completar 80 anos, ela sorria o tempo todo – mesmo quando um maconheiro sem noção tentou lhe pedir autógrafo durante a exibição do filme, causando um burburinho (Moby Dick expulsou o chato). “O melhor baseado do mundo é o que você está fumando agora”, continuou Mila. Talvez ela nunca tenha tido a oportunidade de fumar os prensados xexelentos que já fumei. Ou talvez tenha fumado outros piores, vai saber.
Em mais uma ronda no fumódromo, ouvi o set do DJ de ocasião e apreciei o melhor baseado do mundo várias vezes. Depois abordei um táxi e voltei para o hotel. Me deparei com uma fila enorme ao chegar. Eram pessoas jovens, vestindo roupas coloridas, o que me levou a deduzir que também estivessem em São Paulo para visitar a Expocannabis. Depois de alguns segundos percebi o engano. Em vez de dreads e tranças, a maioria usava gel no cabelo. Uma menina vestia uma blusa com os dizeres “Eu decidi esperar”; outra estampava “Alfa e ômega” na camiseta. Eis o pessoal do avivamento.
Maconha também é política. A mesa de abertura do segundo dia foi uma conversa entre a deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP), o deputado estadual Caio França (PSB-SP) e a farialimer Carol Paiffer, empresária e apresentadora do Shark Tank Brasil. O tema do debate era “Cadê o Marco Regulatório Nacional?”, pergunta que eu, me antecipando, fiz para Bonfim minutos antes de ela subir ao palco.
“Pois é, no estado de São Paulo houve um avanço da legislação para autorizar a cannabis medicinal no SUS, e nacionalmente temos um impasse, porque o Supremo autoriza, hoje, que usuários com até 40 gramas de maconha não sejam considerados traficantes. Ao mesmo tempo, no Congresso Nacional tramita a PEC 45, que propõe justamente o contrário: tornar todo e qualquer usuário criminoso”, respondeu a deputada. Ou seja, um jogo cabeludo.
Comentei que, embora o discurso repressivo esteja em alta, nós ainda conseguimos fazer uma feira como essa, com centenas de expositores ensinando tudo o que se pode fazer com a planta. “Para mim, uma palavra que define isso é hipocrisia”, disse Sâmia. Da forma como a lei está hoje, “se reproduz uma lógica de privilégio das elites – seja a elite que ganha com a existência do tráfico, seja a elite que consegue ter acesso ao produto legalizado, como num evento assim. A vítima desse sistema não vai conseguir estar aqui. São jovens, negros, moradores das periferias.” É verdade, mas já foi pior. Os eventos canábicos do começo do século tinham uma pegada meio branco virjão. Hoje são mais diversos. Vi muitos jovens, negros e periféricos no Expocannabis. Mas se fosse um evento focado só em medicina ou negócios a plateia ia parecer saída de uma novela do Manoel Carlos.
Caio, autor do projeto de lei que garantiu aos paulistas remédios à base de cannabis no SUS, começou a conversa se dizendo orgulhoso do fato de a Expocannabis ter vindo a São Paulo – “um estado que sempre tem que estar na vanguarda dos principais temas na sociedade”. Ufanismos à parte, eu gostaria de lembrar ao deputado que, se por um lado o Rio de Janeiro foi uma das primeiras cidades do mundo a criar uma lei antimaconha (a super racista Lei do Pito do Pango, de 1830), foi também na Cidade Maravilhosa que a cena canábica começou a engatinhar. O Rio sediou a primeira Marcha da Maconha do Brasil, em 2002. Anos depois, em 2008, o evento sofreu repressão pesada e cinco militantes foram presos por panfletagem, o que resultou no julgamento decisivo do STF em junho de 2011.
Também em 2002, foi um carioca que criou o Growroom. Outras iniciativas saídas do Rio são o personagem Capitão Presença (2003), a Rádio Legalize (2008), o portal Hempadão (2009), o bloco de carnaval Planta na Mente (2011), a comunidade online Smoke Buddies (2011) e o Pot in Rio (2012), a primeira grande feira canábica aberta ao público. Se voltarmos um pouco no tempo, vemos ainda Planet Hemp, Verão do Apito, Verão da Lata, Dunas da Gal e muitos outros acontecimentos. É aquela história de sempre: o resto do Brasil cria, São Paulo vende. E como vende!
Ah, quase ia esquecendo: em 2023, Búzios (sim, o lindo recanto praiano de Brigitte Bardot na costa do Rio) se tornou a primeira cidade brasileira a distribuir maconha para uso medicinal no SUS. Foi nove meses mais veloz que o estado de São Paulo.
Sâmia, ao tomar a palavra, elogiou o projeto de Caio – um “marco civilizatório, que nos estimula a tentar avançar com a pauta no Congresso Nacional”. A deputada disse também que, embora seja um passo à frente, a decisão do STF sobre os 40 gramas de maconha não resolve o problema da discriminação contra pretos e pobres. Contou que, por isso, tem conversado com integrantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e entidades canábicas para fazer uma triagem no sistema penitenciário, libertando pessoas que estão presas injustamente. Segundo uma pesquisa do Ipea, 42 mil detentos foram presos com menos de 25 gramas de maconha.
Paiffer, a voz do mercado, disse que a forma como se lida com a maconha no Brasil é “burrice” e que a planta pode salvar nossa economia. É capaz (Foto: Matias Maxx)
Pedi o microfone para fazer uma provocação. Lembrei que um evento como esses só existe graças ao sacrifício de muita gente, pessoas que deram a cara a tapa, pondo em risco relações pessoais e a própria liberdade ao defender a legalização da maconha. Mas os projetos de lei que estão em discussão no Congresso, como o PL 399, que tratam da cannabis medicinal, parecem feitos sob medida para beneficiar exclusivamente o agronegócio e as grandes farmacêuticas. Existe mesmo esperança de termos no Brasil uma regulamentação que contemple todo mundo, e não só os tubarões?
Sâmia começou a responder – “essa é a pergunta de 1 milhão de reais” –, mas foi interrompida por uma salva de aplausos. É que, do nada, pique Ronaldinho Gaúcho, apareceu o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP), subindo a rampa do palco numa motinho elétrica. O veterano de 83 anos tomou a palavra e falou de seu próprio caso. Diagnosticado com Parkinson e um linfoma, em julho passado ele começou a se tratar com medicamentos à base de canabidiol. Disse ter gostado.
“Depois de ser diagnosticado, passei por um período de muita tosse em que tive de ficar internado. Mas, felizmente, duas semanas atrás, fiz um novo exame de tórax e os médicos disseram que tinha acabado o linfoma. É preciso ainda terminar o tratamento, mas já me tornei um entusiasta da causa.” Valeu demais, papito!
“Se o seu professor de economia dá uma aula sobre formação econômica brasileira e não leva em consideração o colonialismo, a escravidão e o racismo, isso não quer dizer que ele não tenha entendido esses elementos. Isso quer dizer que ele não entendeu economia de verdade, porque não é possível tratar do assunto sem identificar que essas são as bases de tudo que a gente tem no Brasil hoje.” Dudu Ribeiro, historiador soteropolitano, fez essa analogia para dizer que não dá para discutir guerra às drogas no país sem falar de: colonialismo, escravidão e racismo.
Dudu sabe muito do assunto. É cofundador e codiretor da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, uma ONG criada em 2015 que tem pautado debates importantes. Ele participou da mesa “Justiça restaurativa e redução de danos”.
Explicou, entre outras coisas, a tenebrosa lei do Pito do Pango – gíria para maconha usada nos tempos do Império. Naquele longínquo 1830, o governo redigiu um texto contra os entorpecentes, estabelecendo “multa ao vendedor e três dias de cadeia para os escravos e outras pessoas que dela fizerem o uso”. A cannabis foi vista por muito tempo como coisa de preto. Dudu contou que, uns cem anos atrás, o médico brasileiro Rodrigues Dória disse num congresso nos Estados Unidos que a maconha era a “vingança dos negros contra os brancos por terem usurpado sua liberdade”.
Para quem ainda não conseguiu entender a relação entre racismo e guerra às drogas, o cartunista Daniel Paiva desenhou. Sua impecável HQ Diamba: Histórias do proibicionismo brasileiro dichava a história da chegada da maconha ao Brasil e o nosso pioneirismo na repressão à marofa. A graphic novel é recheada de citações musicais, como à máxima de Marcelo Yuka: “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.” O livro foi lançado no ano passado e, ao se deparar com ele, o ator Luis Navarro teve a ideia de escrever um monólogo. Acabou fazendo mesmo uma peça, com outros dois atores, que estreou na Expocannabis, dirigida por Renata Carvalho. Daniel, o cartunista, assistiu à performance, emocionado.
Ele e os atores se sentaram no palco, em seguida, para uma conversa. “Cara, quando li o quadrinho pela primeira vez, eu pensei: ‘com certeza o cara que escreveu isso aqui é preto’”, disse Navarro, provocando risadas na plateia. Daniel não é preto.
Daniel, de verde, entre os atores Wesley Guimarães, Luís Navarro e Timm Arif (Foto: Matias Maxx)
A HQ foi inspirada em uma graphic novel gringa, Cannabis – A Ilegalização da Maconha nos Estados Unidos (Editora Mino, 2019). Nela, o quadrinista Brian “Box” Brown conta como foi a chegada da erva no país e os primeiros passos do proibicionismo, que por lá é mais direcionado aos mexicanos. O livro termina falando do processo ultraliberal de legalização da maconha em curso em vários estados americanos. “Quando li o livro de Brown, concluí que nosso proibicionismo é anterior aos dos Estados Unidos, mais violento e ainda mais racista”, disse Daniel, que planeja uma segunda parte do livro. A conversa ia bem, até que um chato de palestra levantou, meteu um whitesplanning e finalizou com um “evoé!”.
Tanto nos Estados Unidos quanto aqui, a proibição da maconha foi feita sob medida para criminalizar não só minorias raciais como também “brancos subversivos”. Dudu Ribeiro citou de cabeça, em sua palestra, uma frase de John Ehrlichman, assessor de Richard Nixon: “Nós tinhamos dois grandes inimigos, os brancos pacifistas que iam às ruas protestar contra a guerra e os negros. Nós não poderiamos criminalizar os brancos por serem pacifistas e não podiamos mais criminalizar os negros por serem negros [as leis racistas Jim Crow já tinham caído], mas descobrimos que criminalizando certas substâncias poderiamos prender seus líderes, desestabilizar suas reuniões, invadir suas atividades e difamá-los todas as noites no noticiário. Se a gente sabia que estava mentindo sobre as drogas? Claro que a gente sabia.” Assim se construiu o mito do maconheiro preguiçoso e violento. Para uns, bala. Para outros, tapa na cara.
Nos três dias de feira troquei ideias com os dois sócios brasileiros da Expocannabis, Larissa Uchida e Dave Coutinho. Mas conversamos sempre na “hora do rodo”, curta janela de tempo entre a última música do DJ e o derradeiro chope com terpenos de cannabis. Não consegui fazer nenhuma das perguntas que tinha elaborado; eles estavam ali para desestressar e fofocar. Falavam de tretas com expositor que ficou puto com burocracias e de denúncias de roubo nos pavilhões.
Minha conclusão, ao fim da jornada: maconha dá trabalho. E não só no cultivo ou na organização de grandes eventos assim, mas também no esforço contínuo de combater preconceitos, enfrentar injustiças históricas e construir uma regulamentação inclusiva. O maconheiro tem que mostrar resultado em dobro, porque qualquer descuido é cobrado. Nadamos contra uma maré impiedosa.
Voltei para o Rio de Janeiro carregado de brindes e otimista. Não com uma regulação do comércio de maconha, que não acredito que vá acontecer tão cedo, mas com o fato de conseguirmos botar de pé um evento grande voltado e tocado por amantes da erva. A tropa dos sapatênis, sentados em suas janelinhas espelhadas da Faria Lima, faz projeções, vende ações e promessas. Convém olhar com desconfiança. Mas, independentemente deles, a galera do dedo verde continua sujando a mão de terra e sonhando com dias melhores. Um baseado de cada vez.