Carlos Alves Dias, de 43 anos, trabalha há mais de uma década como “recolhe” do jogo do bicho em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. Todos os dias, ele percorre de motocicleta boa parte da Zona Norte da cidade. Então retira o dinheiro arrecadado com as apostas em cada ponto de jogo, geralmente bares ou mercearias, e leva até o escritório dos patrões.
Até 2019, Dias era empregado de Jamil Name, bicheiro que dominava a jogatina na capital do estado, em parceria com o Major Carvalho, como é conhecido o narcotraficante e ex-policial militar Sérgio Roberto de Carvalho. Como operavam em sintonia, não havia disputa de território. Até que as prisões de Name, em setembro daquele ano, e de Carvalho, em 2022, na Europa, deram espaço para disputas e conflitos desse mercado.
Segundo a Polícia Federal, Carvalho vendeu sua parte no jogo do bicho para Oseias Jovino da Silva, o Juruninha, o pai de uma figura-chave para esse conflito atual: Henrique Abraão Gonçalves da Silva, o Rico.
Até o fim da última década, Rico vivia em São Paulo, onde era dono de uma tabacaria no bairro da Liberdade. Foi para explorar o jogo do bicho que ele se mudou para Mato Grosso do Sul. Lá, batizou seu grupo de contraventores de MTS. O nome era uma abreviação atamancada do nome do estado, mas por trás dela havia outra sigla: o PCC, Primeiro Comando da Capital. O sócio oculto de Rico na empreitada, de acordo com a PF, era Leonardo Alexander Ribeiro Herbas Camacho, sobrinho de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, principal líder da facção paulista. A dupla vinha investindo no jogo do bicho também no Ceará, conforme a piauí revelou em junho.
Segundo a investigação, a transferência dos pontos do jogo do bicho dos Name para Rico foi avalizada por Fahd Jamil, notório contrabandista de Ponta Porã. Até os anos 1990, Fahd controlava a jogatina em todo o estado, mas decidiu deixar o ramo e dividiu nessa época os três maiores mercados sul-matogrossenses entre duas famílias: Jamil Name (que morreu na prisão em 2021, vítima de Covid) ficou com a capital; e o então deputado estadual Roberto Razuk, com os dois grandes mercados do interior, Dourados e Ponta Porã. Mesmo fora da operação, Fahd seguiu num papel de padrinho – por isso a importância de sua anuência para a entrada de Rico no negócio.
Rico contratou todos os 26 “recolhes” que pertenciam a Name com salário de 4 mil reais mensais. Carlos Alves Dias era um deles. Cada um percorria quarenta bancas de apostas diariamente para amealhar o valor arrecadado, o que gerava um montante bruto mensal de 5,4 milhões de reais, conforme estimativa do Ministério Público.
De olho nas cifras milionárias, porém, a família Razuk decidiu que era hora de avançar sobre a capital. Agora liderados pelo deputado estadual pelo PL Roberto Razuk Filho, o Neno, filho do patriarca Roberto, resolveram declarar guerra aos “paulistas” do MTS.
No meio do tiroteio, estava o “recolhe” Dias.
O telefone de Dias tocou em 15 de outubro de 2023, quando o “recolhe” já trabalhava para o MTS. Um conhecido o convidou para uma reunião na manhã do dia seguinte em uma casa no bairro Monte Castelo, Zona Norte de Campo Grande. Era uma proposta para virar a casaca: Dias receberia 3 mil reais mensais de salário, mais uma comissão de 5% do valor arrecadado, para trocar Rico por outro grupo de bicheiros. O “recolhe” quis então saber quem comandava aquele novo esquema. “É o Razuk”, disse um dos homens presentes, segundo depoimento de Dias ao Ministério Público, semanas mais tarde. Para confirmar o que dizia, o homem colocou Dias em videoconferência com o deputado, que estava em sua casa, no condomínio fechado Damha.
Na conversa, ainda conforme Dias, Neno reforçou o pedido para que o “recolhe” passasse a trabalhar com o grupo do deputado. Mas Dias demonstrou temor em trocar de lado. “Não é assim, do mesmo jeito que o senhor tá falando, dizendo pra mim que o senhor tem parte perigosa, a parte que eu trabalho também é complicada. […] O senhor tem que tirar o MTS daqui, senão não tem condições de trabalhar pra vocês”, declarou na ocasião, segundo seu relato à Promotoria.
Nesse momento, outro capanga de Neno Razuk disse ter contratado pistoleiros por 50 mil reais para assassinarem Rico. Assim que a videochamada com o parlamentar foi encerrada, o gerente de Neno, Gilberto Luiz dos Santos, o Barba, foi mais enfático: aquilo não era um simples convite. “De todo jeito você vai ter que trabalhar com nós, porque senão eu entro dentro da sua casa e tiro você lá de dentro, cara.”
A longa barba grisalha e o corpanzil davam a Barba um ar ameaçador. Major aposentado da Polícia Militar, ele foi investigado por integrar um grupo de extermínio formado por policiais militares na região de Dourados nos anos 1990, na companhia, dentre outros, do sargento Manoel José Ribeiro, o Manelão, também funcionário do grupo de Razuk. O grupo, porém, acabou inocentado tempos depois. Nessa nova investigação, em 2024, os promotores encontraram na casa de Barba uma anotação com os apelidos de três pessoas que, segundo o Ministério Público, deveriam ser assassinadas.
De acordo com os promotores que investigaram o caso, havia uma conexão direta entre a atividade criminosa e as ações parlamentares de Neno Razuk. Além de nomear os dois ex-PMs como assessores no seu gabinete na Assembleia Legislativa do estado, em 18 de outubro de 2023 um dos capangas de Neno pediu a um funcionário do gabinete do deputado para imprimir nas máquinas da Assembleia uma relação de pontos de apostas do rival MTS.
Apesar da intimidação, Dias deixou a casa sem dar uma resposta. Naqueles dias, o grupo de Neno Razuk buscava cooptar mais “recolhes” do MTS. Um deles era Ricardo Emanuel Machado da Costa Aragão.
Na manhã do dia 16 de outubro, mesmo dia da videochamada com Dias, Aragão foi chamado para uma conversa com Barba no escritório no bairro Monte Castelo. Barba, segundo depoimento do “recolhe” ao Ministério Público, mostrou a Aragão dezenas de máquinas eletrônicas de apostas no jogo do bicho e disse que em pouco tempo todas estariam em operação na capital. Assim como Dias, Aragão não deu resposta imediata sobre a nova proposta de emprego.
Veio então a retaliação. Às 12h35 daquele dia 16, Dias acabara de fazer o “recolhe” nos seus pontos da Zona Norte quando foi abordado por dois homens, um deles o ex-PM Manelão, que saíram de um automóvel dirigido pelo ex-major Barba. Com pistolas nas mãos, os dois obrigaram Dias a entregar o malote com todo o dinheiro arrecadado naquele dia, um total estimado entre 4,2 mil e 5 mil reais. Quinze minutos depois, foi a vez de Aragão ser rendido por outros assaltantes em outro automóvel, e ser obrigado a entregar o malote com 9 mil reais. “Fala pro seu chefe [Rico] procurar o Barba”, disse um dos ladrões, antes de fugir. Segundo a investigação, o grupo de Neno Razuk ainda roubou outro “recolhe” e um “apontador”, responsável pelo registro das apostas.
Após ser acionada, a polícia seguiu um dos automóveis utilizados nos roubos em série e chegou até o “quartel-general” do grupo de Razuk, justamente a casa de onde o deputado apareceu na videochamada com os “recolhes”. No local, segundo o registro da ocorrência, os policiais encontraram centenas de máquinas de registros de apostas do jogo do bicho, nove homens, incluindo Barba, Manelão e o “recolhe” Aragão, que após o assalto havia decidido aceitar a nova proposta (e que, por isso, recebeu de Barba 700 reais, dos 9 mil que havia no malote que ele próprio transportava e que fora roubado pelo grupo).
A disputa pelo bicho sul-matogrossense envolve criminosos de diferentes partes do país.
No mesmo dia do roubo do malote de 9 mil reais, já no período da noite, o deputado Neno Razuk recebeu no condomínio onde mora a visita de Jonathan Gimenez Grance, primo de um narcotraficante chamado Jarvis Pavão, que atuava na fronteira com o Paraguai até ser extraditado para o Brasil em 2017. Os promotores suspeitam que Grance fosse sócio do deputado na tentativa de tomar os pontos do bicho do MTS em Campo Grande.
Essa desconfiança é reforçada por um outro dado da investigação: entre os assaltantes dos “recolhes” estava o então policial militar Carlito Gonçalves Miranda, que havia sido preso em flagrante em 2018 com Grance em uma casa em Ponta Porã com um arsenal. Por conta desse flagrante, Miranda foi expulso da PM.
Dois dias depois dos roubos, Odiney de Jesus Leite Júnior, membro do MTS responsável pela fiscalização dos “recolhes”, conversou via WhatsApp com Wilson Souza Goulart, o Neguinho, do grupo de Razuk, sobre o episódio (as conversas foram encontradas pelos promotores no celular desse último). Leite Júnior reclamou dos assaltos aos funcionários do MTS: “Olha a linhagem desses caras… Roubando as motocas, metendo a máquina [arma] neles, e tomando dinheiro… vc acha certo isso??? Quando nós colocamos arma na cara de cambista ou funcionário?”, questionou. Leite Júnior disse ainda que a cabeça do patrão dele, Rico, já estava valendo 100 mil reais. “Vai morrer muita gente aí”, respondeu Neguinho.
A tensão entre os dois grupos aumentou. Em conversa de WhatsApp entre membros de MTS, em 9 de abril, encontrada pelos promotores no celular de um membro do grupo, um homem enviou uma foto de um bastão para outro integrante do grupo, seguido de um áudio: “O nome desse taco aqui é concorrência / Bichão, quero ver quebrar, aroeira pura.” Em seguida, o interlocutor respondeu: “Tá maluco, se pegar no antebraço, onde pegar quebra. Essa é top, hein.”
Apesar das ameaças mútuas, não houve mortes na guerra entre os dois grupos. Rico foi preso em 24 de abril deste ano pela Polícia Federal, em investigação dos esquemas de jogo do bicho e investimento em “bet” que ele e outros membros do PCC mantinham no Ceará. Os demais suspeitos de integrar o MTS foram denunciados à Justiça pelo Ministério Público, em outubro, por associação criminosa, exploração do jogo do bicho e lavagem de dinheiro. Ainda não há decisão da Justiça.
Já o grupo de Razuk foi alvo da Operação Successione, do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, em dezembro de 2023. Houve um mandado de busca nos endereços do parlamentar, enquanto os ex-PMs Barba e Manelão foram presos preventivamente – Carlito está foragido. Todos respondem a ação penal por associação criminosa armada, roubo e exploração do jogo do bicho, ainda não julgada.
No dia em que teve seus endereços revirados pelos promotores, o deputado Neno Razuk convocou uma coletiva de imprensa para rebater as acusações e defender a legalização do jogo do bicho. “Estamos na iminência de ser legalizado o jogo. O governo vem trabalhando desde o governo Bolsonaro. O governo Lula também tem proposta na Câmara. Tem proposta no Senado… É uma maneira de o Estado arrecadar.”
Em nota à piauí, a assessoria de Neno Razuk informou que o parlamentar tem colaborado com a Justiça. “Reiteramos nossa confiança na elucidação da verdade e afirmamos que não cometemos nenhum dos crimes mencionados.” Já a defesa de Rico disse que ele “apenas trabalha para empresários de jogos de São Paulo cujo ramo de atividade são bingos e bets” e que não há nos autos provas de que ele tenha ameaçado ou feito extorsões em Campo Grande. Por fim, os advogados de Barba, Cezar Lopes e Rhiad Abdulahad, disseram apenas que “os fatos narrados na denúncia não condizem com a verdade”, mas não quiseram entrar em detalhes alegando que o processo tramita em segredo de Justiça. As defesas dos demais citados na reportagem não foram localizadas.