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O olhar, a nova geração e Summer of Soul

Eduardo Escorel | 30 mar 2022_06h00
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A História do Olhar e A História do Cinema: Uma Nova Geração serem exibidos nas sessões de abertura do 27º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários parece uma declaração de princípios. Não sei se essa foi, de fato, a intenção ao optar pelos filmes de Mark Cousins, concluídos em 2021, para inaugurar o Festival amanhã (31 de março), em São Paulo, e sexta-feira (1º de abril), no Rio de Janeiro. Desconheço também quantos, entre os demais 75 títulos a serem exibidos no É Tudo Verdade atendem aos requisitos para virem a ser incluídos, no futuro, em um novo capítulo de A História do Cinema, narrado no que foi chamado de uma “inimitável voz encantatória” de Cousins: “[…] nossa história é sobre filmes mundo afora que desafiaram convenções, que inventaram maneiras inteiramente novas de fazer as coisas. Eles são os que renovaram o cinema, que nos mostraram coisas que não tínhamos visto antes”, além dos feitos por cineastas que adotaram o lema “estou bem aqui”.

Dirigido, filmado e escrito por Cousins, A História do Olhar começa e termina com Ray Charles. No primeiro plano, deitado na cama, sem camisa, tatuagens em profusão à mostra, Cousins assiste no iPhone a uma entrevista do famoso cantor, compositor e pianista, dada em 1972 no Dick Cavett Show:[…] há algumas coisas que talvez eu gostaria de ver uma vez … Eu vi as estrelas e a lua, e o sol e lembrei da minha mãe…  […] e em algumas notícias de que ouço falar hoje em dia há coisas que eu nunca vou querer ver. De verdade. E sinto pena de vocês que têm de tolerá-las (aplausos da plateia).” 

O diretor Mark Cousins em cena de A História do Olhar. — Foto: Reprodução

 

“O que ele diz é incrível para alguém como eu que sempre amou olhar”, comenta Cousins. E ao concluir o longo plano final de A História do Olhar, Cousins refuta Ray Charles. Vemos o reflexo da margem montanhosa na água translúcida do rio de Stonehaven, na Escócia. A aparência é algo gelatinoso difícil de identificar. Em off, Cousins diz: “[…] e percebi que Ray Charles estava errado. Ele disse ‘lamentar por aqueles de nós que têm de tolerar ver certas coisas da vida moderna’. Mas não precisamos tolerar o que vemos. Eu não tolero. Não é um fardo. É o oposto de um fardo. Qual é a palavra? Não consigo lembrar da palavra. Mas consigo imaginá-la.”

Esse saudável repúdio à obrigatoriedade de ver “certas coisas da vida moderna” vem se juntar, na reflexão de Cousins, à capacidade de “expandir” nosso olhar, permitindo ver “coisas que não tínhamos visto antes”, características dos filmes que ele valoriza.

Outro requisito essencial do realizador de documentários, para Cousins, é ter como lema o que Anand Patwardhan, diretor indiano de Reason (2018), disse em uma coletiva de imprensa convocada para defender o assassino de um ativista secular. Os defensores são “perigosos e poderosos”. De repente, ouve-se esta pergunta sobre Patwardhan:“Por que não quebraram Anand Patwardhan todo? Por quê? Quando esse tipo de coisa acontece ficamos com raiva.” Há um corte e, no plano seguinte, um homem de cabelo branco está de pé, ao lado de inúmeras câmeras além da sua, com fones nos ouvidos e o braço direito levantado – é Patwardhan que vem de ser ameaçado e diz: “Estou bem aqui. Faça o que quiser.” Segundo Cousins, “um dos momentos mais corajosos do cinema contemporâneo. O ‘estou aqui’ de Patwardhan poderia ser o lema de documentaristas no seu ápice.”

O diretor Mark Cousins. — Foto: Divulgação

 

Um dos grandes méritos de A História do Olhar é não apenas resultar da reação no calor da hora à pandemia, mas ser um ensaio na primeira pessoa autorreferente em que Cousins é o personagem principal. Quando o filme começa, ele está para ser operado no dia seguinte, após um diagnóstico de catarata e degeneração da mácula – uma ameaça à sua capacidade de olhar.

A ideia inicial, disse Cousins à Variety, era “fazer um filme detalhado sobre o olhar na ciência, no esporte e assim por diante. Mas então a Covid aconteceu, e muitos de nós tivemos que repensar tudo. Repensamos esse filme e percebi que estava filmando todos os dias há vinte anos e fiz milhares e milhares de planos. Meus produtores e eu percebemos que poderíamos fazer o filme sem viajar para lugar nenhum, usando o que eu tinha no meu computador e fazendo uma espécie de caleidoscópio.”

Para Cousins, “em especial durante o lockdown [2020], a maioria de nós não foi a muitos lugares e a maioria de nós não viu muitas coisas. Foi quase como estar em uma ilha de edição. Como estar dentro da nossa própria cabeça em um quarto escuro olhando imagens. Foi assim que senti o lockdown: uma edição muito longa. Então, tentamos preservar um pouco disso”.

Cousins considera A História do Olhar um de seus filmes mais otimistas, o que não surpreenderá quem tiver assistido à História do Cinema: Uma Nova Geração, continuação de 160’, otimista além da conta, dos 915’ dedicados aos quinze episódios da série A História do Cinema: Uma Odisseia (2011), inspirada, por sua vez, no livro homônimo de Cousins, publicado em 2004 e reeditado e revisto em 2011.

Na proclamação final de História do Cinema: Uma Nova Geração fica claro o grau de ingenuidade de que é capaz o premiadíssimo cineasta e crítico nascido na Irlanda do Norte, residente em Edimburgo. A oito minutos do fim, as indagações de Cousins pressupõem que em 2021 o mundo estava livre da Covid, o que não era o caso, nem parece que será tão cedo por mais que em alguns países, como o Brasil, a média móvel de óbitos e casos esteja em queda com variações negativas consistentes há dois meses. Mesmo assim, creio que suas ideias justificam a extensa citação a seguir:

“Será que nos transformamos a ponto de não sermos mais reconhecidos? Será que o vazio que veio em 2020, as ruas desertas, assim como passagens subterrâneas e aeroportos, mudaram as coisas? Vimos muito mais filmes durante o lockdown, mais comédias românticas, mais Netflix, mais TCM, mais Amazon Prime ou transmissões em rede nacional, ou outros serviços de streaming, ou mais filmes clássicos que amamos. E talvez alguns filmes que também expandiram a linguagem do cinema. E quando a vida pública voltou, caminhamos de novo para os cinemas. Não podíamos esperar para ver coisas maiores do que a vida. Planos e cortes, inovação e desejo. Depois de usar aquelas máscaras, o cinema parecia diferente. O distanciamento social parecia eletrizar o espaço, como se fosse um tracking shot, um travelling […] O cinema nos ajudou a ver de novo. Cidades, noites, movimento, amor fugaz. Nos lembramos da excitação dos filmes das treze últimas décadas […] Homem-Aranha no Aranhaverso era cinema no ciclo do enxágue, no ciclo da centrifugação. Mas aí nos deparamos com um novo cinema, cinema como este em Nova York. E esperamos que os pessimistas culturais estejam errados [meu grifo]. Mesmo em tempos difíceis, especialmente em tempos difíceis, vamos querer entrar no Aranhaverso. Na última década, o cinema aranhaverso cresceu. Mais pessoas estão fazendo filmes, mais tipos de pessoas com novos pontos de vista. Esses são nossos habitats [nesse momento do texto a imagem é de salas de cinema], nós, criaturas da escuridão. Esses são os lugares onde nossas vidas são iluminadas de novo. Onde vemos fantasia e sentimos medo. Onde nós encontramos os filmes. Voyeurismo enquadrado. Como em Holy Motors [de Leos Carax, lançado em 2012], o cinema, a coisa que nós amamos, está perto, é a sala ao lado. E, nessa sala, é sábado, sempre sábado […].”

É uma visão mítica, um tanto desesperada, do cinema. Cousins se apega à sua própria cinefilia, nos humilha com seu conhecimento enciclopédico de filmes, mas não nos convence de todo.

Como ignorar a sentença categórica de Ross Douthat (The New York Times, 25 de março), de acordo com a qual “nós não estamos apenas assistindo ao declínio dos Oscars; nós estamos assistindo ao Fim dos Filmes (The End of the Movies)”. Para Douthat, o que parece ter acabado é o “entretenimento na tela grande como a principal forma de arte popular americana, o motor central da celebridade americana, o espaço primordial de aspiração de atores e contadores de histórias americanos, uma igreja da cultura pop com seus próprios ícones e escrituras e ritos de iniciação adulta”. 

Em tempo: registre-se que nenhum filme brasileiro é mencionado em A História do Cinema: Uma Nova Geração, antologia do cinema inovador nas primeiras duas décadas do século XXI. A exceção é a referência, entre os clássicos, a Limite (1931), de Mário Peixoto. A omissão é sintomática da irrelevância que o cinema brasileiro atingiu em âmbito mundial e deveria se tornar objeto de nossa reflexão.

“Como é lindo!” – essa exclamação do ator e produtor Musa Jackson encerra Summer of Soul (…ou quando a revolução não podia ser televisionada). É lindo, de fato, o premiadíssimo documentário de Ahmir “Questlove” Thompson lançado em 2021. Realizado no Mount Morris Park (atual Marcus Garvey Park), em Nova York, no verão de 1969, as 40 horas do Harlem Cultural Festival gravadas em fitas de vídeo, na maior parte inéditas, ficaram guardadas em um porão, durante cerca de cinquenta  anos. Apenas duas horas foram veiculadas em dois especiais transmitidos na época pela CBS e ABC, e imagens de Nina Simone incluídas em documentários sobre a cantora. Ao contrário do Festival de Woodstock, realizado naquele mesmo verão a cerca de 160 km, o Harlem Cultural Festival foi esquecido: “Ninguém tinha interesse pelo show preto. Ninguém se importava com o Harlem.”

Cena do filme Summer of Soul. — Foto: Reprodução

 

Summer of Soul não tem linguagem inovadora, mas é um documentário musical raro de vigor contagiante. Talvez pudesse ser enquadrado em outra das categorias que Cousins destaca, a dos documentários “estou bem aqui”, afirmação nesse caso de uma imensa comunidade, um público em comunhão perfeita com artistas que se apresentam no palco:

“O Festival não era apenas de música. A energia era indescritível. A maior mudança era nos cabelos. Tratava-se de uma declaração política das comunidades preta e parda” – dizem participantes que consideraram um evento irrelevante o fato de um astronauta americano ter pisado na lua durante o Festival.

Summer of Soul foi exibido ao ar livre no início de novembro do ano passado, sem ter a repercussão que merece, na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, depois de ter ganho no Festival de Cinema de Sundance, em fevereiro de 2021, o Grande Prêmio do Júri e o Prêmio do Público na Competição de Documentários dos Estados Unidos.

Selecionado entre os cinco concorrentes ao Oscar de melhor documentário de longa-metragem, Summer of Soul “amplia o mapa da história cultural e social moderna, ao mesmo tempo em que põe em destaque grandes músicos cuja importância permaneceu por muito tempo ofuscada por heróis pop brancos. Eu acho que o filme será reconhecido pelo seu significado e também pelos prazeres que oferece”, previu Richard Brody na The New Yorker, em 21 de março. 

Afinal, na cerimônia de entrega dos Oscars, domingo passado (27/3), Summer of Soul recebeu o prêmio de Melhor Documentário de longa-metragem. Está disponível, no Brasil, nas plataformas Apple e Globoplay, e pode ser assistido no Espaço Itaú de Cinema, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

*

A partir do próximo sábado, 2 de abril, até dia 7, o Festival É Tudo Verdade exibe sete documentários brasileiros inéditos em competição. Haverá sessões presenciais em São Paulo e no Rio de Janeiro, além da possibilidade de assistir aos filmes na plataforma É Tudo Verdade Play. No dia da segunda exibição online, às 15 horas, debates com as equipes poderão ser vistos no canal do É Tudo Verdade no YouTube. Tendo assistido, no momento em que escrevo, a apenas dois desses sete filmes, deixo para comentá-los na próxima coluna, de 6 de abril.

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