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O Outro Lado da Memória – sonho impossível de André Luiz Oliveira

Cinema muitas vezes se mostra incapaz de produzir filmes à altura dos textos literários que os inspiram

Eduardo Escorel | 18 nov 2020_09h28
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O cinema tem o hábito de maltratar obras-primas da literatura ou, ao menos, de se mostrar incapaz de produzir filmes à altura dos textos literários que transpõe para a tela. Filmado múltiplas vezes e prevenido quanto aos riscos que corre, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), tem razões de sobra para resistir a continuar sendo castigado. Daí o célebre romance ter submetido Terry Gilliam ao suplício de ter a sua versão interrompida, em 2000, e cancelada a seguir. Até que Gilliam conseguiu, após várias tentativas frustradas, retomar e concluir O Homem que Matou Dom Quixote, lançado em 2018. O documentário Perdido em La Mancha, de 2002, registra as peripécias que levaram a primeira filmagem a ser suspensa alguns dias depois de iniciada.

No Brasil, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, publicado em 1956, sofreu uma primeira adaptação, em 1965, e pairou anos como um desafio a ser enfrentado. Bia Lessa transpôs para o cinema a adaptação cênica que fez, em 2017, e deu ao filme inédito o título Travessia (2019). Há duas outras adaptações previstas, uma com direção de Guel Arraes, a partir de roteiro dele e de Jorge Furtado, outra de Fernando Meirelles. Que essas novas produções possam ser levadas a bom termo e resultem em filmes de qualidade equivalente ao texto literário de origem é o que se pode desejar.

No entanto, o exemplo mais dramático entre nós de resistência à adaptação é mesmo o de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, obra de história social editada em 1933. Joaquim Pedro de Andrade seria o diretor do roteiro que escreveu, em 1986, ao qual deu o título de Casa-Grande, Senzala & Cia. – “relato épico de embates de toda sorte entre a gente muito variada de um novo território colonial”, nas palavras de Ana Maria Galano, organizadora do volume homônimo, editado em 2001. Apesar do extenso e minucioso trabalho de preparação, realizado durante um ano e envolvendo mais de cinquenta pessoas, incluindo viagem ao Nordeste, pesquisa bibliográfica, projeto de direção de arte e figurinos, testes de elenco etc. – malgrado esse empenho faltaram recursos para prosseguir. A produção foi interrompida e Joaquim Pedro morreu em setembro de 1988. Na breve carta dirigida a “JP” que Lúcio Costa mandou após a segunda leitura do “Roteiro”, ele escreveu que “é tão bem escrito e estruturado que dispensa complementação visual” – afirmativa que adquiriu, em retrospecto, conotação premonitória.

Em O Outro Lado da Memória (2018), André Luiz Oliveira recupera a experiência de ver seu grandioso projeto de transpor Viva o Povo Brasileiro para o cinema interrompido duas semanas antes do início previsto da filmagem, em 2005, após quase dez anos escrevendo o roteiro e trabalhando na preparação. Publicado em 1984, o romance histórico de João Ubaldo Ribeiro foi eleito “o grande livro da ficção brasileira dos últimos 25 anos”, em 2007, na enquete do blog Todo Prosa, de Sérgio Rodrigues, ele mesmo “um dos eleitores da obra-prima do autor baiano, livro que”, nas suas palavras, “consegue ser divertidíssimo e, ao mesmo tempo, de uma ambição vertiginosa”. Para surpresa de Rodrigues, porém, alguns amigos escritores ficaram indignados com o resultado da enquete e fizeram críticas contundentes a Viva o Povo Brasileiro.

O próprio André Luiz é o narrador de O Outro Lado da Memória. Falando em off na primeira pessoa, ele relata, nos primeiros minutos do documentário, que ao ler Viva o Povo Brasileiro no final dos anos 1980, “as imagens que emergiram dessa leitura despertaram […] uma memória de vivências e sentimentos antigos e com eles a necessidade de contar essa história. Eu não sabia como, nem quando, isso ia acontecer, muito menos que eu fazia parte dela”.

Registre-se que o título da edição em inglês de Viva o Povo Brasileiro, traduzida pelo próprio João Ubaldo e publicada em 1989, é An invincible memory (uma memória invencível), indicando de forma direta o tema subjacente do romance que André Luiz iria incorporar ao nome do seu filme.

Com o passar dos anos, “as imagens e emoções geradas pela leitura do livro foram ficando cada vez distantes, até que o acaso fez com que ressurgissem em um novo tempo, um novo espaço”, relata André Luiz. Em 1991, quando mudou para Brasília, reencontrou o amigo e produtor Marcio Curi, entusiasta como ele de Viva o Povo Brasileiro. Curi ficou encarregado de “buscar os meios para a produção do filme – o sonho adormecido do outro lado da memória”. Finalmente, nos primeiros dias de 1997, “num clima de muito entusiasmo”, André Luiz, Marcio Curi e o produtor Ronaldo Duque celebraram, no restaurante do Torre Palace Hotel, em Brasília, o compromisso de fazer o filme Viva o Povo Brasileiro – “Ainda consigo evocar a emoção daquele dia memorável”, narra André Luiz, “quando caiu a ficha de que realmente ia fazer o filme, até então um sonho impossível.”

Mas não, em vez de o sonho se tornar realidade, virou miragem, em 2005. André Luiz registra a ironia cruel de o Torre Palace, onde os produtores e ele comemoraram o pacto de fazer o filme, ter entrado “em colapso, em 2013, fechado por dívidas e questões na Justiça, e estar lacrado no coração da cidade”. Vemos imagens feitas de cima do prédio do hotel abandonado – evocação metafórica poderosa do que aconteceu com o projeto original de filmar o romance de João Ubaldo; e, ao mesmo tempo, vestígio arquitetônico contemporâneo que se soma aos resquícios históricos que seriam locações de Viva o Povo Brasileiro (em outubro passado, foi noticiado que o Torre Palace Hotel iria a leilão para pagar dívidas, com o lance mínimo de 35 milhões de reais, o processo devendo ser concluído até o próximo dia 26 de novembro).

André Luiz diz na narração de O Outro Lado da Memória que “nunca soube exatamente por que o filme parou. Eram muitas as ilações, mágoas, culpas e paranoias” – afirmação desconcertante, uma vez que o motivo de a produção ter sido interrompida é claro: faltaram recursos para financiar o ambicioso projeto. De qualquer modo, foi esse desconhecimento confesso do diretor que o levou a procurar “descobrir as causas que minaram a realização do filme” e, além disso, procurar “saber o que me impedia de mostrar a formação da alma do povo brasileiro e a sua imagem como protagonista da sua própria história”, motivações que acabaram levando a O Outro Lado da Memória.

No documentário não há indicação, porém, de que em 2005, terceiro ano da primeira Presidência Lula, Gilberto Gil sendo o ministro da Cultura e Orlando Senna o Secretário do Audiovisual, houvesse no governo federal alguém que pretendesse impedir Viva o Povo Brasileiro de ser realizado conforme concebido por André Luiz. Pelo contrário, o produtor Ronaldo  Duque declara no documentário: “Essa decisão era minha. Rodar ou não rodar. E aí? Eu, com medo, disse: ‘não roda.’”  

O que parece ter havido foi mesmo uma aposta perdida, algo comum na produção cinematográfica, especialmente em países carentes de meios adequados de financiamento – filmes começam a ser produzidos, e gastos vultosos a serem feitos, sem estarem assegurados recursos integrais necessários, conforme planejado no orçamento. Solução usual é fazer o filme com menos do que previsto. Outra alternativa é interromper o trabalho até obter o complemento financeiro requerido, o que pode demorar, ou sequer ocorrer, levando a produção a ser prorrogada indefinidamente ou cancelada.

Rememoração de um filme que não chegou a ser feito, O Outro Lado da Memória tangencia questões que seriam tratadas no filme Viva o Povo Brasileiro. Permite, ao mesmo tempo, vislumbrar fragmentos inventivos da encenação do filme em preparo. Colhe, além disso, uma série de depoimentos sobre o romance de João Ubaldo e o tema da memória. Acima de tudo, porém, revela o martírio que representa ter um filme cancelado após vinte anos de trabalho. Ter feito O Outro Lado da Memória parece ter compensado, em certa medida, esse enorme sofrimento. Próximo ao final, André Luiz nos diz: “Não acreditava que havíamos errado tanto ou que forças sinistras haviam boicotado a realização do filme. Permaneci nesse estado por um tempo, até entender que a história do povo brasileiro era muito maior do que nos fizeram crer… que eu precisava seguir adiante e buscar essa memória que também era minha.”

As múltiplas virtudes de O Outro Lado da Memória não impedem o documentário de resultar excessivo – longo, repetitivo, laudatório, ingênuo etc. Ainda assim, permanece firme, de pé. André Luiz pode se orgulhar por ter persistido e chegado vitorioso ao fim da epopeia.

Exibido na Mostra Brasília do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2018, O Outro Lado da Memória foi um dos três longas-metragens premiados com o Troféu Câmara Legislativa do Distrito Federal. Foi exibido também na 14ª Mostra Cinema Conquista 2019, em Vitória da Conquista, Bahia. E será exibido online nos próximos dias 20 e 27 de novembro, às 21 horas, no 7º Festival Internacional Cinema e Transcendência, promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil (http://festivalcinemaetranscendencia.com/).

O Outro Lado da Memória – Foto: Luis Abramo/Divulgação

 

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O Forumdoc.bh.2020, um dos mais importantes festivais de cinema do país, começa amanhã, dia 19, e segue até 28 de novembro, integralmente online e gratuito. A equipe curatorial da Mostra Contemporânea Brasileira selecionou 36 produções, organizadas em 12 sessões, que refletem questões urgentes do nosso tempo. Entre os diretores selecionados mais conhecidos estão Beto Brandt, Carlos Adriano, Vincent e Rita Carelli. A relação completa da Mostra está disponível em http://www.forumdoc.org.br/selecao-mostra-contemporanea-brasileira-forumdoc-bh-2020/ .

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Na próxima terça-feira, 24 de novembro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Carol Benjamin, diretora de o documentário Fico Te Devendo Uma Carta sobre o Brasil, exibido no início de outubro na mostra competitiva do 25º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, no qual recebeu menção honrosa. O acesso à conversa de terça-feira, 24 de novembro, às 11 horas, poderá ser feito através do link https://youtu.be/fp5_VNhlxIc .

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Amores Cubanos, série de treze episódios de Alice de Andrade, estreou em 9 de novembro e prossegue às segundas-feiras, no Canal Brasil, às 17h35, com reprises às quintas-feiras, às 13h30, e sextas-feiras, às 7h.

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A Febre, de Maya Da-Rin, que estreou em 12 de novembro, continua em exibição no circuito de salas de cinema após uma carreira triunfal, no ano passado, em festivais mundo afora, tendo recebido diversos prêmios de melhor filme e melhor direção, entre outros. O filme está disponível também no streaming (Net Now, Vivo Play e Oi Play). A partir do dia 20, estará também no Google Play, Youtube Filmes e Apple TV. Estão programadas atividades voltadas para o público indígena, coordenadas pela curadora Naine Terena, e exibições remotas em algumas aldeias.

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