No dia 31 de março deste ano, a administradora Rosi Silva, de 41 anos, obteve na 7ª Vara da Família e Sucessões de São Paulo o direito de pensão de alimentos contra o padre Marcos de Miranda, em benefício de uma criança de 2 anos e meio. Segundo mensagens trocadas nas redes sociais entre Silva e Miranda incluídas nos autos do processo, o garoto é fruto de um romance de dois anos entre eles. O padre e Silva se conheceram em 2009 no Santuário de São Pancrácio, mas apenas em 2016 engataram um romance, quando ele estava à frente da paróquia Santa Terezinha do Menino Jesus, no bairro paulistano de Pedreira. Como o padre se recusou a fazer o teste de DNA, a Justiça determinou o pagamento da pensão, fixada em três salários mínimos mensais, 3.300 reais em valores de hoje.
Um resultado negativo do exame de DNA encerraria o caso. No processo não consta advogado de Miranda, nem mesmo um advogado da Diocese de Santo Amaro, à qual a paróquia é ligada. Em janeiro, a piauí mostrou que Miranda foi afastado da paróquia depois que Silva levou ao Tribunal Eclesiástico denúncia sobre o relacionamento e a criança. O afastamento foi justificado por desobediência: a diocese pediu que o padre fizesse o teste de DNA e Miranda recusou.
Silva também cobra indenização de 2 milhões de reais de padre Miranda, de seu chefe direto, o bispo Dom José Negri, e da Diocese de Santo Amaro. Como a ação de alimentos, o processo de indenização é sigiloso, por envolver menores. Corre na Vara Cível do Foro Regional II de Santo Amaro. Guilherme Dudus, advogado criminalista que representa Silva, diz que as três partes têm responsabilidade solidária, porque o bispo tomou conhecimento do romance em 2019 e porque, segundo o advogado, Miranda usou a estrutura da Igreja e inflamou a população contra sua cliente. O advogado justifica o alto valor. “Ela tem sido vítima de dano moral, tortura psicológica, ameaças físicas, perseguição digital e abuso de poder religioso”, afirma. O caminho inicial não era procurar a Justiça comum, mas o caso ganhou contornos tumultuados.
“Só cheguei a esse ponto após receber ligações com ameaças, ter sido atacada por fiéis fanáticas na porta de casa e ter sido abandonada pela própria igreja quando pedi socorro”, disse Silva à piauí. “Recorrer à Justiça foi a única forma de buscar, acima de tudo, proteção.” A administradora disse ainda que, quando descobriu a gravidez no primeiro semestre de 2018, avisou a Miranda de imediato e ficou surpreendida com a reação dele: pedir um aborto. Ela se recusou. Seu objetivo era ter um filho que soubesse a identidade de seu pai e crescesse com amor, sem tornar a relação pública. Naquele momento, não cogitou pedir o reconhecimento civil.
Segundo Silva, ela e o padre Miranda não usavam métodos contraceptivos. O estado de saúde dela fazia com que a fertilidade parecesse algo distante. O romance iniciado entre a fiel e o religioso surgiu justamente quando ela, depois de ter passado por um câncer no sistema linfático e um divórcio, estava debilitada e com depressão. Além disso, ela tem endometriose, quando a mucosa que reveste a parede interna do útero cresce de forma irregular e compromete a fecundação por métodos naturais.
Uma semana após contar ao padre sobre a gravidez, Silva disse que passou a ser ameaçada por perfis anônimos em rede social e por ligações em seu celular. Os recados eram parecidos: diziam saber da relação com o padre e faziam ameaças físicas, de que se não sumisse da vida do religioso seria executada. Ela mostrou as mensagens ao padre, quando recebeu dele a orientação de não prestar queixa para a polícia.
A barriga foi crescendo à medida que as ameaças se intensificavam. Silva passou a sofrer síndrome do pânico. Sua filha de um primeiro casamento, então com 15 anos, recebeu ameaças pelo Facebook. Quando o bebê nasceu, Silva pediu ao seu ex-marido, Claudio Ribeiro, para registrar a criança. “Eu não queria que meu filho passasse pela humilhação de não ter um pai em seu RG. Pensar em ir a uma consulta médica tendo um filho com a documentação incompleta me machucava.” O ex-companheiro aceitou.
Três meses após o parto, ela procurou o padre para que ele conhecesse o bebê. A conversa começou de forma fraterna. Os três tiraram fotografias e falaram de semelhanças físicas entre as partes. O clima não foi o mesmo no encontro seguinte, semanas mais tarde. Dias depois, o bebê foi internado para tratar um problema no coração. Silva procurou o padre Marcos após a missa de domingo. “Eu estava desamparada, com filho no hospital e sem forças. Ele então tentou tirar o celular da minha mão – onde havia histórico de mensagens e fotos – mas não conseguiu desbloqueá-lo. Quando peguei meu celular de volta e ele apertou os meus braços, olhei nos olhos dele e perguntei: ‘então você vai me bater aqui dentro da igreja?’”
Três dias depois, Silva teve uma reunião na sede do Tribunal Eclesiástico de Santo Amaro em uma reunião com o bispo Dom José Negri. Depois que ela relatou o romance e o filho e contou que tinha sido ameaçada pelo padre até com uma arma, o bispo disse, segundo Silva, que o padre Marcos precisaria procurar um psicólogo. “Procurar a igreja foi a alternativa que encontrei para parar os ataques e ameaças simplesmente por meu filho carregar o sangue de um padre.”
Italiano de nascimento, Negri, além de bispo da Diocese de Santo Amaro, que soma 110 paróquias, 200 padres e 370 religiosos, também dirige uma comissão que apura abusos cometidos contra crianças e adolescentes no meio eclesiástico aqui no Brasil. Silva não se sentiu acolhida ao expor o seu relato, em julho de 2019. Nada foi feito nos meses seguintes, até Silva agendar nova reunião com um padre do Tribunal Eclesiástico – ocasião em que ela chegou com um pen drive com mensagens e ameaças que disse ter recebido do padre Marcos. Era novembro de 2019. Em dezembro de 2020, um ano depois, ela foi informada de que, em razão de o padre se negar a fazer o teste de DNA, ele seria afastado por desobediência.
Ao tomar conhecimento de que Silva procurou seu chefe direto, o padre Miranda fez uma cópia da certidão de nascimento da criança em que consta o nome do ex-marido de Silva na filiação. Esse documento foi distribuído na paróquia. “Fui atacada em rede social e algumas pessoas divulgaram endereço da minha casa, onde apareceram mulheres me atacando e fazendo um escândalo”, lembra. Ela precisou mudar de endereço.
Quando a denúncia ao Tribunal Eclesiástico veio à tona, Miranda foi procurado pela piauí, em janeiro deste ano. Ele iria celebrar uma de suas últimas missas. Negou qualquer relacionamento amoroso com Silva e, portanto, que fosse pai da criança. Não quis responder o motivo de não fazer o teste de DNA, como pediu o Tribunal Eclesiástico. Afirmou ser vítima de um grande complô e que a verdade apareceria.
Por causa da decisão da pensão alimentícia e a ação de indenização, a piauí entrou em contato com a Diocese de Santo Amaro. Dias depois, Silva e seu advogado, Guilherme Dudus, receberam ligações com ameaças anônimas. “Um homem ficou uma hora comigo ao telefone para exigir que tirássemos as ações contra o padre Marcos. Eu gravei toda a ligação, que irei juntar aos autos”, diz Dudus. Silva recebeu uma mensagem por WhatsApp com a foto de sua atual residência.
Com o afastamento do padre, Silva foi procurada pelo ativista irlandês Vincent Doyle, fundador da Coping International, entidade fundada em 2014 para apoiar filhos de padre e suas demandas por Justiça frente à Santa Sé. O próprio Doyle é filho de um padre. “O caso da Rosi é particularmente preocupante por envolver uma criança pequena e ameaças à sua mãe”, explicou Doyle, que nesta semana levou o caso de Silva ao Vaticano.
Após três anos de criação, a Coping International recebeu relatos e pedidos de ajuda de 13.500 pessoas, de 175 países diferentes, que chegaram ao site pesquisando as seguintes combinações de palavras no Google: “filhos de padres”, “meu pai é um padre”, “estou grávida e o pai é um padre católico” e “os filhos secretos dos padres”. “Estimativas conservadoras apontam que existam pelo menos 15 mil filhos de sacerdotes em todo o mundo”, diz Doyle.
Última nomeação do papa Francisco no Brasil, Leonardo Ulrich Steiner tomou posse como arcebispo de Manaus em janeiro de 2020. Seu mantra tem sido a necessidade de a igreja estabelecer um diálogo com a sociedade, cujas demandas recentes passam necessariamente pelos direitos das mulheres e do combate ao assédio. Sem mencionar o caso específico de Silva com o padre Marcos de Miranda, o arcebispo Steiner, ex-secretário geral da CNBB, concedeu uma entrevista à piauí para falar dos desafios da Igreja Católica. “Apurar as denúncias é um dever ético e moral. Não porque existe uma lei, mas porque estão em jogo vidas, pessoas. Também porque há necessidade de cuidado e acompanhamento psicológico das pessoas envolvidas”, diz.
O arcebispo de Manaus analisa os últimos movimentos do Vaticano como positivos para coibir assédios e melhores investigações internas. “Em algumas dioceses, criou-se um grupo de pessoas para acompanhamento psicológico para crianças que sofreram abusos, pois é uma questão que atinge a sociedade, não apenas a Igreja.”
Para o advogado Guilherme Dudus, que representa Silva, ao lado da advogada Maristela Basso, que representa Claudio Ribeiro (ex-marido de Silva e pai constante do registro de nascimento da criança), a Igreja Católica permitiu o abuso de poder por parte de Marcos de Miranda por não fazer uma investigação aprofundada, imparcial e célere. Transferiu, assim, toda a responsabilidade do ônus da prova à denunciante. Entre tomar conhecimento e o afastamento de Marcos de suas atividades, mas ainda recebendo salário da igreja, levou um ano e meio.
Procurado pela piauí, o bispo Negri não quis se manifestar. Seu advogado Daniel Rosa Gilg informou por e-mail: “Até o presente momento, a Mitra Diocesana de Santo Amaro não recebeu citação ou tem conhecimento de qualquer tramitação de processo judicial sobre o assunto relacionado ao padre Marcos. A Diocese de Santo Amaro está comprometida com o devido processo legal e se manifestará nos autos quando da citação.” Já o padre Marcos de Miranda segue como presidente do Instituto Amigos da Fé, organização social criada por ele que funciona dentro do Santuário Mãe de Misericórdia, no bairro da Capela do Socorro, e realiza trabalhos sociais dirigidos à população carente daquela região da Zona Sul de São Paulo. Desta vez, não quis dar entrevista à piauí nem respondeu às perguntas enviadas por WhatsApp, nas quais foi questionado sobre a natureza de seu relacionamento com Silva, sua recusa em fazer o DNA e as ameaças relatadas por Silva no processo e ao Tribunal Eclesiástico.