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O paradoxo do democrata

As armas para defender as instituições são inúteis num governo que não acredita nelas

Lucas de Abreu Maia | 27 out 2018_07h00
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Jair Bolsonaro quase certamente será eleito amanhã presidente da República. A democracia brasileira provavelmente não sobreviverá. E nós, que acreditamos nela, nada temos a fazer, porque nossas armas não têm efeito no autoritarismo.

Não é alarmismo. É probabilidade. Uma das ferramentas mais poderosas de um cientista político para entender um regime é analisar como diferentes instituições, em diferentes países, afetam as decisões tomadas por um governo e seu povo. E quando comparamos Bolsonaro a seus pares em outros países e através da história, há uma só conclusão: não sabemos qual será o caminho tomado, mas as instituições democráticas brasileiras acabarão nocauteadas.

Candidatos populistas de direita, que prometem soluções fáceis para problemas complexos – como recessão econômica e violência – colocando a culpa em minorias raciais, étnicas, econômicas e sexuais quase invariavelmente tornam-se autocratas depois de eleitos. Ocorrem-me apenas duas exceções: Andrew Jackson, eleito presidente dos Estados Unidos em 1828, e Donald Trump. Na medida em que o governo americano é uma democracia, ela sobreviveu a esses dois presidentes com claras tendências autoritárias – embora o dano causado por Trump às instituições americanas, vale lembrar, ainda seja uma questão em aberto.

Os exemplos de autoritários que conseguiram de fato levar a cabo seu autoritarismo, porém, são muito mais numerosos e incluem casos de países com instituições mais sólidas que as brasileiras. Vão da Polônia às Filipinas; de 2018 a 1933.

E, conforme apontaram Steven Levitsky e Fernando Bizarro em artigo na Folha de S.Paulo, Bolsonaro manifesta ideias mais autoritárias que o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, ou até mesmo o autocrata favorito da direita brasileira, Hugo Chávez. O que todos esses nomes têm em comum? Eles conseguiram neutralizar as instituições democráticas em seus países a ponto de torná-las irrelevantes. Muitos deles governam países com um histórico democrático mais sólido que o brasileiro. A Hungria, por exemplo, era um suposto caso de sucesso de redemocratização pós-comunismo. Orbán, no entanto, conseguiu obliterar a oposição mesmo com a poderosa União Europeia a lhe vigiar por cima do ombro.

Por que com Bolsonaro haveria de ser diferente? Nossas instituições são mais sólidas? Alguém quer mesmo apostar nisso?

O caminho tomado por Bolsonaro ninguém pode prever. Colocará tanques nas ruas? Passará medidas no Congresso que tiram poder dos órgãos de fiscalização? Aparelhará o Judiciário? Usará o apoio popular das urnas para banir a oposição? Não faço ideia. Ninguém faz ideia. Quem disser o contrário está mentindo ou se autoiludindo. E a questão é justamente essa; diante da incerteza, nosso melhor recurso é a probabilidade. E casos semelhantes indicam que, por uma via ou por outra, a democracia brasileira não passará incólume.

Pior: Bolsonaro sequer foi eleito e já usa o discurso ditatorial abertamente. Na última semana de campanha, quando a estratégia eleitoral manda que ele tente unificar o país, ele fala em banir os opositores. A cara do próximo governo não poderia estar mais clara.

Na verdade, como apontou Marcos Natali em artigo neste domingo na Folha, o fascismo já chegou. Se o fascismo tradicional se caracteriza pelo envolvimento de segmentos inteiros da população com a violência, por meio de milícias, para a manutenção da ideologia, o fascismo já chegou. Chegou para negros, mulheres, gays, pessoas trans, indígenas e imigrantes. Chegou para jornalistas. Chegou para quem os fascistas querem que chegue.

O paradoxo maior é que não resta a nós, democratas convictos, nada a fazer. Bolsonaro terá sido democraticamente eleito e temos a obrigação – democrática – de reconhecer isso.

Nos próximos anos, escreveremos contra o arbítrio. É isso que devemos fazer, porém de que adianta escrevermos se tudo o que nega o fascismo é, na definição neofascista, fake news?

Enquanto pudermos, usaremos as ruas e as instituições para apontar para o autoritarismo crescente. Porém, de que adiantam as ruas se, na definição fascista, o inimigo é todo aquele que o critica? De que adiantam as instituições se, na definição fascista, todas as instituições que não estão em função do fascismo são ilegítimas?

Palavras podem muito pouco contra quem segura em armas.

Cabe perguntar de quem é a culpa de chegar onde chegamos. A culpa é, obviamente, de quem é fascista e de quem só estava esperando uma oportunidade para convencer os não fascistas a eleger um fascista.

Mas a culpa também é dos nada fascistas, mas que se omitirão, por ódio irracional de um partido político legítimo, e assim se recusam a votar explicitamente contra o fascismo.

Muita da culpa é de parte do tucanato que, por egoístas cálculos políticos, não declarou apoio ao único candidato democrata neste 2º turno. Como se houvesse futuro político possível para democratas como Geraldo Alckmin e Fernando Henrique Cardoso sob o fascismo. Tem, sim, culpa o PSDB por, sobretudo, ter apoiado um impeachment mequetrefe e assim contrair a doença que agora colocou o partido na UTI. Tem culpa por, em 2010, ter aberto a caixa de Pandora das fake news ao dizer que Dilma Rousseff seria “a favor de matar criancinhas”. Tem culpa por, já em 2018, diante da ameaça fascista, ter feito campanha comparando os dois candidatos que agora estão no 2º turno, tornando equivalente o que é muito diferente.

Talvez a maior culpa seja mesmo do PT, por ter achado que não precisaria do engajamento do resto da esquerda para ganhar a eleição, por ter sabotado internamente a campanha de Fernando Haddad desde o primeiro minuto, por sequer ter se empenhado a efetivamente construir a tal frente democrática. Por ter arruinado a economia a tal ponto que conseguiu canalizar o ódio ao partido num movimento concreto. Por achar que o povo se deixaria levar por um estelionato eleitoral. Por achar que conseguiria se eleger com uma pauta udenista de combate à corrupção e depois roubar desenfreadamente por catorze anos, sem que o povo punisse a roubalheira.

A culpa é do colunismo ingênuo ou desonesto, que primeiramente fingiu que fascismo não era fascismo e, depois, proclamou que petismo e fascismo eram comparáveis; que insistiu num mea-culpa do PT como se isso fosse possível numa campanha eleitoral – e como se fosse aceitar qualquer mea-culpa vindo do PT.

A culpa foi também de nós, repórteres, porque cobrimos o governo petista sob a máxima cretina de que jornalismo é sempre de oposição – como se o compromisso do jornalismo não fosse sempre com a verdade, e a verdade não fosse nem de situação nem de oposição. É nossa, porque naturalizamos, sim, o fascismo, desde 2011, ao darmos voz a um deputado outrora politicamente irrelevante, ainda que em tom de piada.

E a culpa também é nossa, dos movimentos sociais minoritários, por não termos nos dado ao dificílimo trabalho de convencimento de que nossas vidas e corpos e vozes são importantes e precisam ser preservados. Celebramos os direitos que alcançamos, mas esquecemo-nos de que, numa democracia, qualquer direito só vale enquanto a maioria assim permitir.

Mas o maior problema mesmo é que a culpa não é majoritariamente de ninguém. O mundo inteiro vive um processo de deslegitimação da democracia representativa que começou há mais de uma década com a extrema direita na Europa e hoje está gerando suas primeiras consequências concretas. E ninguém, nenhum filósofo ou cientista político ou economista ou sociólogo, sabe lidar com ele.

Cabe, sim, perguntar de quem é a culpa, para que, quando continuarmos com a lenta missão de persuadir a maioria de que a democracia vale à pena – tudo o que podemos fazer, afinal –, não repitamos os mesmos erros. Da última vez, essa missão levou 25 anos. Resta-nos torcer para que, desta, leve bem menos.

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