Um dos livros que mais gostei de ler nos últimos tempos foi a autobiografia de Stephan Zweig, O tempo de ontem, escrito no Brasil durante o exílio do escritor nos conturbados anos da Segunda Guerra. Zweig foi uma celebridade literária num tempo em que a literatura era cultuada como uma espécie de dádiva divina, e no qual escritores e artistas eram ouvidos como verdadeiros oráculos da humanidade (e não os economistas). Pertenceu a uma geração que cultuou o sonho de uma Europa unificada espiritualmente, uma Europa feita por nações-irmãs empenhadas numa civilização aberta e maleável, um sonho que respirava a ousadia cultural da Viena do início do século, ou a liberdade individual da Paris do mesmo período. Um sonho pouco acessível ao “resto do mundo”, certamente, pois ignorava as razões materiais da bonança européia, sua empresa colonial, sua riqueza erigida sobre, entre outras coisas, séculos de parasitismo. Mas ainda assim um sonho com alguma beleza. As descrições da Viena de Freud, Klimt e Mahler, da cidade boêmia emanando um delicioso clima de libertinagem, freneticamente agitada em torno da vida cultural – financiada, diga-se, pelo judeus da burguesia local – são fascinantes. E fascinantes também são as descrições que Zweig faz dos seus encontros com grandes personalidades artísticas da Europa: seus passeios com o poeta Rilke pelas ruas de Paris; a visita ao ateliê de Rodin; as conversas com Thomas Mann; o encontro com Richard Strauss, etc…
A matança sem precedentes da Segunda Guerra destruiu o sonho da geração de Zweig. De lambuja, jogou no ralo da história os escombros da Europa que ele tanto amou e viveu na sua juventude. Exilado e desconsolado, o escritor se suicida pouco depois de completar a obra. O tempo de ontem é um livro sobre a derrota, tanto no plano pessoal quanto no plano histórico. É também, em certo sentido, um livro sobre o modo como uma série de sinais que anunciavam a barbárie por vir foram ignorados por um otimismo sem fundamento, irresponsável, por uma frivolidade mal colocada. Por uma incapacidade de levar a sério ameaças que pairavam no ar. Em meados de 1914, pouquíssimos acreditavam que a Europa pudesse entrar em guerra; depois que entrou, pouquíssimos acreditavam que ela fosse durar por mais que alguns meses; e assim por diante.
Esse ponto foi colocado num interessante artigo de André Lara Resende sobre o otimismo, publicado na revista piauí, no qual o livro de Zweig é mencionado para ilustrar o fato de que, ao contrário de crença firmemente estabelecida, a história não anda necessariamente para frente. Pode, sim, andar para trás, em renitente e inabalável retrocesso. Outro ponto fundamental é que a narração detalhada de Zweig desfaz também a associação automática entre progresso tecnológico/científico e progresso social. Num piscar de olhos todos aqueles itens que serviam a princípio ao aprimoramento e conforto da humanidade tornam-se armas de vigilância, domínio e destruição. Walter Benjamin refletiu lindamente sobre isso no texto Experiência e pobreza, evocando a cena de soldados que subitamente se encontram num campo de batalha, sendo destroçados por poderosas máquinas tecnológicas. Um paradoxo criado pelo historiador Jacob Burkhardt poderia ser usado para descrever tal situação: quanto mais complexas se tornam as condições materiais de uma sociedade, mais rudimentares se tornam suas relações sociais. Talvez estejamos, hoje, no centro desse paradoxo, num momento no qual inovações tecnológicas que reconfiguram nossas vidas convivem lado a lado com um sentimento doloroso de declínio das relações humanas.
Ninguém quer viver numa era de retrocessos. No entanto, é difícil evitar tal impressão, uma vez que se entra no fluxo das informações. Outro preconceito corrente é achar que o simples acesso a mais informações irá, por si só, conduzir a melhoras. Mais uma vez o quantitativo prevalece sobre o qualitativo. Somos soterrados por narrativas simplórias e pontuais, que não chegam a articular uma compreensão do contexto no qual essas coisas ocorrem. Desastres ambientais, ataques terroristas, desemprego em massa, abusos humanitários, crise urbana, crise econômica – poucos conseguem enxergar os fios invisíveis que a tudo isso religa na complexa teia do real. O efeito é antes de confusão, desânimo e impotência. Aliás, nenhuma palavra é tão usada, hoje, quanto “crise”. E talvez nenhuma outra esconda tanto da realidade atual quanto ela. Há um sentido elástico no termo, que pode ser bastante enganador. “Crise” dá a entender que as coisas estão provisoriamente num estado ruim, e que logo serão reconduzidas numa direção apropriada, benéfica. Pode ser. Mas pode ser também que a palavra esteja sendo usada para encobrir mudanças mais fundamentais. Enquanto o termo “crise” vai sendo usado, vamos nos acostumando a um achatamento das expectativas, vamos nos resignando ao fato de que a vida será mais difícil, insegura, pior. Pode ser que os empregos tomados jamais sejam devolvidos (pelo menos não integralmente). Pode ser que estejamos vivendo, muito simplesmente, um encolhimento econômico da classe média, uma redução dela, em prol do famoso 1% – essa é a tese de alguns teóricos. O termo “crise” ameniza os ânimos, segura a indignação; afinal, vai passar.
Tudo o que escrevi acima não impede uma visão otimista sobre o futuro. É preciso ter em mente que otimismo e pessimismo são atitudes que trazemos para a análise dos fatos, não conclusões geradas por essa análise. Creio, além disso, que um otimismo verdadeiramente saudável pressupõe a capacidade – e a força – de encarar de frente os fatos mais desagradáveis de nosso tempo. Um exemplo: nosso modelo civilizatório está destruindo o planeta. Outro exemplo: há trinta anos o mundo vem se tornando a cada dia mais desigual. O otimismo sábio encara sem medo tais fatos, e retira da negatividade deles o alimento de sua própria esperança. Há também um tipo mais comum de otimismo, o otimismo tolo. É desse otimismo que se aproveita a classe dominante para manter tudo exatamente como está. Trata-se de um otimismo sem fundamento, vazio, que pode ser visto em profusão na publicidade. Great times are coming, dizia certa campanha da Budweiser, sobre música de Davi Ghetta. Outras campanhas dizem que basta andar um pouco mais de bicicleta e plantar uma árvore que tudo fica bem.
E há, finalmente, os pessimismos. O mais comum é o do tipo catastrofista, que não raro descamba para o franco niilismo. Como nos versos de Drummond, a injustiça do mundo não se resolve; melhor seria acabar com tudo isso. É um pessimismo chapado, sem nenhuma concessão à qualquer tipo de esperança. A ele deve ter sucumbido Zweig quando cometeu o ato extremo. Trata-se do pessimismo que tomou conta de grande parte do pensamento crítico de esquerda, muitas vezes imobilizado sob o peso de jargões como “capitalismo”, “sociedade de consumo”, “espetáculo”, “ideologia”, “alienação”, etc… O resultado é uma repetição sem fim, nauseante, dos mesmos diagnósticos e previsões – que quase sempre, diga-se, são bastante convincentes. O problema desse pessimismo é seu cansativo tom de resmungo, tom excessivamente cinza, lamentoso, que desdenha o que ainda floresce. Na base está um julgamento feroz e idealista, que se ancora na comparação amarga entre o que “o mundo deveria ser” e o que “o mundo é”. As expectativas são tão altas quanto as frustrações. O ressentimento fatalmente entra em cena. Alguns, por pura vaidade de profeta, chegam mesmo a desejar a derrocada total de tudo. As energias geradas por esse pessimismo choramingão são de baixa qualidade; levam rapidamente ao fastio, ao cansaço, a uma perda de sentido; ao niilismo.
O pessimismo deve saber cantar. Como escreveu T.J.Clark, precisamos de um pessimismo exultante. Curiosamente, quando isso acontece, ele se identifica com o próprio otimismo sábio. Essa foi uma das grandes lições que aprendi com a música popular brasileira. Certa vez, Caetano Veloso evocou as diferenças e continuidades entre bossa nova e tropicalismo em termos semelhantes: enquanto a primeira indicava um “otimismo trágico”, o segundo vibrava um “pessimismo alegre”. São concepções que remetem, evidentemente, à filosofia de Nietzsche. Olhar para os descaminhos e ruínas do mundo contemporâneo e sentir o sangue circulando nas veias. Perceber novas promessas que surgem em meio aos escombros. Sabê-las frágeis, falíveis, e ainda assim belas. Creio que seríamos imensamente beneficiados pela reabertura franca da dimensão trágica em nossas vidas. O trágico é uma superação da ansiedade e do desespero despertados por um mundo de agudas incertezas.
Nas últimas semanas tenho pensado muito nas músicas de Gilberto Gil. Tempo Rei, por exemplo, nunca me pareceu tão atual. “Não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido, transcorrendo, transformando, tempo, espaço, navegando em todos os sentidos”. Ou: “Mães zelosas, pais-corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas” (verso que parece ter sido feito sob encomenda para acontecimentos recentes no Brasil). E novamente: “não se iludam: tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. Trágico é conseguir olhar para tudo isso e ainda assim afirmar que “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”. É desse pessimismo que precisamos.