O título original do filme é The Power of the Dog, igual ao do romance de Thomas Savage no qual é baseado. Qual o motivo de adotar, no Brasil, o nome Ataque dos Cães, em vez da alternativa literal também encontrada em tradução da Bíblia, no Salmo 22:20? Além de mais forte, “O Poder do Cão” é um título muito melhor para o longa-metragem de Jane Campion.
Consagrado por festivais e várias associações de críticos, o filme já recebeu até agora 151 prêmios, segundo o IMDb. Entre eles, o Leão de Prata de Melhor Diretor para Campion, no 78º Festival de Veneza, em setembro de 2021. No mês seguinte, veio o prêmio Lumière em Lyon. Em janeiro, três Globos de Ouro como Melhor Filme na categoria Drama, Melhor Diretor e Melhor Ator Coadjuvante (Kodi Smit-McPhee no papel de Peter).
Dividido em cinco capítulos numerados com algarismos romanos, The Power of the Dog suscitou exegeses didáticas, disponíveis para consulta na internet, preocupadas em explicar sequências obscuras. Há, de fato, situações de compreensão difícil. Mas é claro que Campion quis preservar os enigmas, e as explicações dos exegetas servem apenas para banalizar o que não carece ser trocado em miúdos para que o filme possa ser apreciado.
Em entrevista recente, a própria diretora foi clara a esse respeito: “Quando fiz a adaptação da história, continuei voltando à experiência da primeira leitura do romance e dizendo: ‘Bem, tenho que confiar nessa experiência e tentar colocar o filme nesse ponto, da mesma forma, e espero que as pessoas tenham a mesma experiência que eu tive – em que elas simplesmente não sabem o que está acontecendo aqui [meu grifo].”
Na crítica ácida e irônica publicada na revista The New Yorker, Anthony Lane, preocupado em esclarecer o gênero de The Power of the Dog, recomendou que o leitor “não se deixe enganar pelo cenário e seja levado a interpretar esse filme como sendo um western”. Para ele, trata-se de “mais uma peça de câmara com perneiras de couro, em grande parte sem perambulações, e você logo percebe que não vai a lugar nenhum. Em vez disso, finca o pé por perto e cava fundo as várias crueldades e misérias à mostra, como um cirurgião examinando uma ferida”. Curioso é Richard Brody ter se referido ao filme duas semanas antes, na mesma revista, como “o western de Jane Campion”.
O filme se passa em Montana, noroeste dos Estados Unidos, em 1925, quase todo na fazenda isolada dos Burbank, mas na verdade foi filmado nas planícies e montanhas de Otago Central e num estúdio em Auckland, na Nova Zelândia. A filmagem durou cinquenta dias, e o custo de produção teria atingido entre 30 e 39 milhões de dólares.
O comentário de Lane na The New Yorker presta um desserviço a The Power of the Dog, ao sugerir que o filme pretende se fazer passar por um western e não realçar devidamente o mérito de ser, de fato, uma “peça de câmara” que contrapõe de modo deliberado imagens deslumbrantes do grandioso cenário ao mergulho impiedoso “nas várias crueldades e misérias à mostra”, para repetir os termos usados pelo próprio articulista.
Campion assume o risco de escrever o roteiro baseado no romance de Savage sem recorrer a um narrador, com diálogos breves, por vezes lacônicos, adequados ao perfil de cada personagem e às suas circunstâncias. Não há lugar nem necessidade de explicações e comentários verbais. Centrada nos personagens, a narrativa é conduzida pela beleza e força das imagens, cabendo destacar, além da fotografia a cargo de Ari Wegner, a atuação marcante do elenco principal, tendo à frente Benedict Cumberbatch e Jesse Plemons (interpretando os irmãos Phil e George Burbank), Kodi Smit-McPhee (Peter Gordon) e Kirsten Dunst (Rose Gordon).
Diversas ameaças pairam sobre os personagens e se encadeiam do início ao fim de The Power of the Dog. A primeira é o antraz, doença infecciosa que mata uma vaca e tem influência decisiva no desfecho do filme. À medida que os cinco capítulos se sucedem, o conflito central vai se deslocando – primeiro do antagonismo entre Phil e George para o que opõe Phil e Rose, depois para a relação opressiva de Phil e Peter que domina a segunda metade do filme até o fim. Não se trata de situações estanques que vão se resolvendo. Não: o estado de tensão de cada um desses conflitos subsiste até a tragédia final. Na sequência de encerramento do filme é revelado que o título provém do apelo feito no Salmo 22 da Bíblia King James: “Livra-me da espada, e a minha vida do poder do cão.”
Lane conclui suas restrições a The Power of the Dog com uma ressalva ferina: “Ainda assim, você certamente deve procurar o filme e fruir seu impasse central: Rose, no andar de baixo, tropeçando em uma melodia desajeitada no piano, versus Phil, tocando seu banjo, sem piedade, no quarto em cima. A cena é tão tensa quanto o tiroteio no O.K. Corral. Adivinha quem ganha.” (O tiroteio em questão é considerado o mais famoso da história do velho oeste americano e teria durado em torno de trinta segundos).
Ao contrário da rejeição de Lane, a mim parece animador o fato de um filme como The Power of the Dog conseguir ser produzido e ter boa acolhida. Se não acabar sendo uma exceção em meio à pasmaceira geral, teremos motivo para celebrar.
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Dona Vanna, de quem não esqueço.
Por volta de 1961, a Livraria Leonardo da Vinci foi uma das maiores e mais importantes descobertas da minha adolescência. Foi lá que tive acesso à revista Cahiers du Cinéma, na fase áurea das capas amarelas, e por meio dela tomei conhecimento da reflexão crítica que deu origem à Nouvelle Vague.
Conheci primeiro o dono, Andrei, que parecia achar divertido o interesse daquele adolescente de 16 anos pelos Cahiers. Creio que dona Vanna já trabalhava na livraria nessa época, mas só tenho memórias dela a partir de 1965, quando seu marido já havia morrido e ela passou a ser a personalidade dominante naquele espaço.
Eu ia com frequência de lotação, nessa época, da Rua Humaitá até a Rua México, no Centro do Rio de Janeiro, andava até a Avenida Rio Branco, descia a rampa circular para chegar ao subsolo do edifício Marquês do Herval e mais espiava do que comprava livros. Uma vez por mês, o novo número dos Cahiers representava uma felicidade renovada. Nos anos seguintes, dona Vanna transformou e ampliou a loja e acabei abrindo uma conta, cujo número – 147 – nunca esqueci. Graças à benevolência dela comprei muitos livros que só paguei como e quando podia, sem nunca ter sido cobrado para quitar a dívida.
Quando houve o incêndio, em 1973, ao que tudo indica criminoso e com motivação política, a livraria Da Vinci funcionou durante algum tempo num edifício próximo, de forma provisória. Não me lembrava quanto eu estava devendo, dona Vanna muito menos. Combinamos um valor, a conta foi reaberta e continuei comprando o que queria, pagando aos poucos.
Passados uns vinte anos, surgiu a Amazon e tudo mudou. Mas nunca me esqueci da personalidade esfuziante e acolhedora de dona Vanna, que agora se foi e de quem me sentirei para sempre devedor. Córa Ronai contou, em uma crônica publicada no jornal O Globo na semana passada, que pegava livros emprestados na Da Vinci com “o compromisso solene de ler sem quebrar a lombada”. Nunca tive esse privilégio e confesso ter sentido ciúmes retrospectivos.