Há uma semana (21/10), de passagem pelo interior de São Paulo e prestes a completar 22 meses de mandato presidencial, você sabe quem sentiu necessidade de esclarecer: “O presidente sou eu! Não abro mão da minha autoridade!” Afirmações típicas de quem duvida de si mesmo e revela falta de confiança no seu próprio poder de decidir ao recorrer repetidas vezes à variante “quem manda aqui sou eu!”. O capitão dá a entender, ademais, que não é respeitado pelos próprios ministros de Estado que nomeou. Demonstra, ainda, desconhecer a prevalência da Constituição e das instituições que, sendo permanentes, em regimes democráticos estão acima de ocupantes transitórios do poder executivo. Inseguro e ignorante, o presidente submete integrantes do seu desgoverno a humilhações públicas, como vem de ocorrer com o ministro de Saúde (22/10), general Eduardo Pazuello, após inúmeros casos anteriores, nos quais poucos desautorizados preservaram a dignidade pessoal. O general Pazuello, após testar positivo para a Covid-19, saiu-se com o clichê “um manda, e outro obedece”, depois de ser acordado, no seu quarto de hotel, para participar de uma transmissão ao vivo com o capitão, na qual disse, além do lugar-comum mencionado, que “a gente tem carinho, dá para desenrolar”. Resultado: perdeu a honra e ainda por cima, por ser da ativa, aviltou o Exército.
Confirmada, assim, a subserviência degradante do ministro Pazuello aos ditames idiossincráticos do presidente, o que se pode esperar do Ministério da Saúde que, face à pandemia, deveria ocupar posição de relevo equivalente ao da Economia? Nada indica, porém, que venha a ter desempenho à altura da gravidade da crise sanitária que o país atravessa. Ou que seja capaz de influir de alguma forma para minorar a tragédia humana que persistirá nos próximos meses, até que a maioria da população seja vacinada. Há uma semana, contado do sábado em que começo a escrever (24/10), havíamos acumulado mais de 153 mil mortes e passado de 5,2 milhões de casos diagnosticados de Covid-19. Sete dias depois, passamos de 156 mil mortes e 5,3 milhões de casos, com média móvel de 462 óbitos, a menor desde 7 de maio, além de estabilidade por quatro dias de falecimentos, após sete dias de queda.
No futuro distante, como será lembrado o atual morador provisório do Palácio da Alvorada? É razoável imaginar que a Presidência do capitão ficará marcada para sempre pelo número de vítimas fatais da Covid-19 e que a memória do governo atual guarde para sempre de quem é a responsabilidade pela dimensão da tragédia que poderia ter sido ao menos atenuada com liderança, coordenação e eficiência de outro presidente e governo federal.
Muito diverso desse destino provável de você sabe quem, foi o de Chico Rei, personagem da tradição oral de Minas Gerais, sobre o qual não se sabe com certeza se foi um monarca nascido no reino do Congo, trazido escravizado para o Brasil Colônia, em 1740, onde teria lutado por sua liberdade e a dos demais escravos, ou se ele é uma criação de origem lendária.
No documentário Chico Rei Entre Nós (2020), é feita justamente a tentativa de registrar a herança viva e a persistência da memória de Chico Rei, após quase três séculos, em lideranças comunitárias, rituais religiosos, estudantes e pessoas comuns, principalmente em Ouro Preto, Minas Gerais. Estreia na direção de longas-metragens de Joyce Prado, o filme é um dos 32 participantes da Mostra Brasil na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Um entrevistado, participante da ocupação batizada de Chico Rei, diz a certa altura do documentário: “O povo não deixou as origens morrerem. A tradição de Chico Rei continua na mesma luta. Mas eu acho que os mesmos coronéis daquela época reencarnaram de novo”; “Chico Rei aqui significa liberdade. Novas liberdades. Ele conseguiu quebrar os grilhões atrás e nós conseguimos quebrar os grilhões do lado de cá.” Para uma entrevistada, “a gente sente a presença da nossa ancestralidade de matriz africana”. “Resgataram o que estava adormecido, acendemos uma luz, e nossa missão é manter essa luz acesa. Manter viva a tradição e a nossa cultura.” Outro entrevistado afirma: “Acredito que tinha vários Chicos Reis. Todos foram Chico Reis. A herança que deixaram nas pessoas de Ouro Preto ainda está muito presente. Lutamos por um ideal de liberdade. Os líderes das comunidades, cada um é um novo Chico Rei. Fui, sou e serei rei. Jamais escravo.” (Essas citações foram anotadas enquanto assistia ao filme. Podem, portanto, não ser literais.)
Real ou lendário, Chico Rei está vivo para esse grupo de moradores de Ouro Preto. Quantos chefes de nação poderão dizer o mesmo daqui a trezentos anos?
A falha que há em Chico Rei Entre Nós resulta da tentativa de ser abrangente ao dedicar quase toda a metade inicial do documentário à história, ou lenda, de Chico Rei. Essa longa introdução didática não está à altura dos personagens e rituais de Ouro Preto nos quais Prado concentra a segunda metade do filme.
Após Chico Rei Entre Nós, ao assistir a Verlust (2019), de Esmir Filho, outro participante da Mostra Brasil na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, sugestionado pelo tema da persistência da memória, tive impressão que os cinco protagonistas do filme de Esmir, isolados em duas casas vizinhas, estão aprisionados no presente, destituídos de herança afetiva, cultural ou política, angustiados pelo vácuo no qual estão inseridos, tendo no lugar da memória um imenso vazio. Parecem criaturas perdidas, flutuando no espaço, perturbadas pelo surgimento de um gigantesco animal marinho que atola à beira-mar, entre as pedras, diante das duas casas em que estão hospedados.
Não é preciso ir além do lindo primeiro plano de Verlust para confirmar o talento de Esmir – um longo travelling lateral começa na superfície das pedras, torna-se oblíquo e faz uma panorâmica de 180º para terminar no mar, depois de ter passado pelas casas em que o enredo transcorre –, talento demonstrado ao estrear como diretor de longas-metragens em Os famosos e os duendes da morte (2009). No comentário sobre esse filme publicado aqui em abril de 2010, que me permito citar, escrevi que “ambição bem dosada é indispensável” e concluí recomendando não só que todos assistissem a Os famosos e os duendes da morte, mas que aguardassem, “oxalá para breve, seu próximo filme ambicioso” (comentário completo disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/criatividade-e-talento-esmir-filho-um-diretor-ambicioso/ ). Foi preciso esperar oito anos, porém, até surgir Alguma Coisa Assim (2017) e outros três até Verlust estrear. Os programas de tevê realizados ao longo desses onze anos, e a série Boca a Boca, lançada em 2020 na Netflix, não atenuam a dificuldade enfrentada por quem só faz filmes ocasionalmente, com intervalos longos demais entre um e outro.
Apesar de contar em Verlust com contribuições notáveis, entre elas a de Inti Briones, na direção de fotografia; Mariana Urizza, na direção de arte; e Andrea Beltrão, à frente do elenco, o filme tropeça e cruza a fronteira entre ambição necessária e pretensão desmedida, conforme indicado no comentário de 2010, citado acima. O roteiro de Ismael Caneppele e Esmir, repetindo a parceria formada em Os famosos e os duendes da morte, resulta dessa vez em um esmerado exercício de estilo, mas com pouca substância.
O elenco principal, formado, além de Andrea Beltrão (Frederica), por Marina Lima (Lenny), Alfredo Castro (Constantin), Ismael Caneppele (João) e Fernanda Pavanelli (Tuane), vaga pelo espaço com interlúdios eróticos ocasionais, promovidos pelo fotógrafo Constantin. A adolescente Tuane, filha da empresária Frederica e de Constantin, toca contrabaixo nas pedras à beira-mar, e João, escritor que passa boa parte do tempo escrevendo um livro de gênero impreciso sobre Lenny e Frederica, toma banho de piscina nu, exibindo-se para a empresária. As canções originais de Lenny/Marina não atenuam a falta de sentido desse pequeno conjunto de desencontros, fruto em parte, talvez, da atividade intermitente imposta a quem faz cinema no Brasil.
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A 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo prossegue até 4 de novembro, realizada na maior parte online para todo o Brasil.
A programação inclui 198 filmes de 71 países, apresentados nas seções Perspectiva Internacional, Competição Novos Diretores, Mostra Brasil e Apresentação Especial. Participam da Mostra Brasil 32 filmes. Entre eles, #eagoraoque, de Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald; Ana. Sem título, de Lucia Murat; Luz Acesa, de Guilherme Coelho; Nas Asas Da Pan Am, de Silvio Tendler; O Lodo, de Helvécio Ratton; Sobradinho, de Marília Hughes e Cláudio Marques; Chico Rei Entre Nós, de Joyce Prado, e Verlust, de Esmir Filho.
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Na próxima terça-feira, 3 de novembro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Fernanda Pessoa, diretora do documentário Zona Árida (2019), que estreou com Histórias que nosso cinema (não) contava (2017), atualmente disponível no Netflix. Cineasta e artista visual, Fernanda trabalha com cinema documental, experimental e videoinstalações. Vive e trabalha em São Paulo, depois de ter morado no Arizona, em Buenos Aires e em Paris, onde completou seu mestrado em Audiovisual na Sorbonne Nouvelle, sob orientação de Philippe Dubois. O acesso à conversa de terça-feira, dia 3 de novembro, às 11 horas, poderá ser feito através do link https://youtu.be/s0ezPAxspAA .