O Processo estreou em fevereiro, no 68º Festival de Berlim, cerca de um ano e seis meses depois do mandato presidencial de Dilma Rousseff ser cassado por decisão plenária do Senado Federal, com 61 votos a favor do impeachment e 20 contra. O filme, dirigido por Maria Augusta Ramos, foi exibido no 23º Festival É Tudo Verdade, domingo passado, em São Paulo, terça-feira, no Rio, e deverá ser lançado comercialmente em maio, no Brasil.
O tempo decorrido entre a conclusão do processo político, em agosto de 2016, e a estreia de O Processo foi relativamente breve, em especial considerando a demora costumeira para documentários chegarem às telas depois de terem sido gravados, sem esquecer que há outros filmes sobre o impeachment ainda inéditos.
Devem ser reconhecidos, portanto, alguns méritos de Maria Augusta. Primeiro, o de ter respondido, no calor da hora, ao apelo da história, indo para Brasília gravar, convicta de que estava testemunhando um evento político relevante. Ela cumpriu, desse modo, uma das funções mais nobres de quem faz documentários. Além disso, foi capaz de editar com Karen Akerman mais de 400 horas de gravações, reduzi-las a 2 horas e 20 minutos, finalizar e lançar o filme em pouco tempo.
Esses feitos são, por si só, consideráveis. Mas há outro, também significativo, cujas consequências, porém, por perversa ironia acabam se voltando contra o próprio filme – a fidelidade de Maria Augusta ao seu próprio estilo, consagrado em filmes como Justiça (2004) e Juízo (2007), entre mais de dez outros realizados a partir de 1997. Estilo que sendo sua marca autoral ela imprime a O Processo graças à sua impressionante tenacidade, apesar das dificuldades que enfrentou gravando situações fora do seu controle, muitas vezes caóticas – predominam no filme planos gerais estáveis e enquadramentos bem compostos, gravados a meia distância, com uso reduzido de câmeras trepidantes na mão, típicas de documentários do gênero. Imposta pelas circunstâncias específicas das gravações, a principal diferença em relação a seus filmes anteriores fica por conta da ausência de re-encenações.
Em O Processo, talvez pela primeira vez, Maria Augusta é uma observadora em sentido estrito, sem o poder de interferir no fluxo dos acontecimentos, tampouco de recriar situações como tem sido seu hábito, mantendo-se distante dos personagens, com os quais ao menos em cena não interage. Como todo observador intransigente, Maria Augusta mais constata do que revela, o que vem a tornar o filme insatisfatório.
Há momentos em que quem é observado tem consciência de estar diante da câmera de O Processo, mesmo sem dar sinais disso. É o caso da senadora Gleisi Hoffmann e do senador Lindbergh Farias quando estão trabalhando em seus respectivos gabinetes, assim como das reuniões do advogado de defesa José Eduardo Cardozo com seus assessores, e também dos trajetos de carro a caminho do Congresso, em que alguns desses personagens são acompanhados pela câmera. Mas essas sequências são exceções no grande elenco de eventos que ocorreriam exatamente do mesmo modo, quer estivessem ou não sendo gravados por Maria Augusta.
O apego tenaz à forma estética pré-definida leva Maria Augusta a não interagir com seus personagens, o que, somado à decisão de circunscrever o filme ao processo de impeachment, torna O Processo árido e repetitivo. Quem viu uma intervenção de senadora ou senador, contra ou a favor, viu todas. O mesmo acontece com as alegações da defesa ou da acusação, as escaramuças verbais, justificativas de voto etc. – assistida uma, todas parecem iguais. No entanto, o ritual político, repetitivo por natureza, mesmo sintetizado pela edição é seguido à exaustão.
Ao restringir o espaço principal do filme à sede do Senado Federal, onde transcorrem as etapas decisivas do processo de impeachment, Maria Augusta exclui a participação da própria Dilma Rousseff que, isolada nesse período no Palácio da Alvorada, é reduzida à condição de figurante dos procedimentos legais que levaram, primeiro ao seu afastamento da Presidência, depois, à cassação do seu mandato presidencial, no final de agosto de 2016.
As poucas cenas gravadas no Palácio da Alvorada mostram apenas pronunciamentos oficiais de Dilma Rousseff, cercada de correligionários, em dias críticos do processo, ou o exterior do palácio durante a noite e um corredor vazio por onde um cachorro passeia tranquilamente. Sem nenhum indício de como foi a atuação política em defesa do seu mandato, nem de como transcorria sua vida privada naqueles dias, Dilma se torna a grande ausência do filme, junto com outro figurante ilustre, de presença ainda mais fugaz, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em nome da coerência, segundo Maria Augusta me informou, ela sequer pediu acesso a Lula, pelo fato de o filme se passar em Brasília e ser focado “no processo jurídico-político que acontece fundamentalmente no Senado e do qual ele não participou diretamente”. Quanto à Dilma, Maria Augusta afirma ter pedido e obtido acesso a ela no período em que estava afastada da Presidência. Mas não há cenas gravadas desses encontros no filme.
Além de artífice da presidente Dilma Rousseff, Lula foi voz influente, por vezes oculta, no seu governo, manteve-se como líder de fato do Partido dos Trabalhadores e nunca deixou de ser um dos principais protagonistas da cena política brasileira. Mesmo tendo se tornado crítico, em caráter privado, do governo Dilma, atuou intensamente nos bastidores para impedir a cassação do seu mandato. Excluído do filme por uma opção formal, a lacuna que há em O Processo, e que deveria estar ocupada pela grande ausente, tornou-se ainda maior. Lula, afinal, mesmo preso desde 7 de abril, apareceu há poucos dias, na pesquisa Datafolha, com 31% das intenções de voto no primeiro turno e vitorioso, com mais de 40% dos votos, em três cenários possíveis do segundo turno da próxima eleição presidencial.
No caso de Dilma, ainda se poderia alegar que o filme nada mais faz do que espelhar o que ocorreu a partir de setembro de 2016 – uma vez afastada da Presidência, ela consolidou seu lugar de figurante secundária no elenco principal de atores políticos. E até o momento não há sinais de que possa vir um dia a adquirir luz própria, mesmo se for candidata a senadora por Minas Gerais, como se cogita, e venha a ser eleita. Nesse sentido, pode ter se iludido quem acreditou, como Maria Augusta, estar frente a um evento de grande significação histórica quando teve início o processo de impeachment. A gravidade da crise que o país atravessa desde 2013 e, em particular, a desmoralização do governo Temer, além de parte considerável das lideranças políticas e empresariais do país, parecem ter tornado a dimensão do episódio do impeachment menor do que muitos imaginaram.
É verdade que mesmo assim O Processo teria maior valor próprio, caso revelasse algo que tivesse permanecido oculto – o que não ocorre. Da forma que resultou, de modo geral, o filme não se diferencia muito de uma versão resumida da transmissão ao vivo dos eventos, feita na época pela televisão.
Por outro lado, a tentativa de dar conta do processo em duração palatável ao exibidor e aos espectadores, parece ter sido responsável pelo aspecto nitidamente fragmentado de O Processo. Fica sem explorar o potencial de algumas sequências fortes que terminam de modo brusco, em favor de outras de caráter meramente informativo.
Uma das sequências inconclusivas de maior poder revelador, prejudicada por terminar sem que se saiba qual foi sua repercussão junto aos participantes, é a da reunião de senadores do Partido dos Trabalhadores, em agosto de 2016, na qual Gilberto Carvalho, chefe de gabinete de Lula, e ministro de Dilma, intervém durante cerca de 3 minutos. A possibilidade da presidente preservar seu mandato parecia liquidada, naquele momento, com a aprovação por 14 votos a 5 do parecer favorável ao impeachment do relator da Comissão do Senado. Transcorridos 100 minutos de O Processo, além de uma série de afirmações corriqueiras para um militante e dirigente partidário, Carvalho diz: “Se a gente cair, estamos caindo sobretudo pelos acertos nossos, por termos contrariado os grandes interesses do capital. Isso pra mim tá muito evidente. Agora, por outro lado, é inegável que nós de alguma forma facilitamos a estrada deles através de erros graves. […] Então, nós vamos ter que botar isso na balança, sem falar, naturalmente, na naturalização dos métodos de fazer política que a gente acabou assimilando de maneira muito forte, acrítica, o que não nos levou a fazer a reforma política mesmo quando, depois do mensalão, a gente tinha levado uma porrada terrível com a dor de ver nossos companheiros presos, e tal. Então, tudo isso, eu acho que faz parte de um processo que não é de autoflagelação, mas é de ter a clareza de romper com os nossos erros.”
Não há indicação de como as palavras de Gilberto Carvalho foram recebidas. Chama atenção também a ausência de qualquer referência a Dilma Rousseff na intervenção completa incluída em O Processo. Terá sido cortada na edição? Ou, de fato, a então presidente afastada do mandato não foi sequer mencionada? Os próprios simpatizantes do PT parecem ter esquecido Dilma.
No final da sessão para a imprensa do Rio de O Processo, no Festival É Tudo Verdade, gritos “Lula Livre” foram ouvidos. Não tive notícia, porém, de que “Dilma guerreira do povo brasileiro” tenha sido entoado.
Parece haver razões suficientes para perguntar se a Presidência Dilma Rousseff, encerrada no Senado Federal por 61 votos a 20, em agosto de 2016, merece o réquiem que Maria Augusta lhe dedicou. Quando o anjo da história de que nos fala Walter Benjamin olhar para trás, com as asas abertas pela ventania, verá Dilma soterrada pelos escombros ou ela terá sido capaz de se reinventar, assegurando seu legado para o futuro? Não há como saber ao certo. Quanto a Lula, é difícil imaginar que ele deixe de ter lugar de destaque no cenário contemplado pelo anjo.