Neste mês de dezembro, foi publicada a Medida Provisória no. 1075/2021, que abriu o acesso às bolsas do Programa Universidade para Todos (Prouni) a estudantes que cursarem o ensino médio em escolas particulares. Muito criticada, a medida foi acertadamente vista como uma forma de tirar o Prouni dos eixos, levando-o a privilegiar estudantes de maior renda, em detrimento dos que vivem em lares mais modestos. Para entendermos a crítica e refletirmos um pouco mais sobre os desafios do financiamento público à oferta de vagas em instituições de ensino superior (IES) privadas, vejamos como a mudança no Prouni foi recebida nas famílias de dois personagens representativos dos estudantes brasileiros, Helena e Enzo.
Helena tem 16 anos, cursa o 2º ano do ensino médio e é uma das melhores alunas de uma escola pública da Vila Brasilândia, periferia da cidade de São Paulo. Tem dois irmãos mais novos que a mãe sustenta trabalhando como diarista, contando com uma renda mensal de 2 mil reais. Apesar de muito estudiosa, ela sabe que não teve acesso a um ensino de muita qualidade e que será difícil ter nota suficiente no Enem para cursar psicologia numa universidade pública. Por isso, ela aposta no Prouni. Também com 16 anos, Enzo é um dedicado estudante do 2º ano na melhor escola particular de Cuiabá. Sua mãe é professora da rede pública e seu pai é engenheiro de uma pequena construtora local. Com renda familiar de 10 mil reais por mês, os pais de Enzo conseguem pagar a escola particular e um curso de inglês para o filho. Ainda assim, o rapaz está preocupado, porque quer muito fazer medicina, mas acha improvável conseguir essa tão concorrida vaga em universidade pública, e a mensalidade de uma faculdade particular de medicina comprometeria parte expressiva da renda de sua família.
As famílias de Helena e Enzo reagiram de forma muito distinta à novidade do Prouni. Na de Helena, a mudança causou apreensão e deixou a menina receosa quanto à possibilidade de ser a primeira pessoa da família a cursar uma faculdade. Já a família de Enzo ficou animada, pois uma bolsa, mesmo que parcial, pode ajudá-lo a conquistar o sonho de cursar medicina. As interpretações de ambas as famílias estão corretíssimas. O único erro dessa história está na mudança na regra do Prouni, que o torna menos progressivo e é feita sem o necessário debate sobre acesso e financiamento do ensino superior brasileiro.
O Prouni é um programa do governo federal que desde 2005 oferece bolsas de estudo em IES privadas a estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas ou que foram bolsistas integrais em escolas particulares. Ambos os grupos precisam atingir pontuação mínima no Enem – atualmente, 450 pontos. Podem acessar as bolsas integrais os estudantes com renda familiar mensal de até 1,5 salário-mínimo por pessoa, enquanto as bolsas parciais estão acessíveis àqueles com renda familiar mensal de até 3 salários-mínimos por pessoa. Essas bolsas são contrapartidas às isenções de tributos disponíveis às IES, desde que ofereçam uma bolsa integral a cada 10,7 matrículas, ou uma bolsa integral a cada 22 matrículas e a diferença em bolsas parciais de 50% ou 25%. Apesar das críticas, o programa representou um avanço. Em seu primeiro ano, 2005, foram 67.276 bolsas integrais e 28.353 bolsas parciais. Em 2015, 10 anos depois, foram 185.086 integrais e 67.564 parciais. No ano de 2020, mesmo em plena pandemia, foram 130.744 bolsas integrais e 36.086 bolsas parciais.
Destinando bolsas integrais aos estudantes de menor renda e parciais àqueles com renda mais elevada, é claro que o programa objetiva privilegiar os mais pobres. Mas é preciso esclarecer que os critérios de renda do Prouni são bastante amplos, pois 75% das famílias brasileiras têm renda de até 1,5 salário-mínimo por pessoa, e 90%, renda de até 3 salários-mínimos por pessoa, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se o recorte de renda torna tanta gente elegível, a grande capacidade de o Prouni fortalecer o acesso ao ensino superior pelos estudantes mais pobres sempre esteve na exigência de cursar todo o ensino médio em escola pública. É lá onde estão 87,4% dos 7,5 milhões de estudantes do ensino médio, sendo que apenas 5,4% deles estão entre os 20% mais ricos. Na rede privada, é o oposto: 46,5% dos estudantes pertencem às 20% mais ricas famílias do país, e apenas 4,6% integram as 20% mais pobres, segundo o IBGE. E foi justamente a regra de cursar ensino médio em escola pública que foi alterada pelo governo na MP 1075/2021. Os critérios de renda para acesso às bolsas integrais e parciais foram mantidos, mas agora com a possibilidade de que estudantes de escolas privadas também sejam bolsistas do Prouni.
Num primeiro momento, a mudança proposta pode nos fazer crer que a universidade privada ficará acessível a um grupo de estudantes de baixa renda cujos pais se esforçam muito para pagar uma escola privada. Esses estudantes não acham justo estarem excluídos do Prouni e têm alguma razão, pois possuem perfil socioeconômico semelhante ao dos estudantes da escola pública. Porém, as famílias de baixa renda que conseguem bancar escolas particulares frequentemente só têm condições de arcar com os preços das mensalidades de instituições de baixa qualidade. Com a mudança do Prouni, esses estudantes poderão buscar as bolsas, mas em competição com diversos outros de famílias com maior renda e que estudaram em colégios de qualidade superior. Não à toa, o desempenho em processos seletivos concorridos costuma ter alta correlação com a renda familiar. Desse modo, com raras exceções, esses jovens de baixa renda seguirão prejudicados.
Ainda assim, podemos pensar que a mudança é positiva, pois, em tese, apenas permitiria a garotos como Enzo ocuparem vagas hoje ociosas. Segundo o sindicato das mantenedoras de ensino superior no Brasil (Semesp), em 2020, 56,8% das vagas para bolsas parciais não foram utilizadas. Com a alteração definida na MP 1075/2021, essas vagas serão facilmente ocupadas por Enzos, jovens de famílias de renda de até 3 salários-mínimos por pessoa, que não conseguiram uma vaga na universidade pública e poderão estudar em uma faculdade privada pagando a metade do preço. Porém, sem dificuldade para ocupar as bolsas parciais, a tendência será de que as IES prefiram ofertá-las e deixem as bolsas integrais no patamar mínimo (1 a cada 22 matrículas). Isso amplia suas receitas e a isenção de tributos, mas diminui as bolsas integrais necessárias a garotas como Helena. Na prática, portanto, a MP 1075/2021 faz com que Enzos tomem o lugar de Helenas.
Este não é um debate sobre merecimento: Helena, Enzo e todos os jovens do país merecem sonhar com a universidade e ter a oportunidade de cursá-la. O debate é sobre a eficácia das políticas públicas de acesso ao ensino superior e os prejuízos que a mudança no Prouni pode gerar: Helena, que antes disputava uma vaga apenas com estudantes de escolas públicas, agora terá que disputá-la também com estudantes de escolas privadas, num cenário de diminuição de bolsas integrais. Ela sabe que sai atrás nessa disputa, gerada por uma mudança nas regras que é claramente regressiva.
Se desejamos fixar medidas para a ampliação de vagas em instituições públicas e privadas de forma socialmente justa, precisamos criar fontes permanentes e progressivas para financiar o ensino superior, de forma que os recursos públicos possam se concentrar em Helenas, sem prejudicar o acesso à universidade por rapazes como Enzo. Um dos caminhos pode ser a utilização da renda futura dos estudantes como mecanismo de financiamento, conforme sugere o Texto do Ipea lançado em dezembro de 2021. A MP 1075/2021, no entanto, desconsidera a necessidade de debate sobre a melhoria da estrutura do financiamento do ensino superior brasileiro e vai na contramão da equidade: vendendo a ilusão do aumento de vagas em universidades, acaba com o que o Prouni tem de melhor simplesmente para atender os interesses das instituições privadas. E joga um balde d’água fria nos sonhos das tantas Helenas que existem em nosso país.