minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Sobre Gilmar Mendes, o procurador disse, citando o ex-presidente americano Abraham Lincoln: “Podem enganar toda a gente durante certo tempo; podem mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas vocês não podem enganar todas as pessoas todo o tempo.” ILUSTRAÇÃO: FABIANE LANGONA

questões curitibanas

O pugilista

Em entrevistas e nas redes sociais, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima entra no ringue contra os críticos da Lava Jato

Rafael Moro Martins | 31 ago 2017_18h18
A+ A- A

Em uma tarde de junho, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima bateu à porta de seu colega Deltan Dallagnol – coordenador da Lava Jato – com um pedido insólito. Não buscava autorização para investigar um suspeito ou negociar mais uma delação premiada. Ele queria saber se podia voltar a usar o Facebook.

Fazia mais de um ano que o procurador havia abandonado a página que criara na rede social. Lima queria reativá-la para responder publicamente a uma entrevista veiculada na madrugada daquele mesmo dia, no SBT, com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Gravada poucos dias antes – mas levada ao ar em 26 de junho – a entrevista ao jornalista Kennedy Alencar foi um murro no fígado do Ministério Público Federal e da Procuradoria-Geral da República. O ministro definiu os procuradores que atuam na Lava Jato como “príncipes da República” agindo em busca da “criminalização da política” para impor um “pensamento totalitário”. As críticas do magistrado miravam o acordo de delação premiada firmado pela PGR com executivos da J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, que fez tontear o governo de Michel Temer. “Tudo sugere”, concluía Mendes, haver uma conspiração contra o presidente, tramada por procuradores e pelos empresários.

Lima queria subir ao ringue digital e devolver os golpes. Dallagnol deu sinal verde. Horas depois, lia-se um texto duro repudiando as acusações de Gilmar Mendes, que se encerrava com uma frase atribuída ao ex-presidente americano Abraham Lincoln: “Podem enganar toda a gente durante certo tempo; podem mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas vocês não podem enganar todas as pessoas todo o tempo.” O post teve 163 curtidas. Desde então, as postagens cresceram em número, repercussão e acidez. No último domingo, 27 de agosto, a sugestão ao advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o “Kakay”, para que tomasse “vergonha na cara” teve mais de 1 100 curtidas. Era uma resposta ao advogado que criticara o juiz Sérgio Moro em um comentário publicado pelo site Poder360.

“Ficou claro que havia uma ofensiva contra o que estava sendo revelado na delação dos Batista”, disse Lima, no final de uma manhã ensolarada de fins de agosto em Curitiba, quando me recebeu no escritório montado pela força-tarefa no oitavo andar de um prédio no Centro. Por ironia, o edifício também abriga a sede local da Liquigás – que pertence à Petrobras, foco inicial da Lava Jato –, e, até pouco tempo atrás, também a representação local da Odebrecht, outra investigada de peso. “Se alguém vai botar a cara para apanhar, que seja eu. Passei a maior parte da Lava Jato em silêncio. Mas de repente a necessidade surgiu, e não vou deixar os outros fazerem isso. Não ganho nada com essas postagens, pelo contrário, crio inimizades possivelmente eternas, o que as pessoas de bom senso não fazem. Mas, na minha família, ter bom senso não é muito comum”, falou.

O procurador, porém, não nega que as rusgas online lhe tragam alguma satisfação. “O pugilista gosta do ringue”, jactou-se, falando de si. Na página que leva seu nome, o procurador distribui jabs, cruzados e diretos à vontade. Temer já foi chamado de “leviano, inconsequente e calunioso”. Em outro post dirigido a Gilmar Mendes, ele chamou o ministro de “déspota pouco esclarecido”.

“Gilmar Mendes se movimenta como se fosse um político, e não um ministro do Supremo”, disse. “As reuniões dele com o governo demonstram mais uma aproximação política que uma agenda institucional. E não se sabe exatamente o que está se passando nesses encontros. A única solução é o próprio Supremo colocar algum limite nessa situação.”

 

Aos 53 anos de idade, Carlos Fernando dos Santos Lima é o mais velho dos 14 procuradores que integram a força-tarefa da Lava Jato no Paraná. Na manhã em que conversamos ele trajava calça jeans folgada, camisa polo preta desabotoada e jaqueta esportiva bege. Trazia a barba rala. Ao contrário de Dallagnol, que sempre aparece em público vestido com ternos de caimento impecável, Lima não gosta do aperto do traje formal. Quando tira a fatiota do guarda-roupas, ela não lhe parece natural – o procurador lembra os detetives dos antigos filmes noir que dormem no banco do carro vestindo a roupa de trabalho.

Ele riu com a comparação. “Já estou um pouco velho para me preocupar com o que os outros pensam a meu respeito. Brinco com o Deltan que ele é o pastor que usa terno de tergal do Frischmann’s (tradicional e popular loja de departamentos curitibana).” E deu de ombros: “Cada um com o seu jeito.”

Outras diferenças separam Lima de Dallagnol além da roupa. O coordenador da força-tarefa é conhecido por ser um evangélico fervoroso. “Eu sou um católico [apostólico romano] não praticante, o que na verdade é um agnóstico disfarçado”, disse Lima – que emendou – “mas rezo todos os dias just in case, como dizem os americanos.” Só por precaução, ele batizou os três filhos.

Ao contrário do superior hierárquico, mais comedido nas declarações públicas, Lima não tem problemas em colocar a nu as próprias crenças políticas. “Sou aquele cara do século XIX, com uma crença muito forte em princípios republicanos. Um liberal típico”, disse. No Facebook, é mais específico: se diz “defensor da igualdade e isonomia entre as pessoas, da liberdade individual, especialmente quanto ao direito à livre opção sexual, da livre-iniciativa e manifestação do pensamento”.

Quando perguntei sobre a presença do Estado na economia – que, em parte, define esquerda e direita –, ele desdenhou. “Isso não é política, é economia. Mas prefiro o caos do capitalismo ao burocrata de cérebro iluminado sentado num ar condicionado em Brasília. E acho que políticas inclusivas são necessárias no Brasil. Somos uma sociedade injusta, as elites se protegem. E há os que, quando se tornam elites, replicam a mesma exclusão que havia antes. Isso, na minha opinião, é o que o PT fez”, argumentou, para logo depois fazer uma ressalva. “Mas isso não influencia nada aqui na Lava Jato.”

A língua solta fez de Lima o alvo dos jornalistas quando estes buscam uma declaração de impacto. “Eu nunca digo que não tenho nada a declarar”, resumiu. Em fins de maio passado, questionado a respeito da absolvição da jornalista Cláudia Cruz, mulher do deputado federal cassado Eduardo Cunha, o procurador, numa declaração carregada de ironia, atribuiu a “decisão injustificável” ao “coração generoso” do juiz federal Sérgio Moro, que julga os processos na primeira instância. Foi uma rara manifestação pública de discordância entre a força-tarefa e o magistrado. A auxiliares, Deltan Dallagnol costuma dizer, em tom de blague, que paga o almoço de quem conseguir manter Lima calado.

 

Integrante de uma família de servidores públicos – “No século XVIII, o primeiro dos meus antepassados que veio de Portugal já foi juiz de direito aqui em Curitiba” –, Lima nasceu em Apucarana, no norte do Paraná, mas foi criado na capital, onde fez faculdade de Direito. Trabalhou no Banco do Brasil e no Ministério Público Estadual antes de ser aprovado no concurso para procurador da República. Seu pai, Osvaldo dos Santos Lima, também procurador de Justiça, foi político nos anos 70: trocou o MDB pela Arena, partido de apoio à ditadura, para se eleger deputado estadual (chegou a ser presidente da Assembleia Legislativa) e vice-prefeito de Apucarana. Um passo que o filho disse-me não pretender repetir. “Não sou candidato a nada.”

Procurador da República desde 1995, Lima participou da força-tarefa que investigou fraudes no Banestado, o hoje extinto banco estadual do Paraná, durante o governo de Jaime Lerner. Foi uma espécie de trailer da Lava Jato: além dele e do colega Deltan Dallagnol atuando na acusação, o togado que julgava os processos era Sérgio Moro. Os três contaram com um réu colaborador que se tornaria conhecido em todo o Brasil anos depois: o doleiro Alberto Youssef.

“Foi ali, em 2003, que eu e [o também procurador] Vladimir Aras começamos a fazer delações premiadas na forma de contrato, que a lei de 2013 tornou regra. Fizemos 17 delações. Mas acabou que só os que colaboraram com a Justiça foram punidos”, disse. Perguntei a ele se o rosário de investigações frustradas, como a do Banestado, não pesou quando recebeu o convite de Dallagnol – “Ele achou que eu tinha um perfil complementar ao dele” – para a força-tarefa da Lava Jato. “Esse é o meu trabalho, é o que eu tenho que fazer. E de certa forma eu estava subutilizado na minha função de origem [de procurador regional da República em São Paulo], tão subutilizado que acumulo aquela função com o trabalho aqui até hoje”, explicou. “Tinha voltado há pouco de Cornell [universidade no estado de Nova York], onde fiz meu mestrado em crimes de colarinho-branco na área financeira, então vim”, falou, com a ironia que voltaria à tona em vários momentos das mais de duas horas de conversa. “Ainda tenho que aguentar alguns anos até me aposentar.”

O portal da transparência do Ministério Público Federal informa que o servidor público federal Carlos Fernando dos Santos Lima recebeu mais de 30 mil reais brutos em julho – que, descontados os impostos, viraram coisa de 22 mil reais. A isso, somaram-se mais de 5 mil reais em auxílios moradia e alimentação. Ainda assim, quando o questionei sobre seus gostos, o procurador disse-me que não tem condições de levar uma vida de luxo. “Não frequento restaurantes, acho muito caro, não tenho dinheiro sobrando. Levo uma vida muito simples. Não gosto de vinhos, não bebo, não fumo charutos. Sou um careta absurdo. A imagem de arrogância que às vezes passo é timidez. Sou um fóbico social.”

Aproveitou a situação para cutucar a reforma da Previdência proposta pelo governo Temer. “Infelizmente não fui previdente, não pensei que os funcionários públicos iriam ser maltratados ao final da carreira. Funcionário público sabe que não vai enriquecer, mas ao menos tem a tranquilidade de, ao final, ter uma aposentadoria. Era o que eu pensava.”

 

A atribuição de tarefas, na Lava Jato curitibana, de certa forma segue a hierarquia entre os procuradores. Cabe aos mais experientes a “visão estratégica da operação”, nas palavras de Lima; já os mais novos são, habitualmente, os que põem a mão na massa. “Eu não tenho mais gás para ficar catando papel, olhando documentos. Eu fico com o papel de cobrar o resultado das investigações, sou quase um gerente. E também o gestor de crises, que são quase diárias. Preparo a estratégia para a comunicação, falo com a imprensa, decido como reverter uma situação na Justiça”, enumerou.

Tal qual Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, Lima disse ver a estratégia de comunicação como um dos pilares do sucesso da Lava Jato. “Com a população informada, a Lava Jato não tem mais condição de ser morta, como outras operações foram”, afirmou. Perguntei-lhe qual o papel da imprensa – que se tornou um canal habitual de vazamentos de delações premiadas ainda em negociação, acusada, muitas vezes, de fazer papel de assessoria de imprensa dos investigadores. “Ela não tem que fazer esse filtro, se é vazamento ou não. Se tem acesso, tem que publicar. Não vemos a imprensa como aliada.”

O tema pareceu incomodá-lo. Ele respirou e voltou à carga. “No caso da Odebrecht, foram 77 colaboradores, mais um conjunto de advogados – e nem sempre os advogados da delação são os mesmos do processo, ou são alinhados aos colegas. Tem tantos agentes aí, por que somos sempre nós os responsáveis pelo vazamento? E muito do que se chama de vazamento é simplesmente acesso ao processo, que é público. Não dá para fazer essa mistura teórica.”

Apesar de ver “um caso claro de suspeição” nas decisões de Gilmar Mendes que livraram da cadeia o empresário Jacob Barata Filho, o procurador disse serem “absurdos” os questionamentos na mesma linha feitos pela defesa de Luiz Inácio Lula da Silva contra Sérgio Moro. “Não consigo ver o fundamento disso. Pelo contrário, o doutor Moro e nós conseguimos levar esse processo da melhor forma possível, numa realidade muito conturbada e muito politizada. Ele sempre foi muito educado [com Lula], as decisões são fundamentadas. As pessoas veem muitas bruxas. Esse é o problema do cara que acredita que os sinais estão por toda parte. Você pode ver os que escolher”, ironizou, para, em seguida, a seu estilo, cutucar o magistrado. “A única coisa que acho é que Moro tem uma visão das mulheres um tanto quanto light: ele normalmente as absolve. Ele tem um coração generoso com elas”, disse, em referência à Cláudia Cruz.

No dia em que me recebeu, uma sexta-feira, o procurador postou onze vezes em sua página no Facebook. Cutucou Gilmar Mendes, é claro, mas também compartilhou os últimos versos de “Digo Sim”, de Ferreira Gullar. Como se não bastasse, ainda ofereceu uma frase de autoajuda de própria lavra – ao estilo pugilístico: “Na vida, seja um lutador. Nada de desânimo ou inércia. Sempre há chance de levantar e fazer o certo.”

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí