Fechamos 2021 com muitos ainda acreditando que as instituições brasileiras estão funcionando com vigor e são, como o Lexotan de Augusto Heleno, um remédio para conter os ímpetos autoritários do governo Jair Bolsonaro. Mas eles esquecem que, como em todo remédio, há efeitos colaterais que não podem ser desconsiderados ou menosprezados. E, o mais grave, que práticas autoritárias se assemelham aos vírus que passam por mutações oportunistas e/ou às superbactérias que de tanto serem expostas a tratamentos parciais ou incorretos criam resistências e ficam imunes a medicamentos.
Este é o caso da segurança pública. Diante do sortilégio de placebos e tratamentos equivocados aplicados ao longo das últimas décadas na tentativa de dar respostas ao crescimento do medo, do crime e da violência, a área se tornou um enorme simulacro de democracia. Independentemente das evidências e na ausência de consensos sobre quais políticas públicas são mais eficientes, o país reproduz, num contínuo cruel, opções político-institucionais que relevam a sobreposição de violência, vulnerabilidades e injustiças sociais, raciais, de gênero ou geracionais que marcam a história brasileira.
A segurança pública virou o puxadinho do Jair, que se orgulha da geringonça legal criada pela tibieza decisória que o antecedeu e improvisa políticas públicas, mas é profissional e meticuloso no cultivo da lealdade de parcela considerável de policiais que lhe pode ser útil. O governo Bolsonaro instrumentaliza a segurança pública a seu favor e, o pior, faz isso em público e sem maiores contrapontos.
A mídia, não sem contradições ou fissuras, e a sociedade civil fizeram sua parte, não só denunciando violações e injustiças, mas propondo ações e assumindo a linha de frente do embate contra retrocessos democráticos. Mas o poder da caneta de um presidente da República é muito grande, ainda mais se coberto pelo manto de invisibilidade do orçamento secreto que irriga os amigos da Corte palaciana. Ou seja, o vácuo resultante dos recuos táticos e das composições da realpolitik é avassalador e implacável. Nos subterrâneos da burocracia pública, muitas placas tectônicas que sustentam os “donos do poder” moveram-se em 2021 e, na minha avaliação, a energia acumulada pelo bolsonarismo radicalizado está longe de ter sido dissipada ou contida.
Um exemplo bastante concreto é que o temor provocado pelo risco de adesão de policiais à agenda golpista escancarada no Sete de Setembro deu lugar a uma série de “gestos de boa vontade” com tais profissionais, como o tratamento reverencial dispensado a eles a partir de então, com frases elogiosas do ministro Luiz Fux, presidente do STF; a aprovação do requerimento de urgência (RU) para a apreciação do PL que cria a Lei Orgânica das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, pela Câmara dos Deputados; as contradições do STF na modernização da jurisprudência que rege a área; entre outros.
E por que isso é digno de destaque? A aprovação do RU do PL de Lei Orgânica das PMs pela Câmara dos Deputados coloca, por exemplo, o carro na frente dos bois, nas palavras de Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pois permite a discussão e eventual votação da lei orgânica de uma das polícias sem que definições fundamentais do sistema de segurança pública como um todo estejam determinadas. Mais do que isso, permite que temas sobre segurança pública, que pela Constituição de 1988 é um direito fundamental e precisa ser garantido enquanto tal, sejam tratados apenas como questões organizacionais e operacionais das polícias.
É inquestionável a importância de novas normas e leis orgânicas das corporações policiais, capazes de atualizar os atuais regramentos sobre as PMs, datados da ditadura militar. No entanto, entre seus diversos problemas, não é concebível que, em um PL sobre Polícias e Corpos de Bombeiros Militares, sejam definidos conceitos como “segurança pública”, “ordem pública” ou “poder de polícia”. Esses conceitos afetam todo o sistema e, por isso, deveriam compor uma lei geral da segurança pública. Da mesma forma, o PL tem vários “jabutis”, que terão impactos profundos nas finanças públicas e na relação com os governadores e com a União sem que tenha sido avaliado e debatido de modo ampliado.
No afago não só bolsonarista aos policiais, questões sobre a vida de milhares de profissionais foram, mais uma vez, jogadas para debaixo do tapete ou minimizadas. Afinal, o PL de Lei Orgânica das PMs também não trata dos aspectos disciplinares dessas corporações, que faz com que ainda em 2021 tenhamos regulamentos disciplinares focados mais em punir comportamentos que atentem contra a hierarquia e valores internos da corporação do que na sua relação com os cidadãos e a sociedade como um todo. Mas não só o PL é problemático: integrantes do STF que elogiosamente têm se oposto ao discurso antidemocrático de Jair Bolsonaro são os mesmos que, na interpretação de aspectos estritamente jurídicos, apoiam retrocessos importantes em um esforço de modernização das forças militares estaduais.
E por falar em termos jurídicos, a segurança pública não se libertará do jogo de soma zero que repõe continuamente mais do mesmo se não se debruçar sobre a constitucionalidade da maioria das normas que regem a área. Quase todas as leis que organizam a atuação das forças de segurança do Brasil são anteriores à Constituição e foram pensadas na perspectiva da defesa do Estado. O fato é que o Judiciário ainda não se debruçou técnica e formalmente sobre a recepção delas pela CF de 1988, como a Lei 667/1969 que regula as PM ou a possibilidade de uma Lei Orgânica única, já que legislar sobre organização dos militares estaduais seria de iniciativa das Unidades da Federação e não da União.
Não bastasse esse quadro de violências e dissonâncias que, no limite, fortalece as polícias na tarefa de fiadoras da ordem social democrática, dotando-as de uma autonomia perversa com elas próprias, pois aumenta a insegurança jurídica das suas atuações, em 2021 o projeto bolsonarista estressou a institucionalidade democrática em várias frentes, como aquela que insiste em pautar uma legislação antiterrorista que, na prática, visa controlar as polícias estaduais e legalizar perseguições; a que visa o enfraquecimento da legislação de controle de armas de fogo; a que autoriza garimpeiros ilegais a explorar ouro na Amazônia em terras indígenas; a que tenta militarizar o Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente), entre muitos outros exemplos da agenda regressiva posta em prática no ano que se encerra.
Em 2021, a base bolsonarista aproveitou a omissão de outros Órgãos de Estado e Poderes para fazer avançar sua agenda regressiva. Enquanto Jair Bolsonaro faz o papel de animador mambembe da torcida macabra que se vangloria da sua incivilidade, o bolsonarismo avança pelas frestas das instituições. Vai (re)criando raízes e semeando a reprodução e o incremento de seus valores reacionários e autoritários.
Não há anteparos ou disposição política que deem conta de tantas fissuras abertas. E um cenário bastante preocupante vai se configurando para 2022. Os resultados das últimas pesquisas eleitorais do Ipec e do Datafolha, que trazem o enfraquecimento da candidatura do presidente Bolsonaro à reeleição e a consolidação do patamar de intenção de votos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, devem gerar um efeito colateral letal para a pauta de modernização da segurança pública. Esse deverá ser um tema evitado ao máximo por todos os candidatos que não Jair Bolsonaro.
Na medida em que “brigar” com as polícias só fortalecerá a narrativa do bolsonarismo, haverá o temor de se pautar temas sensíveis e será muito difícil para qualquer candidatura discutir soluções eficientes para a área e/ou projetos de reforma policial. Em um momento que a violência e a segurança saíram do topo de prioridades da população, nenhum político que vislumbre perspectiva de vitória irá querer, em um primeiro momento, se indispor com os profissionais da área, e suas propostas devem focar apenas na mitigação dos efeitos das opções político-institucionais (cenário de crime, violência contra populações vulneráveis e insegurança) até aqui postas em prática nos contextos nacional e subnacional.
As propostas devem reproduzir as mesmas receitas e, a princípio, deverão ser pactuadas com lideranças das corporações policiais e girar em torno de mais medidas com foco em segmentos específicos da população, salários, contratação de pessoal e aquisições de armas ou viaturas. Em não existindo nenhuma crise penitenciária ou fato a convulsionar a opinião pública, 2022 será um ano muito complexo para a modernização da segurança pública brasileira, pois o governo Bolsonaro nada fez para a segurança pública em 2021. No entanto, o presidente transformou a área em um enorme e disfuncional puxadinho de sua narrativa autoritária, e isso exigirá originalidade e capacidade de mobilização e inovação daqueles que querem se contrapor e fazer a diferença.