No dia da estreia da seleção brasileira na Copa do Mundo, antes do horário do jogo do time de Tite, o Qatar entrou em campo com cerca de trinta jogadores. As traves sem redes improvisavam o gol nas duas pontas do terreno que, sem as marcações no gramado, mais parece um descampado que um campo de futebol. Ainda assim, os meninos da base treinavam disciplinarmente na manhã cinzenta daquela quinta-feira (24) porque teriam uma bateria de competições pela frente. O time do Qatar estava com a agenda cheia – e não eram os jogos da Copa do Mundo. A milhares de quilômetros da Península Arábica, o Qatar Futebol Clube, um time de futebol amador de Itaguaí, na região metropolitana do Rio de Janeiro, treinava duro para três competições municipais marcadas para o último fim de semana de novembro.
Se a seleção do país-sede da Copa foi eliminada do Mundial da Fifa, seu homônimo fluminense chegou à final da desejada Copa Ouro, “o campeonato amador mais falado da cidade de Itaguaí”, segundo o presidente do clube, Alex Félix dos Santos. Mas o time principal é apenas o cartão de visita do grupo. Além dessa equipe, o Qatar F.C. tem jogadores sub-13, sub-15, sub-16, sub-17 e sub-20. “Onde tiver competição na cidade a gente tá botando o Qatar para jogar”, afirma Santos. A equipe também chegou às semifinais do campeonato sub-15 da Taça das Comunidades e do campeonato sub-16 de Chaperó, ambas competições itaguaienses de futebol.
Contando todas as divisões de base, o Qatar F.C. tem quase cem crianças e adolescentes do morro do Carvão, uma comunidade pobre e violenta de Itaguaí. “Se não fosse o esporte, essas crianças não teriam acesso a basicamente nenhum tipo de lazer”, diz Santos. Na comunidade onde moram, faltam opções de recreação e sobram histórias trágicas. “No Carvão infelizmente tem muita coisa ruim. É tráfico, troca de tiro, morador baleado, tudo de ruim acontece lá. Infelizmente alguns jovens vão para o tráfico achando que aquilo é futuro, por isso a gente queria trazer o esporte para mostrar que existe outra opção de futuro”, explica o presidente, que mora na comunidade desde criança. “A gente que está lá sabe que tem muito menino sonhador. A maioria dos moleques aqui quer mudar de vida por meio do futebol. Então fazemos isso para eles verem que tem gente, sim, olhando por eles lá dentro”.
Em quase dois anos de existência, o time, que também funciona como uma espécie de projeto social, já conseguiu mudar a vida de alguns jovens da região. “Um jogador nosso de 18 anos estava com dificuldade para trabalhar e arrumar emprego por causa da pandemia. Infelizmente, acabou se envolvendo com o tráfico numa comunidade vizinha”, lembra Éder Julio da Silva, diretor responsável pelas redes sociais do clube. “A gente juntou todo mundo do nosso time, fomos atrás dele e conversamos com ele. Ficamos muito tempo fazendo esse convencimento para tirar ele do tráfico, e graças a Deus ele saiu.” Silva trata esse caso mais recente como um “resgate”. “Ele conseguiu um emprego, e a gente leva ele como exemplo para os outros. Hoje em dia ele até ajuda a treinar os menores quando dá”, conta.
O Qatar F.C. foi fundado em janeiro de 2021, durante o ápice da pandemia de Covid, quando a crise econômica piorou ainda mais a vida das crianças e de suas famílias. O presidente Alex Félix dos Santos, um zelador escolar de 31 anos, decidiu montar o projeto social numa reunião com amigos no bar onde trabalha para complementar a renda, o Arena Bar. “Era lá que a gente fazia churrasco, jogava sinuca, trocava ideia. E lá mesmo decidimos fazer algo para nós e para as crianças. A gente queria um time nosso, com os moleques da comunidade, só com conhecidos”, lembra ele. Na falta de uma sede, o bar se tornou o QG do time no morro do Carvão. “Agora está em obra, mas quando reabrir eu vou até modificar lá porque tem um escudo do Flamengo na parede principal e agora eu quero botar o escudo do Flamengo e do Qatar F.C., para deixar as duas torcidas”, planeja Santos.
Na época, os diretores não faziam ideia de como comandar um clube de futebol. A maior dificuldade era arrecadar dinheiro para bancar os custos do Qatar F.C. Os fundadores tiveram que fazer um périplo na comunidade, pedindo patrocínio dos comerciantes. “Nosso principal problema foi arrumar verba para o uniforme, a gente tinha pouco patrocinador, então foi difícil arrecadar dinheiro para fazer. Mas menino para jogar a gente tinha, a garotada abraçou o projeto na hora”, lembra o diretor de redes sociais.
No começo, os jogadores do Qatar F.C. precisavam se revezar com uma única bola de futebol. Só o time principal tinha uniforme. Algumas vezes, as crianças deixavam de treinar porque não havia material esportivo disponível. Sem apoio oficial, os diretores precisam fazer tudo por conta própria, incluindo pagar as despesas do time, como taxas para inscrição de campeonatos, transporte dos jogadores, aluguel de campos de futebol etc. O morro do Carvão tem apenas um campo de areia e um gramado pequeno. O Qatar F.C. não tem nem sede nem campo próprio. Por isso, a diretoria precisa alugar campos de futebol pela cidade para realizar os treinos.
Naquela quinta-feira de jogo da seleção brasileira, o aquecimento dos jovens da base estava sendo realizado num terreno emprestado. O dono do campo, um antigo morador do bairro, mantém o descampado para essa finalidade (ele mesmo também tem um time de veteranos, o time da Amendoeira). Depois de meia hora de preparação física, os jogadores estavam prontos para se dividir em dois times e iniciar o jogo. Antes disso, se aglomeraram em frente a uma casa de um cômodo na beirada do gramado para encher as garrafinhas de água na casa do morador vizinho. José Aloísio Bastos de Araújo, de 59 anos, se sente realizado em ajudar os garotos. “A melhor coisa que fizeram foi esse time. Por aqui não tem opção nenhuma para esses jovens”, diz ele. “O bairro é morto, não tem evento nenhum. Eu vivo aqui sozinho com minha cachorrinha, então quando eles vêm é a melhor coisa. Eles alegram o meu quintal.”
Mas, naquele dia, a casa de Araújo estava sem luz. Uma fase da rua havia caído na noite anterior e não aparecera ninguém para consertar. Sem ter como bombear a água do poço para o filtro (na região não há água encanada), o morador não pôde ajudar os meninos do Qatar F.C., que tiveram que se hidratar pedindo água em casas vizinhas ao descampado.
Só o técnico da seleção do Qatar, Félix Sánchez Bas, ganha um salário que equivale a 13 milhões de reais – e está entre os mais bem pagos do mundo. Mas no Qatar F.C. de Itaguaí é diferente. Os jogadores amadores, assim como diretores e o treinador, não ganham um centavo com o time. Apesar de contar com boleiros mais experientes – incluindo um que já jogou no América e no Duque de Caxias – todos têm que conciliar o emprego formal com a atuação no Qatar F.C. O diretor de redes sociais, por exemplo, trabalha como ajudante. “A gente tem que arrumar hora para tudo, às vezes fazer duas coisas ao mesmo tempo. É cansativo, mas a gente precisa estar em contato o tempo todo para não deixar os meninos desassistidos”, diz ele. Os treinos são semanais, geralmente em um campo mais perto da comunidade. Eles se comunicam e resolvem o horário dos treinos pelo WhatsApp.
O treinador das equipes de base, que ajuda com as orientações para as crianças, é um dos jogadores do time principal, que trabalha na área de esporte na Prefeitura de Seropédica, cidade vizinha. Quando ele não pode participar dos treinos, o time precisa improvisar, colocando os mais experientes para treinar o toque de bola e o posicionamento tático dos mais novos – como aconteceu naquela quinta-feira chuvosa.
“A gente consegue organizar graças a ajuda dos próprios moleques”, explica Santos, presidente do time. “Eles estão nessa fase de fazer teste para clubes grandes, têm o conhecimento de bola e o contato das crianças mais jovens. Para a gente que é assalariado é muita correria. A gente se vira e veste a camisa porque gosta de fazer isso para as crianças. Às vezes deixamos de estar com a família para dar atenção para isso aqui. Mas é bom para eles verem que a gente está comprometido. Assim eles acreditam mais ainda. E dá resultado. O time mais falado hoje de Itaguaí é o nosso”, diz, orgulhoso.
Inicialmente o nome do time deveria ser Carvão Futebol Clube. “Mas a comunidade do Carvão é muito mal falada na cidade por ter muitos problemas de violência”, explica Santos. Além disso, existem bairros vizinhos que são controlados por facções rivais, o que poderia ser um entrave para a atuação da equipe. Preferiram colocar o nome de Qatar, que é uma identificação informal – e mais “neutra” – do lugar.
Algumas comunidades cariocas costumam adotar bandeiras de outros países em seu território. Isso acontece, por exemplo, com a favela Nova Holanda, localizada no Complexo da Maré, e com o Complexo de Israel, na Zona Norte da capital. Da mesma forma, o morro do Carvão adotou a bandeira do Qatar como seu estandarte extraoficial (e inaugurou, inclusive, o baile do Qatar na região). O fato de a Copa do Mundo mais próxima acontecer no Qatar foi uma feliz coincidência para o time, que mal conhece o país homônimo. Quando escolheram o nome, não atentaram para o fato de que a Copa seria lá – nem para as polêmicas do país, como a proibição do consumo de álcool e de símbolos LGBTQIA+ na região.
“Alguém lembrou só depois que a Copa seria lá, e isso poderia trazer uma visibilidade legal, e foi o que aconteceu”, diz Santos. Desde que a Copa começou, a comparação inevitável começou a pipocar nas redes sociais. Tanto que o time amador ganhou o patrocínio do Duolingo, um aplicativo de idiomas que realizou uma campanha digital para anunciar que havia se tornado um patrocinador oficial do Qatar – o outro Qatar.
Ao entrar em contato com a diretoria, a empresa perguntou o que o Qatar F.C. mais precisava. Eles basicamente precisavam de tudo. A empresa, então, forneceu kits de treinamento – cones, chapéus chinês e escada de agilidade –, garrafinhas plásticas, mochilas, novos uniformes, bonés e bolas de futebol. Além disso, toda a equipe ganhou um curso de idiomas na plataforma do Duolingo. “Eles gostaram do nosso time e chegaram junto. Ajudaram muito”, diz o presidente
Mas algumas dificuldades se mantêm. Quando as crianças vão para algum torneio, os diretores precisam organizar tudo via WhatsApp e, caso elas precisem de dinheiro para comprar um lanche, eles enviam na hora. “Quando dá, a gente paga o lanche, mas nem sempre dá. A gente pede para eles virem com café da manhã ou trazerem dinheiro”, explica o presidente. Uma das maiores prioridades do clube agora é conseguir oferecer alimentação para os jovens, mas ainda é preciso obter mais patrocinadores para isso. “O que a gente mais quer é trazer na mala do carro uns sanduíches e frutas para eles se alimentarem nos treinos. Mas eu acredito que a gente vai conseguir isso no futuro, dar essa assistência para todas as categorias”, diz.
A seleção do Qatar foi a primeira a ser oficialmente eliminada na fase de grupos da Copa do Mundo da Fifa de 2022, em Doha. Depois de perder para o Equador, para o Senegal e mais recentemente para a Holanda, o país sede não somou pontos no grupo. Mas nenhum dos jovens do Qatar F.C. se interessa muito pela seleção catari. Dizem que os jogadores são todos uns pernas de pau. Pela piada, os diretores do Qatar F.C. acompanharam os jogos da seleção homônima. “O único Qatar para o qual a gente torce é a gente mesmo. Infelizmente não tem como torcer para aquela seleção”, diz, rindo, Éder Silva, o responsável pelas redes sociais.
No dia dos jogos, algumas pessoas da região marcaram a equipe de Itaguaí no Instagram, comentando o fiasco dos cataris e dizendo que seria mais proveitoso ter colocado “o outro Qatar” para jogar. “A gente até achou engraçado, mas bem que poderia ser mesmo. Se fosse, a gente com certeza iria ganhar dos caras”, brinca Silva. O presidente do clube concorda. “Eu vi o jogo. Nossa, eles são muito fracos. Mas esse final de semana será vitorioso para a gente, se Deus quiser. Acho que o Qatar mesmo não vai ganhar nada lá na Copa, mas se a gente ganhar esses títulos aqui vai ser um grande incentivo para a molecada.”
O sucesso do time principal serve como estímulo para os jogadores da base. Se eles demonstrarem um talento especial, podem um dia fazer parte do time principal do Qatar F.C. Mas o foco é alçar os jovens para carreiras profissionais fora de Itaguaí. Os representantes do time costumam levar os maiores talentos para municípios vizinhos onde há olheiros dos grandes clubes cariocas. “A finalidade é fazer com que eles mudem de vida. Pode perguntar, maioria aqui tem o sonho de ser jogador profissional”, disse Alex Santos, o presidente do time, apontando para os jovens da base que treinavam no campo.
No último domingo de novembro, um ônibus lotado de torcedores desceu o “Complexo do Qatar” rumo ao campo de futebol na cidade. O Qatar F.C. jogou contra o Juventus de Itaguaí na final da Copa Ouro. Confirmando a previsão de Santos, o time itaguaiense encontrou um destino melhor que o da seleção árabe. Apesar do jogo difícil, o Qatar F.C. venceu pela primeira vez a Copa Ouro, a principal competição local. “É numa dessas oportunidades que a gente arruma um contato para conhecer nosso projeto”, diz. Com a fama do Qatar F.C. se espalhando pela região, a diretoria pretende ampliar os esportes oferecidos para as crianças do morro do Carvão, com aulas de jiu-jítsu e capoeira.
Mas o maior sonho de Alex Santos é fazer dentro da comunidade um campo de futebol “padrão Fifa” para o Qatar F.C – com marcação, redes nas traves e vestiário, bem diferente do descampado em que estavam na quinta-feira de treino. “Fazer isso dentro da nossa casa vai ser melhor para as pessoas poderem ver e acompanhar mais de perto”, diz ele. “Eu tô correndo atrás, devagarzinho a gente chega lá.”
Além de troféu e medalhas, o time embolsou 5 mil reais como prêmio da Copa Ouro. O valor será usado para bancar despesas do clube. E a diretoria promete festa para os jogadores do “outro Qatar” – com churrasco e a “cervejinha de lei”.