Faz parte da retórica polarizada que tomou conta do debate político brasileiro contrapor a vontade das elites à das classes populares em relação ao governo. Segundo essa lógica, só os ricos seriam a favor do impeachment, e os pobres, contra. Na prática, porém, não é assim que funciona. As pesquisas feitas pelo Datafolha nas manifestações pró e anti-governo mostram que até havia diferenças entre os dois grupos. Entre os pró-impeachment, 37% ganhavam mais do que 10 salários mínimos; entre os apoiadores de Dilma, 24% tinham a mesma renda. Nos protestos contra o governo, 12% eram empresários. Nos pró-Dilma, 15% eram funcionários públicos. Tanto numa como noutra manifestação, porém, perto de 80% dos manifestantes tinha ensino superior, cerca de 30% tinha carteira registrada, e mais da metade ganhava mais do que 5 salários mínimos. Do que se concluiu que, de um lado e de outro, quem estava na rua era parte significativa da elite. Poucos se deram ao trabalho de perguntar o que pensam da crise os que estão na base da pirâmide e não saíram de casa nem para tentar derrubar o governo, nem para apoiá-lo.
Esse é o trabalho do instituto de pesquisas Data Popular, que se especializou em compreender o que se passa na cabeça dos brasileiros com renda familiar abaixo de 3 500 reais por mês – as chamadas classes C, D e E. O Data Popular descobriu que os mais pobres não foram às manifestações porque, primeiro, as consideram “coisa de rico”. Depois, porque são totalmente descrentes dos partidos e do sistema político e não acreditam que a queda de Dilma Rousseff vá trazer mudanças radicais no panorama econômico e social. Quando se aprofunda a compreensão sobre o que pensa essa parcela da população, emerge o fator que realmente separa ricos de pobres. E não é o impeachment.
“A defesa do impeachment se dá na mesma proporção em todas as classes sociais. Mas as razões de cada grupo para pedi-lo são diametralmente opostas”, explica Renato Meirelles, presidente do instituto. “Os brasileiros estão bem menos divididos quanto ao impeachment do que sobre o que deve ser o futuro do país.” Segundo ele, a classe C está mais indignada com o encolhimento de benefícios como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, o Prouni e o Pronatec do que propriamente com a corrupção. “Para eles, a Dilma tem de sair porque não cumpriu os compromissos de campanha e não conseguiu ampliar esses benefícios.” Esse público, portanto, defende o Estado eficiente, mas provedor – que Meirelles chama de “estado vigoroso” –, enquanto nos estratos de maior renda ocorre justamente o oposto. “Os 20% mais ricos, em geral, querem um estado enxuto.” É aí que está o fosso ideológico que realmente importa, e é com esse tema que o país terá de lidar assim que o impasse do impeachment for resolvido. Como o Estado brasileiro está quebrado e o ajuste será inevitável, o embate fatalmente será traumático.
Na interpretação do presidente do Data Popular, o único fator capaz de atrair para os atos pró-impeachment o engajamento dos mais pobres seria um projeto ou um líder que representasse a promessa de melhoria no pós-Dilma. Mas não há sinal de algo do tipo no horizonte. Em janeiro, o Data Popular perguntou a 3 500 pessoas de todas as classes sociais se conseguiriam dizer o nome de uma pessoa capaz de tirar o país da crise – 89% disseram que não seriam capazes. Entre os 11% que apontaram algum nome, a maioria citou papa Francisco. Esses e outros dados que Meirelles apurou lhe dão a convicção de que o próximo presidente eleito no Brasil será alguém que nunca se candidatou.