No dia 5 de junho, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, proibiu operações em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Em agosto, o plenário da Corte referendou a liminar de Fachin, autorizando ações policiais somente em casos excepcionais. Com a determinação, os índices de letalidade das intervenções policiais despencaram no estado do Rio. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), agosto registrou queda de 71% nas mortes em operações se comparado ao mesmo período de 2019. Situação semelhante aconteceu em julho, quando houve uma queda de 74% em relação ao mesmo mês do ano passado. Morador da Cidade de Deus, na Zona Oeste carioca, o cineasta Rodrigo Felha vê da janela o que os números sugerem – os dias na favela estão mais tranquilos após a decisão do Supremo. Diretor do documentário Favela Gay, Felha narra como é viver essa nova rotina – que inclui coisas simples como ir para casa a qualquer hora ou não se ver cercado pela polícia no caminho para o trabalho – , mas já está preocupado com o que pode acontecer quando a decisão do STF for suspensa.
(Em depoimento a Matheus Rocha)
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“Em maio, a gente estava fazendo uma ação social na Cidade de Deus, numa localidade chamada Pantanal. Quando entregávamos as últimas doações, o caveirão entrou exatamente onde a gente estava. O desastre foi total. Todas as pessoas da ação ficaram à mercê de um tiro. Cada um conseguiu se esconder em casas diferentes. Ficamos por lá entre cinco e dez minutos, que pareciam intermináveis, porém uma pessoa que não estava com a gente foi baleada e morreu. Descobrimos depois que ela tinha algum envolvimento [com o tráfico]. Tem gente que pode falar: “Ah, mas, se tinha algum envolvimento, a operação foi Ok.” Lógico que não. A polícia não está ali para matar nem levar risco à vida de ninguém. Houve risco à vida de pessoas que estavam ajudando outras pessoas, fazendo um serviço que o governo não fez. Em vez de ajudar, atrapalham.
A gente também precisou alugar um galpão fora da Cidade de Deus por medo de que as entregas para a Frente CDD fossem canceladas. Esse temor se confirmou no primeiro dia. A gente estava recebendo uma grande remessa, e rolou uma ação da polícia. Se o galpão não tivesse sido alugado fora da comunidade, a entrega com certeza não teria sido feita. Depois disso, houve várias operações desastrosas em outras favelas, e aí veio a proibição por causa da pandemia. A partir daí, passamos a trabalhar com muita tranquilidade. A gente pode chegar às localidades a hora que desejar sem medo de uma operação policial, que era a única coisa que poderia nos atrapalhar.
Agora, os pais têm a certeza, ainda que não absoluta, de que podem deixar seus filhos na rua a hora que bem entenderem. A gente vê a favela feliz. O morador pode sair para o trabalho sem pensar: “Poxa, vou chegar atrasado porque a polícia vai entrar.” Ele não precisa mais ligar para o patrão, dar desculpa ou sair mais cedo de casa. São vários os benefícios que só quem está no território sabe.
O entendimento sobre as operações precisa ser restabelecido, porque a gente já sabe os resultados: o sangue derramado. Ninguém da classe média alta vai trocar a vida de seu filho ou a sua vida pela apreensão de um fuzil. Mas é o que acontece nas operações daqui. “Morreu um inocente, mas apreendemos dez fuzis.” Outros dez fuzis voltarão, mas aquela vida perdida nunca mais vai voltar.
Vêm os seguidores do Bolsonaro e perguntam: “Vocês preferem os traficantes andando com armas?” A gente vive na Cidade de Deus há mais de cinquenta anos e nunca a operação policial acabou com as armas. Não vai ser o caveirão entrando três vezes ao dia que vai acabar com isso. O que vai acontecer é a morte de mais crianças. Foram 28 baleadas e oito mortas [só nos últimos doze meses]. Se essas ações da polícia não tivessem acontecido, elas estariam vivas na praça. Muitos acham que somos coniventes [com o crime] pelo simples fato de morarmos em um território onde existem pessoas à margem da legalidade. Só que também existem pessoas do alto escalão que estão sendo presas, mas não falamos que seus vizinhos são coniventes com o crime. A gente não é conivente com o que acontece na favela. A gente convive. Com a polícia, não conseguimos conviver.
A memória mais antiga que tenho de uma operação é o chamado Muro da Vergonha. Um morador conseguiu uma câmera, já que não havia acesso a celular ainda, e filmou cenas de agressão policial. A polícia colocou moradores contra um muro e começou a agredir todos eles. Esse muro fica em frente à minha casa, e eu poderia ter estado nele. Eu circulava pela favela o tempo todo e chegava em casa tarde da noite. Eu já estava em casa naquele dia. Caso contrário, teria sido abordado e, possivelmente, agredido. Tenho certeza que sofreria agressão só pelo fato de morar ali. Isso ficou na minha cabeça.
Já fui parado dezenas de vezes pela polícia, apenas por morar aqui. O episódio que mais me marcou aconteceu um dia antes de eu ir para o Festival de Cannes, em 2010. Eu estava saindo para ir à casa de um amigo que havia organizado um jantar com outras pessoas para comemorar minha ida ao festival. Saindo, fui abordado no muro de casa. Nunca tive medo de abordagem policial, porque sei que não estou errado e sei até onde eles podem ir. O agente pediu para eu colocar a mão na parede. Ok. Prontamente atendi. Ele tentou abaixar as minhas calças e eu neguei. Falei que fazia um trabalho social na Cidade de Deus, que o comando dele me conhecia, sabia do meu trabalho. Ele insistiu. Isso gerou um debate, um atrito rápido, mas eu não deixei. Saí andando.
Naquele momento, eu estava com uma visibilidade boa por conta do filme 5x Favela: Agora por Nós Mesmos, do qual fui um dos diretores. Quando levei isso para a imprensa, muitos moradores vieram me agradecer, porque esse policial já estava fazendo aquilo com outras pessoas: mandar abaixar as calças e fazer abordagens constrangedoras. Os moradores não tinham a quem recorrer. Ele me considerou um inimigo só por eu estar no território. Estar aqui é ser visto como inimigo, mas a gente está quebrando esse paradigma por meio da arte e da cultura.
Para mostrar que a minha câmera tremida é uma linguagem, não uma falha, demorei muito tempo. A câmera tremida do estudante de cinema da PUC é a linguagem, mas a minha câmera tremida não é vista assim. A gente é a anormalidade dentro do setor. Por meio de uma bolsa, eu estudei na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, instituição com a qual tive e ainda tenho boas relações. Estudar lá foi transformador. No meu primeiro dia de aula, o professor pediu para a gente falar o nome e de onde a gente vinha. Sentei lá atrás. Havia dois franceses, um espanhol, gente do Espírito Santo e de São Paulo. Quando o professor perguntou, eu respondi: “Sou Rodrigo Felha e moro na Cidade de Deus.” Todo mundo olhou para trás. Eu era um corpo estranho. “Quem é esse cara?” “Cidade de Deus?”
Existem muitas coisas no nosso cotidiano ricas do ponto de vista de roteiro e de fotografia. Isso está muito claro para a gente, mas essas histórias não estão tão claras para quem não mora neste território. Morar na favela traz esse olhar apurado se você estiver atento e com o coração aberto. Não é fácil. A gente absorve muita coisa. É preciso dividir o que a gente absorve de positivo e o que deve ser descartado. Sou um cineasta que gosta de luz quente. A favela tem essa luz quente: o sol brilha igual para todos, mas, quando bate no tijolo, a coloração é diferente.
Aqui na favela está tudo mais tranquilo. Do comércio à rotina dos moradores, que podem ir trabalhar sem medo de levar um tiro. As pessoas conseguem andar livremente, e é nessa normalidade que a gente deseja viver, com as crianças nas ruas e os moradores podendo voltar para casa a hora que eles quiserem. São coisas normais, comuns a pessoas de classe média alta, mas o que é normal lá fora é privilégio para a gente. Por uma decisão atípica, estamos tendo esse direito, mas ele vai acabar. É isso o que já está me doendo. Eu já sou alguém ansioso e que sofre pensando na volta das operações.”