No último dia 9 de agosto, foi enviada ao Congresso a Medida Provisória no. 1.061/2021, que cria o Programa Auxílio Brasil e substitui o Bolsa Família. Além de transferência de renda com condicionalidades para famílias em pobreza e extrema pobreza, a MP traz outros cinco tipos de auxílios com objetivos de: ampliar a matrícula em creches, premiar estudantes que se sobressaiam no desempenho acadêmico ou em atividades esportivas e promover a inclusão produtiva dos jovens e adultos. À primeira vista, o Auxílio Brasil pode parecer um Bolsa Família turbinado, mas, sob olhar atento, o que vemos é a política de combate à pobreza brasileira em frangalhos, se debatendo contra um conjunto de penduricalhos de caráter duvidoso.
Vamos primeiro aos frangalhos, examinando as mudanças introduzidas pelo Auxílio Brasil na transferência de renda com condicionalidades. Hoje, o Bolsa Família atende famílias em extrema pobreza (renda familiar per capita de até 89 reais mensais) e pobreza (entre 89,01 e 178 reais). As famílias extremamente pobres podem receber quatro tipos de benefícios: o básico, de 89 reais por família; o variável, de 41 reais para gestantes, nutrizes e pessoas entre 0 e 15 anos; o variável jovem, de 48 reais, para adolescentes de 16 e 17 anos; e o de superação da extrema pobreza, que complementa o valor dos demais benefícios, garantindo que cada pessoa beneficiária esteja acima da linha de extrema pobreza. O valor médio mensal do programa está em cerca de 190 reais por família.
O Bolsa Família é um dos programas sociais mais estudados e reconhecidos mundialmente por seus êxitos. Contribuiu para a redução da pobreza e a melhoria das condições de educação e saúde, entre outras. No entanto, tem duas lacunas fundamentais: a chamada fila de espera – pessoas que se adequam aos critérios de entrada do programa, mas não são incluídas – e a falta de regras para a atualização das linhas de pobreza e dos valores dos benefícios – que estão sem reajuste desde 2018 e bastante defasados.
A título de exemplo, se sua linha de pobreza inicial (100 reais em janeiro de 2004) fosse ao menos atualizada pela inflação, hoje estaria em 260 reais (quase 50% maior do que a atual, de 178 reais). Se o Brasil adotasse a linha de pobreza de 3,20 dólares/dia, usada pelo Banco Mundial para países de renda média baixa, o valor seria de 284 reais (60% acima da atual). Com a linha para países de renda média alta (caso do Brasil), de 5,50 dólares/dia, o critério de entrada no Bolsa Família seria de 487 reais per capita (174% maior). Ou seja, estamos aquém do que deveríamos segundo qualquer critério. Aprimorar o Bolsa Família passa por corrigir essa defasagem e suas causas, também sob o entendimento de que gastamos muito pouco com a transferência de renda aos mais pobres – 0,5% do PIB, enquanto os países da OCDE direcionam, em média, 2,5% do PIB a esse tipo de programa.
O novo programa, Auxílio Brasil, também atende famílias pobres e extremamente pobres. As famílias receberão dois tipos de benefícios: o da primeira infância, pago por integrante com idade entre 0 e 36 meses incompletos; e o de composição familiar, destinado a pessoas entre 3 e 21 anos. Aquelas extremamente pobres também fazem jus ao benefício de superação da extrema pobreza, caso não consigam ultrapassar a linha de extrema pobreza com os dois benefícios anteriores. Tanto a simplificação da estrutura de benefícios quanto sua extensão a estudantes entre 18 e 21 anos são pontos meritórios da medida.
Vamos aos problemas. O benefício de superação da extrema pobreza não apresenta a forma de cálculo. Poderá ser como é hoje, o complemento necessário para que as famílias deixem a extrema pobreza, ou um outro valor qualquer. Ainda, a Medida Provisória não resolve o problema da fila de espera nem traz sequer uma referência monetária sobre as linhas de pobreza e os valores dos benefícios. Todas essas definições são jogadas para decretos posteriores.
No fim, os valores das linhas de pobreza e dos benefícios, tal como o tamanho da fila, dependerão do espaço fiscal aberto pela inflação e pelo parcelamento de precatórios, num debate orçamentário esquisito, em que o financiamento da transferência de renda aos mais pobres parece mais uma chantagem (se quiser Auxílio Brasil, tem que aprovar a PEC dos Precatórios) e menos um objetivo.
Por isso argumentamos anteriormente que a política de combate à pobreza brasileira está em frangalhos: porque o Bolsa Família já está maltrapilho, defasado em cobertura e valores, e pode seguir assim, cada dia mais roto, com o Auxílio Brasil. Sendo o Bolsa Família tão bem avaliado, reconhecido e com fragilidades facilmente identificáveis, caberia aprimorá-lo, corrigindo suas lacunas. Infelizmente não é o que vemos no novo programa.
O Auxílio Brasil inclui outros cinco tipos de auxílios acessíveis às famílias que recebem os benefícios condicionados descritos acima – novamente, nenhum deles tem valor definido na Medida Provisória. Vamos começar pelos três de desenho problemático.
O primeiro é o Auxílio Criança Cidadã, destinado a famílias com crianças em idade de frequentar creche, preferencialmente que vivam com mãe ou pai solo. É pago à instituição de ensino privada (e não diretamente à família) quando não houver vagas em creches públicas ou conveniadas e “condicionado” a que a família apresente ampliação de sua renda ou comprovação de um emprego formal. Deixamos entre aspas o termo condicionado, pois não está explícito na Medida se o aumento de renda da família é condição para começar a receber esse auxílio ou para continuar recebendo.
Hoje as creches são atribuição dos municípios, com recursos próprios e do Fundeb – que repassa ao município um recurso anual por criança matriculada. Pela falta de vagas, é a única etapa da educação básica em que é possível a realização de convênios com instituições privadas sem fins lucrativos. Desde 2012, por meio do programa Brasil Carinhoso (Lei 12.722/2012), a União transferia um valor a mais aos municípios, conforme a ampliação de vagas em creches para crianças do Bolsa Família. A partir de 2016, a definição desse valor a mais passou a ser responsabilidade do Ministério da Cidadania, e essa ação foi minguando, até ser agora revogada pela MP do Auxílio Brasil.
Na prática, o Auxílio Criança Cidadã é uma nova tentativa de repassar recursos da educação pública para instituições privadas, sem a necessidade de intermediação do município. Esse auxílio tem sido chamado de voucher, mas não é uma descrição precisa. Em um programa de voucher, a família recebe um valor para escolher uma escola privada. Pelo que está na MP, no entanto, quem escolherá a creche será o governo.
Podemos afirmar, com poucas chances de errar, que essa medida não vai ajudar a resolver o problema da baixa cobertura de creches para as crianças mais pobres e tende a contribuir para a desorganização da oferta municipal. Se o valor ofertado para a creche pelo programa federal for maior que o valor pago pelo município, creches conveniadas com os municípios terão interesse em migrar para o convênio federal, reduzindo a oferta da rede municipal ou aumentando seu custo. Se o valor for menor, a creche não vai participar do convênio federal ou vai reduzir seus custos, diminuindo a qualidade do serviço. Em resumo, o Auxílio Criança Cidadã é um balangandã que não para de pé.
Em segundo lugar, temos o Auxílio Inclusão Produtiva Urbana, destinado às famílias beneficiárias que tenham integrantes no mercado formal de trabalho (limitado a uma pessoa da família). Por que dar um valor a mais para quem já está no mercado formal de trabalho? A única resposta possível seria evitar que os adultos das famílias beneficiárias da transferência condicionada deixem de procurar emprego formal. Mas é uma resposta errada, porque estudos sobre o tema apontam que a participação no Bolsa Família não gera desincentivos à formalização do emprego. Assim, a solução proposta por esse auxílio é, na realidade, uma não solução para um não problema.
O último auxílio dos três problemáticos é o de Inclusão Produtiva Rural, que será pago mensalmente aos agricultores familiares das famílias beneficiárias. Após três meses, o agricultor familiar deve doar a pessoas em vulnerabilidade parte de sua produção agrícola, correspondente à parcela do benefício recebido (novamente, não há valor do benefício nem de qual fração dele corresponderá à doação). O benefício se chama inclusão produtiva, mas deveria se chamar inclusão caritativa, na medida em que o agricultor deve doar, e não comercializar, a produção excedente. Um agricultor familiar em situação de extrema pobreza não produz o suficiente por várias razões, sendo só uma delas a falta de recursos para compra de insumos e equipamentos. Em geral, a terra é escassa ou pouco fértil, falta de água, de acesso à tecnologia e à assistência técnica, entre outros fatores. Nada disso está sendo tratado com esse auxílio, que busca o milagre de nos fazer crer que um benefício financeiro pequeno tornará um agricultor familiar pobre capaz de produzir para seu próprio sustento e ter excedente para doar e comercializar.
Outros dois auxílios têm desenho justificável: o Auxílio Esporte Escolar, dedicado a estudantes que se destaquem em competições esportivas, e a Bolsa de Iniciação Científica Júnior, para estudantes com destaque em competições acadêmicas e científicas. Ambos serão pagos em doze parcelas mensais e uma outra parcela única. No entanto, o lugar de sua operação na política pública mantém-se questionável, o que nos leva à questão dos penduricalhos.
Vamos supor que todos esses cinco auxílios estivessem bem desenhados. Qual seria o problema, portanto, de estarem articulados a um programa de transferência de renda condicionada? Nenhum. Não é novidade, no debate sobre pobreza, sua natureza multidimensional que demanda, além de transferência de renda, toda uma rede de proteção e promoção social. Foi exatamente com esse objetivo que o Cadastro Único foi criado em 2001: ser uma base de identificação e caracterização socioeconômica das famílias mais vulneráveis, possibilitando a convergência das políticas públicas no atendimento das diversas dimensões da pobreza. No entanto, o que a Medida Provisória 1.061 propõe não é a articulação de políticas setoriais para atendimento dos mais vulneráveis, e sim a inserção de benefícios monetários com objetivos distintos dentro de um mesmo programa e competindo por um mesmo orçamento. Isso tira o foco do programa de transferência condicionada de renda e cria uma concorrência orçamentária entre o que lhe é essencial (por óbvio, a transferência de renda a todos que atendem seus critérios) e o que lhe é acessório – no caso, os novos tipos de auxílio, ou os penduricalhos.
Hoje, não temos orçamento sequer para uma transferência de renda digna aos mais pobres e, mesmo com o dobro de recursos, não teremos. Se o orçamento é curto para a tarefa base, não há como justificar que os novos auxílios abocanhem parte dele.
Outra novidade do Auxílio Brasil é a consignação: 30% do valor dos benefícios poderão ser usados como margem para amortização de empréstimos e financiamentos por instituições financeiras que operem microcrédito. Entendemos pouco desse tema específico, mas deixamos aqui duas dúvidas. A primeira refere-se à adequação entre a lógica do empréstimo consignado e a operação dos benefícios do Auxílio Brasil, pois a consignação supõe uma folha de pagamentos regular, que não existe na transferência condicionada. Isso porque os valores pagos podem variar de um mês a outro, a família pode deixar de receber por um ou mais meses (desatualização cadastral costuma ser o motivo mais frequente para bloqueio de benefícios) ou mesmo sair do programa.
Isso nos leva à segunda dúvida, sobre o endividamento das famílias pobres. A Medida Provisória deixa explícita a responsabilidade exclusiva da família pelo pagamento do empréstimo. Terão as famílias acesso à informação necessária e suficiente para entender o risco de assumir uma dívida que pode superar o período de recebimento dos benefícios do Auxílio Brasil?
Ao fim de tudo, o que o Auxílio Brasil faz é retroceder a política de transferência de renda ao período em que existiam diversos programas de mesmo tipo, sobrepostos e pulverizados. Agora, nos resta torcer para que o Congresso Nacional tenha a sanidade necessária para rejeitar a MP 1061/2021 e pautar os projetos que lá tramitam e efetivamente estão comprometidos com o aprimoramento do Bolsa Família. Ou, minimamente, que a relatoria da Medida Provisória seja designada a um parlamentar disposto a apresentar uma emenda substitutiva global à matéria, sanando as falhas.
Tecnicamente, não é difícil. É preciso reajustar as linhas de pobreza e os benefícios, criando uma regra de atualização periódica pela inflação; assegurar recursos suficientes para que a transferência de renda seja capaz de abranger quem cumpre os critérios de entrada, sem fila ou demora para atendimento, e deixar os penduricalhos de lado. Dá até para aproveitar o ensejo para trabalhar na simplificação da estrutura dos benefícios e na sua extensão aos estudantes de 18 a 21 anos e às famílias pobres sem filhos, tal como para manter os auxílios aos estudantes com destaque em competições acadêmicas e desportivas – mas lembrando de inserir esses auxílios no arranjo institucional adequado e com dotação orçamentária específica. A questão é como construir politicamente esse consenso.
Alguns buscam atenuar a inadequação do Programa Auxílio Brasil sob o argumento de que, embora erre no desenho, tem intenções adequadas. Acompanhando o governo atual, nos permitimos aqui ponderar que talvez o propósito dos incentivos seja menos a preocupação com a inclusão produtiva e a mobilidade social e mais o discurso vazio de “emancipar os mais pobres”, libertando-os da dependência do Estado. Ainda que a boa-fé nos faça levar à frente a ideia da boa intenção, é preciso ter a clareza do seguinte: em política pública, uma boa intenção mal desenhada é só uma péssima política pública. Ou, como diz o dito popular: de boas intenções o inferno está cheio.