A dúvida quanto ao que se pode enxergar no céu está na ordem do dia, ao menos entre os assinantes da Netflix, desde que o filme Não Olhe Para Cima (2021), de Adam McKay, entrou para o serviço de streaming. O filme estreou em 9 de dezembro, se tornou o terceiro título mais visto na história da plataforma e recebeu avaliação favorável de 82% dos que se deram ao trabalho de opinar. Filmada em plena pandemia, entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021, a história criada pelo jornalista David Sirota em parceria com McKay teve orçamento de produção da ordem de 75 milhões de dólares. A obra dura 2 horas e 18 minutos, incluindo a bizarrice de ter uma cena durante os créditos finais e outra ao término deles.
O que vemos quando olhamos para o céu? (2h30min, 2021), por sua vez, além de ser uma pergunta instigante, é o título da produção alemã e da Geórgia, de orçamento certamente modesto, mas não informado, escrita e dirigida por Alexandre Koberidze. Lançado na última sexta-feira (7) na plataforma de streaming MUBI, o filme estreou em março do ano passado no 71º Festival de Berlim, onde recebeu o prêmio da Fipresci – a Federação Internacional de Críticos de Cinema. Em outubro e novembro voltou a ser exibido, dessa vez na Competição Novos Diretores da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Fora certo parentesco dos títulos e o fato de terem sido lançados no mesmo ano – além de ambos durarem bem mais do que o usual, vale dizer –, os dois filmes são completamente diferentes, embora tenham o propósito comum de retratar a sociedade de seus países de origem. No caso dos Estados Unidos, de maneira explícita; no caso da Geórgia, de forma implícita. Não Olhe Para Cima trata do fim do mundo, enquanto O que vemos…? fala do nosso “tempo brutal, impiedoso”, conforme diz a narração do diretor Koberidze. Para ele, esta será considerada “uma das épocas mais violentas pelo povo do futuro”, que será incapaz “de explicar nossa indiferença em relação aos acontecimentos à nossa volta”.
A produção milionária da indústria americana pretende ser uma sátira política mordaz, mas perde impacto à medida que situações e personagens vão se tornando cada vez mais caricaturais. No filme, a voz da ciência é ignorada, medidas urgentes para a sobrevivência da humanidade são postergadas, um guru bilionário que fabrica celulares influencia decisões do governo americano, o filho da presidente da República atua como seu chefe de gabinete etc. Não faltam semelhanças com o Brasil onde o ex-presidente Donald Trump continua a ser tomado como modelo de imitação medíocre, mas feita com devoção, pelo atual ocupante provisório do Palácio do Planalto.
Ignorando a recomendação de agir imediatamente ao ser informada de que a humanidade e todas as espécies serão extintas em seis meses por um cometa que atingirá a Terra, a presidente Orlean (Meryl Streep) decide “to sit tight and assess” (aguentar firme e avaliar). Provoca, com isso, reação indignada da doutoranda em astronomia Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), que resolve “dar o fora” da Casa Branca, dizendo que o Salão Oval é “um hospício”. Pouco tempo depois, frustrada com o andamento de uma entrevista que concedia a um canal de notícias, Dibiasky perde a paciência de novo e ironiza a premissa do programa The Daily Rip: “Desculpe. Não estamos sendo claros? Estamos tentando dizer a vocês que todo o planeta está prestes a ser destruído […]. A destruição do planeta inteiro talvez não deva ser um divertimento. Talvez deva ser aterrorizante e perturbador. E deveriam passar a noite toda, toda noite, chorando, quando nós temos 100% de certeza de que vamos todos morrer, porra!”
Vitoriosa a postura de não olhar para cima e fracassada a missão de desintegrar o cometa para aproveitar seus metais preciosos, o gigantesco asteroide entra na atmosfera e atinge a Terra. O impacto fatal é maior que o causado em Chicxulub, na Península de Yucatán, no México, há dezenas de milhões de anos, que levou à extinção de cerca de 75% das espécies vegetais e animais que viviam no planeta. Dessa vez, a vida na Terra é aniquilada, ou quase. Há ao menos um sobrevivente, conforme revela a cena de encerramento após os créditos finais: o filho da presidente, Jason Orlean (Jonah Hill), que no início do filme se apresentou como “a porra do Chefe de Gabinete, Garoto com Tatuagem de Dragão. Então estou bem.” Ao emergir dos escombros, ele envia uma mensagem pelo celular: “Merda! Mãe? Mãe? E aí, galera? Sou o último homem na Terra. Tá tudo fodido. Não esqueçam de curtir e se inscrever. Tô na área. Mãe!” (cabe duvidar de que a maioria dos espectadores tenha sequer visto essa cena).
A boa acolhida dada a Não Olhe Para Cima parece indiscutível, embora alguns críticos americanos tenham sido impiedosos com o filme. Entre nós, Ruy Gardnier chamou Mackay no jornal O Globo de “verdadeiro cineasta brechtiano”! Controvérsias à parte, a dúvida que fica é se está ao alcance do cinema harmonizar, de um lado, a intenção de entreter milhões de espectadores e, de outro, o propósito de abordar questões cruciais das quais depende a perpetuação da espécie humana e animal, além do meio ambiente e da sociedade a que pertencemos, ameaçadas na narrativa ficcional pelo cometa em rota de colisão com a Terra. O tratamento caricatural e os personagens estereotipados não anulam a pretensa visão crítica? Algum espectador passará a olhar para cima após ter assistido ao filme?
Em O que vemos quando olhamos para o céu?, a ameaça que paira sobre Kutaisi, terceira cidade mais povoada da Geórgia, não é tangível. O tempo brutal, impiedoso em que os eventos se passam só é mencionado pelo narrador no início da segunda parte, após cerca de 1h22min do filme que Koberidze define como um conto de fadas onde tudo pode acontecer.
Na metade inicial, realismo e magia são articulados para contar o encontro fortuito de Lisa (Ani Karseladze e Oliko Barbakadze) e Giorgi (Giorgi Ambroladze e Giorgi Bochorishvili), seguido do encantamento mútuo e da maldição que torna ambos irreconhecíveis um para o outro, mesmo quando voltam a se encontrar por acaso na segunda parte do filme (atores diferentes fazem os personagens antes e depois da transformação que sofrem).
Ao contrário do filme americano, O que vemos quando olhamos para o céu? não é deliberado nem pretende demonstrar nada. Limita-se a observar eventos banais do cotidiano durante a realização de uma Copa do Mundo e dedica a segunda parte a um documentário que está sendo feito sobre casais apaixonados, aos quais Lisa e Giorgi, embora contrariados, acabam se juntando. É nessa simplicidade que reside seu encanto.
A inspiração para o título, segundo Koberidze, veio de Lionel Messi, que “sempre olha para o céu quando marca um gol”. “E eu sempre me animava”, ele prossegue, “com essa ligação dele com algo que é impossível ver. […] É um gesto universal. Todo ser humano tem sua própria resposta para a pergunta do título. Há sempre um momento em que olhamos para cima, mas o que você vê é algo ancestral, diferente para todos […]” (A entrevista completa de Koberidze pode ser vista no MUBI após o filme).
O comentário final do narrador é um sinal de alerta que vale para todo cineasta: “Confesso que sempre penso no que dizer aos meus filhos quando eles me perguntarem a razão de tanta brutalidade e impotência. Quando perguntarem o que eu estava fazendo quando tudo isso aconteceu. Penso nisso porque sei que irão perguntar e não tenho respostas. O que devo dizer? Que eu fazia filmes?”
Talvez possamos concluir que a grande ameaça não vem do céu, mas dos próprios terráqueos.