Fez sol em Budapeste em quase todos os treze dias em que estive na cidade, de 5 a 18 de fevereiro. No dia 17 o tempo mudou: chuva e frio. Foi justamente o dia em que Jair Bolsonaro chegou. Os jornalistas brasileiros posicionados numa arquibancada à frente do Sandor Palace, residência oficial do presidente da Hungria, sofriam com o vento à espera de Bolsonaro. O presidente brasileiro desembarcou do carro oficial pouco agasalhado e cambaleou numa rajada, aprumando-se em seguida. Mais tarde, no Palácio Karmelita, onde fica o gabinete do primeiro-ministro Viktor Orbán, Bolsonaro proferiu um discurso emocionado sobre valores, liberdade e família. Ao fim, declarou que via Orbán, a estrela da extrema direita mundial, como “um irmão”.
Em reportagem na piauí_186, contei por que Bolsonaro aprecia Orbán. Entre uma entrevista e outra, fiz fotos da cidade com meu celular e decidi compartilhá-las neste álbum que, durante a apuração, funcionou como uma espécie de bloco de notas visuais. As fotos mostram uma Budapeste em geral ensolarada, dividida não só pelo Rio Danúbio, mas por uma guerra política e cultural. De um lado, uma extrema direita cada vez mais ativa e, de outro, personagens da resistência a Orbán.
Nos treze dias que passei em Budapeste, vi duas manifestações de extrema direita. Uma delas (abaixo) era promovida pelo partido Mi Hazánk, cujos integrantes usavam uniformes de corte militar e portavam estandartes com a cruz de Santo Estêvão, o padroeiro da Hungria.
A outra manifestação (abaixo) era de militantes antivacina, que prestavam solidariedade aos caminhoneiros canadenses, em greve contra a obrigatoriedade do passaporte de vacina para entrar no país.
Budapeste tem uma ativa direita acadêmica. O centro de estudos Matthias Corvinus, que recebeu mais de 1 bilhão de dólares de orçamento do governo, faz simpósios reunindo acadêmicos conservadores prestigiados do mundo inteiro. Na véspera da chegada de Bolsonaro a Budapeste, o centro sediou um debate cujo tema era “Os valores que queremos passar a nossos filhos”. O programa também trazia assuntos como “As mulheres x O feminismo”.
Balasz Orbán (acima), chefe do conselho da Corvinus, deu o tom da noite: “A bandeira do arco-íris substituiu a bandeira vermelha.” Ele segue uma corrente conservadora que acha que o grande fator de desestabilização do Ocidente não é mais o comunismo, mas os movimentos LGBTQIA+. O outro Orbán, o primeiro-ministro, vem usando esse discurso em sua campanha eleitoral.
Até a lanchonete da Corvinus é alinhada: homenageia o pensador conservador britânico Roger Scruton. O simpósio era inteiramente gratuito para quem se inscrevesse, com direito a finger food. Ficou lotado.
Mas nem só de conservadorismo vive Budapeste. A noite é movimentadíssima, e a atração principal são os bares de ruínas, como o Szimpla, que ficam lotados. São construídos em casas em ruínas, como o nome sugere, e têm vários cômodos transformados em ambientes de confraternização.
O café Kisuzem, abaixo, é ponto de encontro de escritores e cineastas. O cinema e a literatura húngaras – atualmente fustigados por Orbán, como conto na reportagem – são admirados no mundo inteiro.
O ponto de encontro LGBTQIA+ é o Aurora (abaixo), que fica num lugar um pouco mais afastado do Centro. Já foi fechado algumas vezes sob o pretexto de fazer barulho demais à noite, mas resiste. Durante seu terceiro mandato, Orbán travou uma guerra cultural contra a população LGBTQIA+ da Hungria, aprovando leis que proíbem a presença de homossexuais na tevê a partir de um determinado horário, por exemplo.
Este é o Party District, o bairro boêmio da cidade, cheio de bares e sinagogas. É lá também que ficam os principais bares de ruínas, como o Szimpla e o Kisuzem.
Mas, mesmo lá, há uma sede do Fidesz, o partido de Orbán.
O Party District à noite.
Budapeste é uma cidade obcecada por monumentos. Um deles, em que o arcanjo Gabriel – representando o povo húngaro – é fustigado por uma águia – a Alemanha –, é local de protestos quase diários. Segundo os manifestantes, ele falsifica uma realidade histórica. A perseguição a judeus em Budapeste não se deu apenas depois da invasão dos nazistas, em 1944. Ela já existia antes.
A ideia de uma Hungria vítima de duas invasões – nazista e comunista – é a base do museu Casa do Terror.
A Hungria de Orbán é um país que expulsou quase toda uma universidade, a “Central European University”, financiada pelo inimigo número 1 de Orbán: George Soros. No belíssimo prédio da instituição, chamam a atenção os espaços vazios. Uma parte pequena dos professores ficou em Budapeste. A maior parte deles se mudou para Viena.
Livros infantis com temática inclusiva são multados na Hungria. Mas livros em inglês críticos a Orbán, ou abordando temas não caros ao regime, ficam livremente expostos na livraria Best Seller, ao lado da universidade, focada em publicações em inglês.
Foi neste ambiente de autocratização, e ao mesmo tempo extremamente vivo culturalmente, que Bolsonaro desembarcou no dia 17 de fevereiro, para uma visita a Orbán. As fotos abaixo mostram o momento em que cheguei mais perto do presidente, que cancelou a entrevista coletiva para os jornalistas brasileiros.
Bolsonaro e Orbán entraram na sala trocando sorrisos.
No encontro, apenas ministros, diplomatas e militares tinham lugar previsto, caso do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. Carlos Bolsonaro não tinha lugar marcado, mas acabou ocupando a cadeira de um diplomata.
Na obsessão de Budapeste por monumentos não há mais lugar para as estátuas do realismo socialista, que predominavam na época do comunismo. Elas ficam escondidas em áreas como o Parque Memento, nos arredores da cidade, numa região onde há poucas opções de transporte coletivo e os motoristas de aplicativo não chegam. Estão lá Marx, Engels, Lênin, Stálin e outros. Os opositores de Orbán dizem que, um dia, sua estátua pode ir parar lá.