Em novembro de 2018, Juan David Colmenares Garcia tinha 18 anos de idade e era um lateral direito em ascensão. Acabara de sair do Angostura Fútbol Club, onde jogava nas categorias de base, e estava prestes a fechar contrato com o Mineros Guayana. Ambos os clubes pertencem à primeira divisão do campeonato venezuelano e têm sede no estado de Bolívar. Ele recebia um salário de 2 mil bolívares – o equivalente, hoje, a cerca de 450 reais. A quantia, embora modesta, era fundamental para ajudar com as despesas da casa onde vivia com os pais e o irmão mais velho, na cidade de Puerto Ordaz. Garcia sempre teve uma vida de classe média. Desde criança estudou em colégios particulares e, durante as férias, viajava com a família pelo litoral do país. Seu pai era técnico de informática; sua mãe trabalhava na administração de uma faculdade. Viviam em boas condições, até que tudo foi se deteriorando junto com a economia venezuelana.
Naquele ano, com a inflação batendo no telhado, a renda da família deixou de dar conta das necessidades básicas, e a fome bateu à porta. Nos piores dias, se viram obrigados a comer somente arroz em todas as refeições. Carne se tornou um item raro de consumo. E, por vezes, acontecia o contrário: a família até tinha dinheiro para comprar comida, mas não encontrava nada nas prateleiras dos mercados.
Os pais de Garcia, então, como milhares de venezuelanos nos últimos anos, concluíram que só havia uma solução: emigrar. Com a ajuda de missionários católicos, traçaram um plano para deixar o país e se instalar no Brasil, onde tentariam recomeçar a vida. O sonho do filho de virar jogador de futebol profissional foi subitamente interrompido.
Garcia atuou em categorias de base desde os 14 anos, sempre intercalando entre o Angostura e o Mineros Guayana. Na Venezuela, a média de salário dos atletas em começo de carreira é de 500 dólares. É comum que jogadores estabeleçam com os clubes contratos curtos, de seis meses, para evitar um derretimento ainda maior do salário pela inflação. “Muitos jogadores da Venezuela ganham tão pouco que não é o suficiente para viver”, disse o atacante Anthony Uribe, profissional do time venezuelano Deportivo Táchira, em entrevista ao jornal argentino El Intransigente.
“Vir ao Brasil seria muito bom pela questão econômica. Por outro lado, trazia incertezas. Nunca mais eu iria jogar futebol?”, relembra Garcia. Atuar como jogador na Venezuela não o transformaria em homem rico, mas havia a chance de que ele fosse notado por olheiros europeus, que buscam venezuelanos para jogar em times de segunda e terceira divisões. Além disso, dinheiro não era a única questão: “É no campo onde me sinto mais feliz.”
Garcia e sua família saíram de casa em novembro de 2018, carregando uma mala por pessoa. Um amigo pagou pelo traslado de 605 km feito de táxi entre Puerto Ordaz e Santa Elena de Uairén, cidade localizada a poucos quilômetros de Pacaraima (RR), principal porta de entrada para venezuelanos que vêm ao Brasil. Atravessaram a fronteira a pé. Em seguida, a família alugou um carro e seguiu para a rodoviária de Boa Vista, capital do estado, onde embarcou num ônibus rumo a Manaus. Foram mais 780 km de viagem.
Com a ajuda financeira de missionários católicos, eles conseguiram passagens aéreas para São Paulo. Chegaram na cidade com 700 dólares no bolso, dinheiro que arrecadaram vendendo todos os pertences que deixaram para trás antes de emigrar – e isso inclui a aliança de casamento. A despeito da situação precária, a família tinha conseguido uma estadia provisória em São Paulo. “Uma irmã católica, que faz trabalho pela Aliança de Misericórdia, cedeu um quarto de sua casa para a minha família ficar”, lembra o pai, Juan Ramon, um homem rechonchudo que se emociona ao lembrar desse momento. “Chegamos no Brasil semanas antes do Natal. Essa missionária nos deu teto, comida e amor. Não nos deixou faltar nada.” Entidade católica que tem como missão ajudar pessoas que passam necessidade, a Aliança de Misericórdia recebe doações financeiras de instituições como a Fundação Amor Horizontal. Em São Paulo, a entidade dá aulas gratuitas de português para refugiados.
Com dois meses de Brasil, Garcia e sua família se matricularam no curso de português. E ele começou a jogar futebol num time de várzea na Cidade Patriarca, bairro da Zona Leste de São Paulo. Ficou no clube amador por dois anos, até ser convidado para entrar na FA Academy, escola de futebol para jovens atletas. O objetivo da escola é preparar, treinar e oferecer jogadores para dentro e fora do Brasil. Os principais destinos internacionais são Polônia e Portugal.
“O Juan David [Garcia] é um bom atleta e bastante esforçado”, reconhece Agnaldo Antonio Fogaça, treinador e coordenador da FA Academy. Quando conversou com a piauí, Fogaça estava na Breslávia, cidade polonesa para onde levou doze garotos que tentam iniciar uma carreira profissional. “A Polônia não seria o lugar ideal para o Juan David por questão de idade. Ele já está com 23 anos. Mas Portugal costuma aceitar jogadores dessa idade.”
Apostando nisso, Garcia deve deixar o Brasil e embarcar para Portugal em agosto. Fará uma série de testes por lá, na esperança de que algum time de segunda ou terceira divisão se interesse por seu passe. Para isso, precisou antes resolver um entrave burocrático.
Ele, assim como seus pais e irmão, tem status de refugiado. Acontece que seu passaporte venezuelano venceu há dois anos, e a embaixada venezuelana no Brasil está fechada desde março de 2020, quando o governo de Jair Bolsonaro decidiu remover diplomatas brasileiros da Venezuela e exigiu que o governo de Nicolás Maduro fizesse o mesmo. Sem poder renovar o passaporte no Brasil, no último mês de dezembro Garcia pediu à Polícia Federal a concessão de um Passaporte Amarelo. Trata-se de um documento que só pode ser emitido para apátridas, asilados, refugiados e estrangeiros de países sem representação dentro do Brasil – categoria em que a Venezuela passou a figurar.
Entre pedir e retirar o documento, o processo durou menos de um mês. Garcia obteve o passaporte na segunda semana de janeiro. “Sou muito grato ao Brasil por ter acolhido a mim e a minha família. Mas quero seguir meu sonho”, diz. Vencida a burocracia, resta agora conseguir o dinheiro necessário para custear a passagem até Portugal.
Garcia não tem vontade de voltar a morar na Venezuela. Seus familiares, por sua vez, não pretendem migrar para Portugal caso ele faça carreira por lá. Em São Paulo, seu pai hoje trabalha no setor de informática da Aliança de Misericórdia, sua mãe faz trabalho voluntário como missionária e seu irmão é chef de cozinha no restaurante uruguaio Uru Mar y Parrilla, no bairro de Anália Franco. Os quatro moram juntos em um imóvel alugado na Zona Leste. “O fogão de casa foi doado, o sofá também. Não temos nenhum luxo, mas pagamos certinho as nossas contas. O Brasil nos deu dignidade”, diz o pai do atleta, Juan Ramon. “Nosso sonho agora será ver o caçula voltar a jogar futebol profissional.”