Passava das 10 horas da noite do dia 17 de maio quando um deputado de rosto avermelhado e redondo, usando óculos de armação fina, baixinho e se apoiando em uma bengala se dirigiu aos jornalistas que esperavam indóceis por notícias de dentro do Palácio do Jaburu. Trancado na residência oficial, Michel Temer se reunia com aliados para traçar a estratégia do governo diante da divulgação do grampo da JBS, publicado poucas horas antes no site do jornal O Globo, dando conta de que o presidente dera aval à compra do silêncio de Eduardo Cunha por Joesley Batista, e indicara o deputado Rodrigo da Rocha Loures – o homem da mala, como se veria em seguida – como seu intermediário para resolver um assunto de interesse do empresário. “Ele disse que a vida continua e, como sempre, tinha agenda amanhã às 8 horas”, anunciou em tom de porta-voz o deputado paranaense Alfredo Kaefer, do Partido Social Liberal, reproduzindo o que seria uma declaração de Temer.
Naquele dia, Kaefer (pronuncia-se “Quêifer”) estava com sorte. Horas antes – quando a crise do grampo se instalou – uma dezena de parlamentares tentou se reunir com o presidente – sem sucesso. Ele foi o único elemento estranho ao núcleo duro de Temer – orbitado por ministros como Eliseu Padilha e Moreira Franco, além do senador Romero Jucá – a ter permissão para ficar na sala.
Menos de três meses depois, Kaefer provou seu valor: ele e a bancada da qual é líder (21 deputados do PTB, Pros, PSL, PRP) votaram, em sua maioria, para salvar Temer de um processo por corrupção passiva, denunciada pela Procuradoria-Geral da República. Em retribuição aos ombros amigos, Temer autorizou a liberação de 2,34 bilhões de reais em emendas parlamentares. E Kaefer foi recompensado: levou sozinho 10,2 milhões de reais.
Fora um ou dois nomes, a lista é um recorte notável do baixo clero – termo cunhado para definir políticos que, sem nenhuma expressão no jogo político nacional, estão em Brasília para defender seus interesses paroquiais. E, por isso mesmo, particularmente suscetíveis a afagos como aquele feito pelo presidente. Estão na lista figuras como Aníbal Gomes, do PMDB cearense, que ganhou alguma notoriedade ao ter a casa invadida pela Polícia Federal na operação Catilinárias, um desdobramento da Lava Jato, e André Fufuca, do PP maranhense, que, segundo um colega, se referia ao ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha como “papi”.
A fatura dos nanicos ainda não foi saldada. Os deputados sabem que, até o final do mandato, o procurador Rodrigo Janot promete enviar ao menos mais uma denúncia contra Temer, que precisaria ser apreciada novamente pelo voto da Câmara antes de seguir para a Justiça. Agora, a conta chega em forma de projetos de lei que beneficiam diretamente os deputados do baixo clero. Um deles, em especial, pode ser a salvação da vida empresarial de Alfredo Kaefer.
Pouco conhecido em Brasília, ele é muito popular nos tribunais. Sobretudo nos do oeste do Paraná, onde construiu sua carreira. Responde a processos em que tenta reaver o controle do conglomerado de empresas que tem a frente o Diplomata, um dos maiores abatedouros de aves do país, que fizeram dele o parlamentar mais rico eleito em 2014 – com 108 milhões de reais em patrimônio declarado.
O chão sob os pés de Kaefer sumiu em dezembro de 2014, quando o juiz Pedro Ivo Lins Moreira, da 1ª Vara Cível de Cascavel, decretou a falência de 22 empresas de sua propriedade – cinco das quais já estavam em processo de recuperação judicial havia mais de dois anos. Com base numa consultoria realizada pela Deloitte e numa acusação do Ministério Público, o juiz entendeu que o deputado (então filiado ao PSDB) manobrava o processo de recuperação para tomar para si as partes ainda rentáveis das empresas, e deixar à míngua os credores. E que, mesmo com dívidas trabalhistas e tributárias, as empresas haviam doado dinheiro para campanhas do político.
“Foi trazido à baila um conjunto de operações societárias que importaram no desmanche da atividade empresarial exclusivamente em benefício da família Kaefer”, escreveu o magistrado na decisão que afastou o político e a mulher dele, Clarice Roman, do comando, e entregou as empresas a uma administradora judicial.
Foi um tombo e tanto. Até então acostumado a voar para Brasília em um jato particular – não raro indo e voltando no mesmo dia –, Kaefer se viu sem quase nada. “Todos os bens dele e da família foram sequestrados pela Justiça. A ex-mulher precisou emprestar um carro para ele se locomover pela cidade”, contou-me um ex-funcionário do deputado em Cascavel. “Minha casa é o único bem que me restou”, lamuriou-se Kaefer, numa entrevista que me concedeu por telefone, de Brasília.
Em abril passado, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça pareceu recolocar a sorte novamente no colo do político. A quarta turma da corte acatou voto do ministro Luis Felipe Salomão e anulou os efeitos da decisão do juiz paranaense. A sentença não avaliou o mérito da questão, mas a jurisprudência. “A questão principal está em saber se pode o magistrado convolar a recuperação judicial em falência, mesmo após a aprovação do respectivo plano pela assembleia geral de credores”, elucubrou o ministro, antes de decidir suspender a falência e recolocar o controle das empresas nas mãos de Kaefer.
Não durou muito. Uma nova decisão do juiz de Cascavel na prática segue a impedir o deputado de movimentar o caixa da empresa. “É inegável que existem fortíssimos indícios de que, mantidos a frente do negócio, [Kaefer e a mulher] continuem a praticar fraudes e a dilapidar o patrimônio”, justificou-se Moreira, na sentença. “O juiz recolocou as atividades principais do grupo nas empresas ‘podres’, em recuperação”, explicou-me um observador do processo. “Com isso, Kaefer não tem mais atividades empresariais fora do que está em recuperação. Terá que se esforçar para pagar credores da forma correta.”
A má situação política de Michel Temer, porém, pode ajudar o deputado a resolver alguns de seus problemas. Ele é integrante da “bancada do Refis”, que trabalha para permitir a rolagem da dívida de empresários encrencados com a Receita Federal, ainda que respondam a processos criminais por problemas tributários – caso mesmíssimo de Kaefer. Questionei-o se lhe causava algum constrangimento legislar em causa própria. A resposta dele foi curiosa: “Como muitos empresários devem, muitos deputados que são empresários não fogem a essa regra.” À União, as empresas de Kaefer devem 53 milhões de reais.
Jacob Alfredo Stoffels Kaefer tinha 51 anos incompletos quando decidiu que levava jeito para a política, em 2006. “Ele se filiou lá em Cascavel, sem ninguém o convidar. E impôs a candidatura a deputado”, relembrou um político de alta patente no PSDB do Paraná. “Ele gastou um dinheiro lascado naquela eleição. Como não tinha nenhuma inserção política, fez uma campanha que esbanjou.”
O jornal Gazeta do Povo registrou, à época, que Kaefer gastara mais do que qualquer outro dos 513 deputados federais eleitos em 2006 – 2,95 milhões de reais, em valores não atualizados. O dinheiro veio, basicamente, dele mesmo, seja como pessoa física ou jurídica – o TSE registra doações vultosas da Diplomata e da Globoaves, outra agroindústria que pertence à família.
Caras também foram as duas campanhas seguintes, financiadas a um custo de mais de 4 milhões de reais cada. A diferença é que os eleitores foram rareando. Kaefer viu os 158 659 votos obtidos na primeira disputa, em 2006, caírem quase pela metade em 2014, quando recebeu 82 554 votos. Um novo mandato, em 2018, não são favas contadas. “A imagem dele está bastante desgastada. Ele não é bem-visto nem benquisto por aqui. Sempre se elegeu à base de dinheiro. Agora, não vai conseguir. O juiz está de olho”, palpitou um experiente jornalista da região.
Mais velho dos cinco filhos de uma família gaúcha que migrou para o oeste paranaense, Kaefer contraiu poliomielite quando criança. A doença deixou marcas: o deputado usa próteses e muletas para caminhar. Quando transita pelos corredores da Câmara, opta por um dos carrinhos elétricos oferecidos pela casa a deficientes físicos.
“Ele se formou em administração de empresas na primeira turma da faculdade particular da cidade. Sempre foi um cara com inteligência acima da média. Um gênio para enriquecer, e para quebrar também”, contou-me um companheiro de longa data do deputado.
Em Cascavel, uma rica e moderna cidade de pouco mais de 315 mil habitantes no extremo oeste do Paraná, é comum ouvir de gente próxima a Kaefer que a carreira política foi um passo calculado de um homem que já pressentia a bancarrota se aproximando. “Ele estava vendo a necessidade de apelar à recuperação judicial e resolveu usar a força política para ter influência nos tribunais”, disse-me um ex-funcionário que ocupou cargo de chefia, por anos, em uma das empresas do político.
“Aí você está conjuminando, está indo para as estrelas”, reagiu um indignado Kaefer, quando o confrontei com tal hipótese. Quem convive no dia a dia com os administradores judiciais, porém, costuma ouvir queixas frequentes sobre as pressões exercidas desde Brasília pelo deputado, que é alvo de, ao menos, quatro inquéritos em tramitação no Supremo Tribunal Federal – por suspeita de crimes falimentares, crimes contra o sistema financeiro, corrupção passiva e em decorrência da operação Zelotes, que apura fraudes em julgamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Fazenda.
Em 2009, quando Kaefer ainda cumpria o primeiro mandato como deputado, a Diplomata já não depositava o FGTS de seus funcionários. Mas o caldo começou a entornar de fato em seguida. Nos primeiros dias de 2013, sem receber da agroindústria de Kaefer, fornecedores de cidades próximas a Cascavel resolveram soltar os frangos que criavam para que buscassem comida ciscando. Foi um ato de desespero: nas granjas, as aves, famélicas, estavam atacando umas às outras. Sem pagamento, não havia dinheiro para comprar ração.
A isso se misturavam protestos em portas de fábricas por salários e pagamentos atrasados. “A imagem dele de mau pagador é antiga. Piorou quando surgiram os boatos de recuperação judicial. Daí todo mundo começou a correr para tentar receber, vieram os piquetes nas portas das empresas”, falou outro ex-empregado do grupo. Foi por volta daquela época que a imprensa nacional voltou os olhos a Kaefer e seus negócios. Em reportagem publicada em setembro de 2013, a revista Exame registrava que o deputado havia transferido à mulher sua cota de ações na Diplomata e arrematava: “Os frangos canibais, logo se vê, não são a única parte esquisita dessa história.” Mas ainda levaria mais de um ano para que a recuperação judicial fosse transformada em falência.
Na entrevista que me concedeu, por telefone, Alfredo Kaefer culpou a crise econômica de 2008 e “atitudes equivocadas na área econômica do governo” pela situação de suas empresas. “A Diplomata não é caso isolado, meu caro”, disse-me, com a voz anasalada e a pronúncia confusa de érres e éles causada pela anquiloglossia – língua presa, no jargão popular. “Vou lhe citar a maior empresa do agronegócio, que literalmente quebrou naquela época: a Sadia. A fusão [com a Perdigão, que criou a BRF] se deu porque a Sadia estava quebrada”, bradou, como a eximir-se de erros na condução de seus negócios.
A administradora judicial estima que as empresas de Kaefer – além da Diplomata, há no rol dois jornais e outras empresas na área de comunicação, além de holdings e várias consideradas meros “CNPJs vazios” – devam 1,6 bilhão de reais a mais de 10 mil credores. São números suficientes para fazer do caso a quarta maior falência do país.
Como tantos políticos e empresários premidos pela Lava Jato e pelo poder Judiciário, Kaefer vê no juiz Pedro Ivo Lins Moreira, que lhe tirou das mãos o controle dos negócios, um “justiceiro” a persegui-lo. “É mentira da Deloitte que ela comprovou fraudes. Teve indícios, apenas, o relatório foi unilateral, nós não tivemos tempo de defesa. De forma absolutamente autoritária, o juiz decretou uma falência absolutamente ilegal, fora do contexto da lei. Ele é justiceiro, faz perseguição contra nós, cometendo toda arbitrariedade imaginável”, falou, exaltado pelo tema.
Por outro lado, não transpareceu qualquer constrangimento quando o confrontei com a fama de mau pagador de que goza. “É natural, quando uma empresa entra em dificuldades e fica devendo a um conjunto de fornecedores, que a imagem acaba prejudicada. Mas atribuo isso às atitudes do juiz. Fizemos um plano de pagamento, para pagar primeiro dívidas trabalhistas, depois agricultores familiares, que não foi cumprido. Acham que deputados têm costas largas, mas os grandes erros foram ocasionados por um erro judicial”, defendeu-se.
“Pela liberdade, pela democracia, por um futuro melhor, em honra do povo do Paraná e das pessoas de bem que querem tirar uma oligarquia instalada neste poder, eu voto sim pelo impeachment.” Com essas palavras e uma fita verde e amarela a adornar-lhe o pescoço, Alfredo Kaefer votou, em abril passado, pelo prosseguimento do processo que cassaria o mandato de Dilma Rousseff.
Àquela altura, já se mudara para o PSL – a pedido, comentou-se em Brasília, do então presidente da Câmara Eduardo Cunha, do PMDB. “O PSDB tem uma situação complexa de lideranças fortes, muita chefia. Achei que não batia comigo. Fui para um partido pequeno”, foi a justificativa que me deu para a mudança. Mais tarde, Kaefer iria se abster de votar na cassação de Cunha. “Eu achava que não cabia ao parlamento julgar esse tipo de delito. Foi um voto de conceito, não contra Eduardo Cunha, nem a favor”, falou. Mas essa decisão – e outra, em abril desse ano, quando votou a favor de uma emenda que dificultaria o funcionamento de aplicativos como o Uber no Brasil – criou-lhe um novo problema, dessa vez no PSL.
“O voto dele, na nossa visão, está em desacordo com a livre-iniciativa e liberdade individual”, disse-me o pernambucano Mano Ferreira, 27 anos, que se apresenta como diretor nacional de Comunicação dos Livres, uma espécie de dissidência jovem e liberal – em questões econômicas e de costumes, como por exemplo o uso de maconha – que começa a tomar conta do PSL. “Ele tem um perfil fisiológico e que alimenta o patrimonialismo. Apesar de empresário, ele se alinha à tradição do empresariado brasileiro, patrimonialista, e não em defesa do livre mercado”, criticou Ferreira, que considera Kaefer um ex-filiado da legenda.
Não é o que vê o deputado. “Eles me expulsaram do partido, me convidaram a sair. Mas o presidente me pediu para ficar, reestruturar o partido, encorpá-lo. Por enquanto estamos dentro”, falou-me. Uma consulta na relação de filiados a partidos políticos no site do TSE mostrava, em 10 de agosto, que Kaefer ainda é integrante do PSL. “No que depender de nós, não será mais”, reagiu o diretor do Livres.