“No dia seguinte (…), entendeu o céu que devia regar com as suas lágrimas o solo da formosa Petrópolis.”
— Machado de Assis, Linha reta e linha curva, ano de 186…
Às quatro horas da tarde do último dia 15 de fevereiro, Petrópolis era uma cidade. Às seis, virou outra. Um temporal repentino transformou as ruas num rio descontrolado que arrastou carros, árvores, fragmentos da arquitetura histórica, animais, homens e mulheres. O número de mortos chegou a 234, e o de desaparecidos continua em três. Em 20 de março, uma nova chuva voltou a castigar Petrópolis, e sete pessoas morreram.
Hoje, a cidade imperial é uma cidade assustada. Onde se entra para tomar um café escutam-se lamentos a respeito do que aconteceu. Parte do comércio voltou a funcionar, mas algumas lojas passam as tardes com as portas entreabertas, removendo o que restou das mercadorias e da lama. As semanas também estão sendo assim nos mais tradicionais pontos de encontro dos leitores petropolitanos: a Biblioteca Municipal Gabriela Mistral, a Banca do Amaral e a Livraria Nobel.
A BIBLIOTECA
Quando o temporal começou, Diana Iliescu, presidente do Instituto Municipal de Cultura de Petrópolis, estava em sua sala no Centro de Cultura Raul de Leoni com a empresária do cantor Guido Martini. Elas discutiam estratégias para divulgar na cidade o disco que o artista lançou em fevereiro, batizado de Petrópolis das Águas. Vez ou outra, os olhos de Iliescu fugiam da conversa para uma parede de vidro de onde é possível ver a Praça Visconde de Mauá e o centenário Palácio Amarelo, hoje sede da Câmara Municipal de Petrópolis. No fim da tarde daquela terça-feira, o vidro estava molhado, e a paisagem, borrada.
Iliescu não se alarmou com o pé d’água, já que de vez em quando cai um em Petrópolis. Em janeiro mesmo a cidade passou por uma temporada de chuvas, e tudo terminou bem. Iliescu se distraiu por uns minutos e, quando voltou a olhar através do vidro, não encontrou o monumento da águia que fica no centro da praça. Tudo havia sumido debaixo da chuva. Iliescu levantou de supetão, empurrando a cadeira com o peso do corpo, e gritou:
— O painel da Djanira!
O berro foi ouvido fora da sala. Havia vinte funcionários no prédio, e todos correram em direção ao terceiro andar, onde o maior quadro pintado pela artista modernista Djanira da Motta e Silva está sendo restaurado. A obra, de 12,75 metros de comprimento e 3,50 de altura, retrata pontos de Petrópolis, onde Djanira morou. É razão de orgulho na cidade. Para o alívio de Iliescu, a pintura estava seca e a salvo. O problema maior, ela descobriria em seguida, estava no andar de baixo, onde centenas de livros do acervo da biblioteca municipal começavam a boiar na água barrenta.
Os funcionários tentaram controlar a entrada da água no térreo com comportas, mas elas estavam em mau estado de conservação. Sem parafusos, a força da enchente derrubou as barreiras com facilidade. Com medo de possíveis curtos-circuitos, Iliescu e sua equipe deixaram a sala para se abrigar no último andar do prédio. Por causa da cheia do rio lá fora, os ralos e vasos sanitários da biblioteca expeliram dejetos. A biblioteca virou um desaguadouro de chuva e latrina. Não demorou e a água alcançou a metade das paredes da Biblioteca Municipal Gabriela Mistral — a terceira maior do Rio de Janeiro. Cerca de 3 mil livros que estavam nas prateleiras mais altas das estantes não sofreram grandes danos. Mas outros 8 mil, alguns com mais de 100 anos, ficaram submersos por mais três horas e foram totalmente perdidos.
Iliescu disse que, como assumiu a presidência do Instituto Municipal de Cultura dois meses antes do temporal, não teve tempo suficiente para reparar a estrutura do prédio. “Quando a noite caiu, a água foi embora do mesmo jeito que entrou, com muita velocidade. Pelas janelas, a gente viu livros, processos administrativos, grampeadores e bancos de madeira do centro cultural boiando na rua. A praça virou um grande rio escuro”, lembrou Iliescu, numa conversa em seu escritório. “A água saiu, mas deixou pra trás uma lama grossa incrustada por todo o acervo da biblioteca.”
A tempestade continuou arrasando outros pontos de Petrópolis durante aquela semana, mas, no Centro da cidade, o pior aconteceu na noite do dia 15. Nas horas que sucederam ao alagamento, a equipe do centro cultural iniciou um trabalho de identificação das obras perdidas, que ainda não foi concluído. Já se sabe que a maioria era de cunho didático, de áreas do conhecimento como ciências, matemática, geografia. Mas uma coleção de volumes em braille e obras raras, como um atlas francês da disputa fronteiriça arbitrada pelo Rei da Itália em torno dos limites entre o Brasil e as Guianas datado de 1902, também ficaram encharcados. Em uma hora, a água da chuva afogou parte de um arquivo construído pelos petropolitanos ao longo de quatro séculos. “Dia desses encontramos aqui um livro de 1572”, disse a jovem bibliotecária Jéssica Soares, aludindo ao poema épico “Os Lusíadas”, de Luís de Camões.
Nas chuvas de domingo, 20 de março, o prédio voltou a ser inundado. Não houve perdas materiais, mas a sujeira voltou a se espalhar pelas instalações do térreo. Agora, o Centro de Cultura Raul de Leoni é um lugar de paredes sujas de lama e de mobílias centenárias reviradas pelos corredores. Funcionários, de galochas e luvas de borracha, passam as tardes esfregando o que restou do patrimônio da instituição.
A biblioteca está interditada. Só pessoas autorizadas podem acessá-la, para dedetizar os livros e as estantes enlameadas. Uma parte dos livros salvos foi realocada para um cômodo abafado nos fundos do centro cultural, onde estão empilhados em carteiras escolares. A outra parte, formada por obras raras, está numa galeria de arte da cidade que cedeu o espaço para o que se transformou num centro de recuperação improvisado. Aquecedores ficam ligados o dia inteiro, e um grupo de voluntários coloca mata-borrão — tipo de papel com alta absorção de líquidos — entre as páginas para secá-las mais rápido. “Por enquanto, isso é tudo que conseguimos fazer”, disse Iliescu. “Precisaremos de tempo e muita paciência para cuidar do que restou.”
É provável que a sala que abrigava a biblioteca fique vazia por um bom tempo. O Instituto Municipal de Cultura tenta agora angariar recursos e doações para montar um centro de restauração de obras raras. Ainda não conseguiu um profissional nem os equipamentos necessários para a realização do procedimento. Estima-se que cada um dos 3.100 livros salvos precisará de, no mínimo, três meses para ser higienizado, numerado, desmontado, desacidificado, revisado, digitalizado e encadernado para, afinal, voltar à prateleira.
A BANCA DE JORNAL
O jornaleiro José Carlos do Amaral, 72 anos, herdou do pai, José Jacinto do Amaral, parte do prenome e o negócio que comanda há cinquenta anos: a banca de jornal que se tornou a mais antiga de Petrópolis. Em 2003, com o projeto da prefeitura de revitalização do centro histórico, a banca foi realocada para uma esquina da Rua Marechal Floriano, de onde nunca saiu. O jornaleiro tentou mudar a edificação de ferro de lugar – achava que era muito perto do Rio Quitandinha –, mas nunca teve sucesso. Quando, no meio da tarde de 15 de fevereiro, a chuva começou a apertar, Amaral transferiu os jornais e revistas das prateleiras mais baixas para as altas. Pensou que passaria rápido e que enxugar o chão da banca era o máximo de trabalho que teria. Não foi.
Com a chuva cada vez mais forte, o jornaleiro passou a temer que a água entrasse pelo telhado, ficasse presa e deixasse a banca pesada o suficiente para tombar no rio. Manteve, então, as portas abertas, para que a água escoasse. Mas o golpe maior não chegou pelo teto. Por volta das cinco e meia da tarde, uma tromba d’água atingiu a parte traseira da banca e a virou. Amaral e dois funcionários, Ademir Lima, 63, e Sandro Assis, 52, tentaram salvar o que restou das mercadorias espalhadas. Mas o nível da água subiu de tal modo e com tanta força que arrastou a banca por 3 metros, deixando-a à beira do rio.
“Desconfio que os ônibus tenham dificultado a chegada da onda por muito tempo. Quando foram retirados do rio, a enxurrada veio com tudo pra cima da gente”, disse o jornaleiro, referindo-se aos dois veículos da empresa Petro Ita que caíram no Rio Quitandinha.
A água batia na cintura de Amaral. No início da noite, ele e os funcionários tentaram deixar o ponto para onde a banca foi arrastada, mas já não conseguiam se locomover sem que fossem puxados pela correnteza. Amaral, Lima e Assis se agarraram então a um poste e ali permaneceram por duas horas, com água na altura do peito. Nas janelas dos prédios que cercam a banca de jornal, pessoas rezavam e gritavam para os jornaleiros aguentarem firme.“Parecia impossível. Até hoje não consigo assimilar a força da correnteza. Parece que foi uma alucinação.”
O tormento só acabou quando um bombeiro à paisana se prendeu a uma corda amarrada a uma estrutura na parte mais alta da rua e socorreu os três homens. O grupo ficou alojado em uma Igreja Metodista e só saiu de lá às 22 horas. A chuva havia cessado, e a rua, esvaziado. No lugar da enchente, restaram árvores, sofás, camas e corpos. Ao retornar para o local do desastre, Amaral encontrou a estrutura de ferro revirada. Do lado havia uma pessoa morta. “Presenciar uma coisa dessas não é moleza, não. Ver sua cidade sumindo, o trabalho de uma vida indo embora de uma hora pra outra, isso muda a gente por dentro”, disse o jornaleiro.
Para um bom número de petropolitanos, a banca do Seu Amaral é patrimônio da cidade, referência na venda de jornais e revistas, mas também um ponto de encontro entre a nova geração e velha guarda de leitores de Petrópolis. “Se tem uma coisa que eu aprendi nesses cinquenta anos de jornaleiro é que falar de notícia serve principalmente para fazer amigos”, explica Amaral, um senhor afável que fala pelos cotovelos.
Da banca, ele assistiu à mudança no negócio, com a queda brusca das publicações impressas nos últimos cinco anos. “Já cheguei a vender duzentos O Globo num domingo. Agora vendo setenta, sessenta”, calcula o jornaleiro. Para sobreviver à crise do impresso, a banca redobrou o investimento em cigarros, chicletes, raspadinhas, palavras cruzadas e jornais para pets. Das empresas fornecedoras dos produtos, só duas disseram que não vão cobrar pelo que foi perdido para a chuva — um prejuízo que Amaral calcula em 20 mil reais.
O comércio foi reaberto em 25 de fevereiro com algumas prateleiras ainda vazias, vitrines rachadas e um pé de sustentação quebrado. Nas semanas seguintes, recebeu a visita de um sem-número de clientes e amigos preocupados com a segurança do jornaleiro. Na manhã de 8 de março, ele embalava um jornal Meia Hora para um freguês quando foi interpelado por uma mulher. Ela lhe perguntou como estava e contou que, do prédio em que trabalha, viu o jornaleiro tentando resistir à correnteza, agarrado ao poste. “Todo mundo ficou rezando lá em cima, gritando ‘vai! segura! aguenta!’”, ela disse. “Se eu não tivesse me prendido àquele poste, minha filha” replicou Amaral, balançando a cabeça em negativa, “não estaria aqui pra contar a história.”
A chuva que voltou a cair sobre Petrópolis no domingo, 20 de março, deu novos prejuízos ao jornaleiro. A banca não foi arrastada, mas a água subiu até as prateleiras médias, e Amaral perdeu mais 10 mil reais em mercadorias. A esperança que tinha antes parece ter se esgotado. “É a segunda vez que essa tragédia acontece em pouco mais de um mês. Justo agora que estávamos recomeçando. Não consigo me conformar”, disse, por telefone. “Nossa cidade está sendo castigada.”
A LIVRARIA
No dia em que o mundo caiu sobre Petrópolis, Sandra Madeira viu centenas de livros serem tragados pela água. E viu desaparecer parte do negócio da família, ao qual dedicou os últimos 21 anos de sua vida. Ela comanda, ao lado do marido, a Nobel de Petrópolis. É um empreendimento concebido para unir a família. Amauri trabalhava como consultor numa rede de firmas independentes e sentia-se frustrado por passar tanto tempo longe dos três filhos. Em 2001, decidiu que abriria um negócio tranquilo, que lhe permitisse ficar perto de casa e das crianças. Diante da quase inexistente oferta de livrarias em Petrópolis, inaugurar uma pareceu o plano perfeito.
A livraria foi fincada na Rua Dezesseis de Março, o coração do comércio petropolitano. A loja tem 31 estantes de madeira clara espalhadas pelas paredes laterais e 14 gôndolas no centro do salão. Nos fundos está o caixa. O balcão esconde a portinha quase imperceptível do banheiro dos funcionários. À esquerda, uma escada leva ao depósito subterrâneo da livraria, que até o dia da tempestade guardava o estoque de livros e um arquivo documental de 21 anos.
A água veio primeiro do vaso sanitário e dos ralos do banheiro. “Até aí estava tudo normal. Quando chovia muito, o esgoto costumava dar algum retorno, sempre muito pouquinho”, diz Sandra. “Mas a situação fugiu do controle de uma hora pra outra.” Como a chuva não cessou rápido, a caixa de esgoto transbordou. O líquido sujo saiu do banheiro e escorreu pelas escadas em direção ao subsolo. Perto das cinco da tarde, quando o Centro de Petrópolis ficou alagado, a água da rua entrou com força pela porta da frente e desceu para o depósito, onde cinco computadores e uma tevê da empresa afundaram. Era só o começo do estrago.
O depósito estava mais cheio que o normal porque guardava 124 caixas de livros consignados pelas editoras para as festas de fim ano — 63 da Companhia das Letras, 50 da Record e 11 da Rocco. As caixas deveriam ser devolvidas, mas tudo foi tomado por água e lama em cerca de quarenta minutos. A Nobel calcula que 15 mil livros foram perdidos.
Nos últimos dias, Sandra tem pensado com incredulidade no que aconteceu. “Ainda não consigo entender como a água derrubou aquelas estantes altas, pesadas. Deve ser porque ela veio por baixo também, né? Levantou tudo.” Sandra, 57 anos, é uma mulher pequena, de olhos verdes e voz amena. Na manhã em que nos falamos, tinha olheiras de quem dorme pouco e chora muito. O tempo todo tratou o afogamento das obras como um assunto de ordem pessoal. “Perdi meus livros, minhas estantes, as fotos que tirei em eventos de incentivo à leitura na cidade. Ontem meu filho perguntou: ‘Mãe, e o meu diploma?’. Adivinha? Perdi também”, disse, referindo-se ao título universitário de Administração do filho Leonardo Madeira.
O depósito ficou inundado por dois dias. À medida que a água baixava, Sandra, Amauri e os filhos levaram os exemplares molhados para a calçada. Acabaram erguendo uma montanha de livros de aspecto amarronzado na Dezesseis de Março. Não raro, clientes e amigos paravam para oferecer ajuda e se solidarizar com as perdas. Alguém fotografou a pilha na calçada e postou nas redes sociais. A imagem desencadeou uma corrente de apoio, mas Sandra e Amauri optaram por não receber nenhuma doação em dinheiro.
A loja foi reaberta em 5 de março, 18 dias após a chuva. O depósito virou um espaço vazio e úmido, e a livraria só tem para vender o que está nas prateleiras. “Parte do que estava lá embaixo era pra ser comercializado na Amazon, Magalu, Shopee. Entramos nessas plataformas com o desespero da pandemia. Agora não temos mais nada.” A distribuidora Catavento enviou 32 caixas de livros doados por editoras para abastecer o estoque da Nobel. As obras foram cedidas por Companhia das Letras, Roça Nova, Bússola, Panda Books, Buzz, Elefante, Juspodivm e Aleph.
O custo da tragédia ainda é inestimável. De todas as perdas, a que mais aflige Sandra é a das fotografias tiradas em feiras literárias que a Nobel promoveu para crianças. Os pequenos são os clientes mais assíduos da livraria e os favoritos de Sandra. Só restou uma coletânea de fotos, que estava no andar de cima da loja e não foi alcançada pela água. O álbum se tornou o símbolo de um passado subitamente perdido, e a lembrança de tudo que os Madeira, assim como Petrópolis, terão de reconstruir.