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O retorno da audácia à Nicarágua

Estudante que desafiou Daniel Ortega volta do autoexílio para retomar resistência ao regime

Roberto Lameirinhas | 09 out 2019_13h36
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O jovem estudante que, com óculos de lentes grossas e a bandeira da Nicarágua em volta do pescoço, desafiou o líder de um dos regimes mais autoritários do mundo, em maio de 2018, está de volta à Nicarágua, após um ano de exílio autoimposto. “Esta não é uma mesa de diálogo. É uma mesa para negociar sua saída”, irrompeu Lesther Alemán, então com 20 anos, dirigindo-se diretamente a Daniel Ortega, acusado de ordenar a repressão a manifestações opositoras que, àquela altura, já tinha deixado cerca de sessenta mortos. “Não podemos dialogar com um assassino, pois o que se cometeu neste país é um genocídio e assim será qualificado.”

A imagem do ativista audacioso quase adolescente questionando um dos mais tirânicos regimes do continente na cara de seu principal representante viralizou na internet. Na época, Alemán relatou à piauí as ameaças que sofrera após o episódio – principalmente vindas de partidários do governo. Em outubro, por medida de segurança, deixou a Nicarágua e viajou para os Estados Unidos. Nesta segunda-feira (7), no capítulo final do autoexílio, foi recebido por outros estudantes no aeroporto de Manágua, a capital do país.

“Regressar à Nicarágua foi uma decisão pessoal, depois de avaliar os riscos e, sobretudo, administrar o medo. Porque as decisões não podem depender do medo e não se pode permitir que ele nos imobilize”, declarou Alemán à piauí, nesta quarta-feira (9), por telefone, num breve intervalo da série de reuniões que tem frequentado nos últimos dias. “Sabemos que segurança não existe porque o país continua sequestrado por uma ditadura. Ainda temos mais de 120 presos políticos e muitos dos que foram libertados recentemente têm sido perseguidos, enquanto se mantém o assédio sobre eles, o que aprofunda a situação de insegurança.”

“Há uma presença policial desmedida na capital e em outros locais, que está a todo momento intimidando a população civil em geral e a ditadura mantém a vigilância sobre todos nós”, prosseguiu. O líder estudantil assegurou que suas demandas não se modificaram desde o episódio no qual exortou Ortega a entregar o poder porque “o povo já não o queria”. “Assumi esta luta desde os primeiros dias de abril (de 2018). Minha convicção é a mesma, inamovível, da de muitos jovens. Saímos às ruas decididos a promover uma mudança”, reiterou. 

Alemán disse ainda que sua volta não pode ser vista como um sinal de que o país vive um clima de normalidade: “Sabemos que não há nada de normal na Nicarágua, que a repressão se vive no dia a dia.”

O líder estudantil relatou que a decisão de sair da Nicarágua seguiu a estratégia de se construir “uma agenda no âmbito internacional em organismos de direitos humanos e  instituições, como a Organização dos Estados Americanos, a as Nações Unidas e outros entes a quem cabe monitorar este processo”. “Está muito claro que a solidariedade dessas entidades em relação aos nicaraguenses já era muito grande mesmo antes de minha saída. Também cumpríamos a agenda de revelar e mostrar para muitos que na Nicarágua nada está normal. E para outros confirmar os atos de perseguição, com o objetivo de gerar maior interesse para que a comunidade internacional acompanhe o que está acontecendo conosco no âmbito interno – algo que possa ajudar a desencadear a solução político-eleitoral que o país precisa e garanta os direitos da cidadania.”

Indagado sobre se o longo tempo de luta poderia causar um desgaste da oposição – num processo semelhante ao que ocorre hoje na Venezuela –, Alemán afirmou que apesar do cansaço natural pelo tempo de protestos, “a resistência do cidadão nicaraguense é a mesma do início”.

“Estamos conscientes de que a crise sociopolítica, a crise econômica e os problemas de insegurança têm como único culpado Daniel Ortega”, declarou. “A violência e a violação sistemática aos direitos humanos têm resultado no aumento à rejeição ao regime de Ortega. Ele sabe que, ainda que se mantenha no poder pela força, naturalmente já não está governando a população que o rechaça.”

Dados da Organização dos Estados Americanos (OEA) mostram que a repressão aos protestos do ano passado não se deteve após a intervenção de Alemán. Foram 325 mortos, mais de 4 mil feridos e uma cifra estimada em mais de 1 400 desaparecidos. Os protestos se organizavam em torno de três eixos: oposição à reforma do sistema de aposentadorias implementada pelo regime sandinista; contra um incêndio que devastou 4 000 hectares de florestas de uma reserva indígena e teria sido provocado para que a área fosse ocupada pelo agronegócio; cancelamento de um contrato de construção de um canal interoceânico firmado pelo governo com um consórcio de empreiteiros de Hong Kong.

Quase um ano e meio após o início dos protestos, pouca coisa mudou: na prática, a draconiana reforma da Previdência Social – exigida pelo FMI e que inclui aumento das contribuições de empresas e empregados – vem sendo implementada por medidas administrativas, o plano da abertura do canal segue ativo e o regime impôs rigorosa censura a qualquer notícia sobre o incêndio florestal. E, apesar de ter balançado no período mais intenso das manifestações, Ortega segue no poder. Para o regime, o movimento opositor foi uma tentativa de golpe de Estado, orquestrado, principalmente, por Washington.

Nos últimos três meses, alguns líderes conhecidos da Aliança Cívica – sob a qual se organizaram os manifestantes de 2018 – retornaram ao país, mas sofreram represálias violentas por parte do governo de Ortega. O jornalista Anibal Toruño, que tinha retornado em agosto, deixou outra vez a Nicarágua depois de ter a rádio de sua propriedade incendiada por simpatizantes do governo na cidade de León, segundo relato do jornal La Prensa. O político opositor Félix Maradiaga, acusado pelo regime de “liderar grupos de crime organizado” retornou do exílio em setembro e, desde então, tem sido frequentemente assediado por motociclistas armados.

O governo se esforça para manter o controle midiático: pelo menos quatro emissoras de tevê e dezenas de rádio estão nas mãos de filhos de Ortega – que tem a própria mulher, Rosario Murillo, como vice-presidente. Os jornais impressos estão à beira da exaustão, com a retenção alfandegária de papel de imprensa e tinta importados, que já dura mais de um ano. O segundo mais importante do país, El Nuevo Diario, não resistiu e encerrou suas atividades há duas semanas.

Jornalistas e veículos independentes são declarados inimigos do Estado e os profissionais da imprensa não alinhados ao regime são acusados de “incitar ódio e promover terrorismo”. “Ortega disse que nós somos filhos de Goebbels”, disse o jornalista Carlos Fernando Chamorro – referindo-se ao oficial nazista que comandava a propaganda da Alemanha de Hitler –, em entrevista no encerramento do Festival Piauí de Jornalismo, realizado neste fim de semana (dias 5 e 6) em São Paulo.

Carlos Fernando é filho da ex-presidente Violeta Chamorro e do jornalista Pedro Joaquín Chamorro, cujo assassinato, em 1978, pela ditadura de Anastácio Somoza, ampliou o apoio popular aos rebeldes sandinistas comandados por Daniel Ortega – que deporiam a dinastia Somoza e tomariam o poder no ano seguinte. Exilado na Costa Rica, Chamorro é cofundador e editor da revista Confidencial, que acompanha os acontecimentos da política nicaraguense. Segundo ele, outras 23 publicações digitais retratam a vida política da Nicarágua no exílio, como contraposição à vasta rede de comunicação oficial.

“O ato de retorno anunciado de Lesther Alemán, assim como o de outros líderes comunitários, ativistas e jornalistas, deve ser visto como uma ação de desafio político em si”, comentou Carlos Chamorro, na terça-feira (8), sobre a fragilidade da oposição ante as ameaças dos grupos pró-regime. “Ainda há algum espaço de resistência, reduzido, na imprensa que atua em território nicaraguense, mas seu alcance é limitado. Como rede de apoio, pode-se oferecer algum acompanhamento e vigilância, mas nada de mais efetivo.”

“É importante levar em consideração que o regime de Ortega é politicamente insustentável e só pode se manter no poder pela via da repressão, o que intensifica sua violência”, destaca. “Não existe nenhuma garantia no retorno de nenhum cidadão, seja jornalista, estudante ou ativista, pois o país vive um estado de sítio de facto.”

O jornalista ressalta que Ortega e Murillo mantêm um discurso de ódio contra todos os cidadãos que integram movimentos opositores que demandam sua renúncia. “Há ataques constantes contra grupos e pessoas que atuam em favor de direitos humanos. Qualquer garantia só seria viável com o retorno de grupos como o dos representantes do Conselho Interamericano de Direitos Humanos ou ativistas humanitários estrangeiros ao país.”

Segundo Chamorro, a saída política depende da intensificação da resistência cívica. “Seria irresponsável estabelecer quando essa saída se tornará viável, mas a crise que se estende por dezessete meses não permite que este governo se mantenha em longo prazo.”

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