Em 22 anos como juiz de direito, Sergio Moro teve relações profissionais com centenas de advogados, mas durante a Lava Jato essa relação tornou-se especialmente tensa. Advogados de defesa dos réus acusaram o então juiz de tratá-los com hostilidade, de ser inacessível e até de violar os direitos previstos no Estatuto dos Advogados, impedindo que se manifestassem em audiências. Um grupo, convicto de que Moro desrespeitava as prerrogativas profissionais dos advogados quando era juiz, cogitou até mesmo deflagrar um movimento para impedi-lo de obter a carteira de advogado junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Uma parte das críticas pode ser debitada na conta de advogados que fazem tudo para defender seus clientes, inclusive atacar o juiz. Mas, numa ocasião, Moro achou que deveria desfazer essa imagem e lembrou que ele próprio é casado com uma advogada, Rosangela Wolff Moro, que trabalha na defesa de grupos vulneráveis, como pessoas com doenças raras ou deficiências.
Agora, em seu novo emprego na consultoria norte-americana Alvarez & Marsal, a rotina de Moro inclui, justamente, cortejar advogados. Nos últimos meses, o ex-juiz vem fazendo um road show online, como o mercado chama as reuniões para captar clientes, com alguns dos maiores escritórios de advocacia do país. Nessas ocasiões, Moro dá detalhes do seu trabalho e vende seu peixe. Na segunda semana de fevereiro, por exemplo, fez reunião virtual de uma hora com líderes do Tozzini Freire, um dos maiores escritórios do país. Estava ao lado do seu chefe, o brasileiro Marcos Ganut, sócio-diretor da área de infraestrutura da Alvarez & Marsal no Brasil, e do diretor global, o norte-americano Richard Fogarty. A reunião foi falada em inglês.
Moro associou-se à Alvarez & Marsal em novembro passado. A consultoria tem 4 500 funcionários em todo o mundo. O ex-juiz tornou-se o número 2 do departamento de disputas e investigações, que cuida de litígios em várias áreas do direito e questões de conduta de funcionários e corrupção dentro das empresas. A Alvarez & Marsal lidera o mercado brasileiro de recuperação judicial – com clientes como Odebrecht, OAS e Livraria Cultura –, mas não está no topo das principais empresas do segmento de compliance, cujo líder é a concorrente Control Risks. Moro foi contratado para mudar esse cenário. Nessa tarefa, ele não exercerá a advocacia, pois a Alvarez & Marsal é uma consultoria e não está habilitada para prestar serviços jurídicos.
Na reunião no Tozzini Freire, o ex-juiz disse que seu foco será em investigações internas de empresas estrangeiras com filiais no Brasil. Terá duas frentes de atuação. Uma envolve o trabalho de investigação interna, quando a empresa suspeita de alguma irregularidade. A outra trata de criar estratégias para coibir condutas reprováveis entre seus executivos e demais funcionários. No encontro virtual, Moro insistiu que o setor privado precisa assumir a responsabilidade de combater a corrupção, dentro e fora da companhia. Sua tese é que, ao criar barreiras para a prática de corrupção, a empresa ganha maior valor de mercado.
Em pelo menos uma reunião – nesse caso, com dirigentes do escritório Tozzini Freire – Moro tomou a iniciativa de garantir aos potenciais clientes que não pretende seguir carreira política. Sem que ninguém perguntasse sobre o assunto, o ex-juiz disse que sua intenção é dedicar-se integralmente às suas atividades na Alvarez & Marsal. Consultado sobre o assunto, o escritório disse que, por razões éticas e de sigilo profissional, não comenta reuniões com clientes ou parceiros. Outros três escritórios – Mattos Filho, Warde Advogados e Knopfelmacher, Locke Cavalcanti Advogados, todos sediados em São Paulo – também não quiseram comentar reuniões internas. Moro não quis falar com a piauí.
Além das reuniões virtuais com escritórios de peso, Moro fez dois eventos neste ano – um aberto ao público e outro fechado, organizado pelo escritório Azevedo Sette Advogados. O primeiro, promovido pela Hard Talk, empresa de conferências jurídicas, ocorreu em 10 de fevereiro no Canal de Arbitragem, no YouTube. O ex-juiz falou sobre seu trabalho e defendeu a Lava Jato. “Eu já ouvi de vários empresários de grande porte que já havia uma preocupação mesmo anterior [à Lava Jato] em relação aos sistemas anticorrupção, mas que com ela o quadro mudou completamente”, disse Moro. No outro evento, ocorrido no dia 18 de março, ele voltou a tratar do papel do setor privado no combate à corrupção. “[Foi] mais um dos webinars que promovemos para clientes nesses tempos de pandemia, sem custo ou qualquer questão comercial envolvida”, disse a assessoria de imprensa do Azevedo Sette Advogados.
Entre os dias 25 e 27 de maio, Moro participará de uma nova edição do seminário LEC Experience LATAM, “o maior encontro online sobre compliance da América Latina”, segundo o site do evento. Moro será a principal estrela, ao lado do jornalista Marcelo Tas. O site informa que o ex-juiz falará sobre “investigações corporativas, seu peso nas negociações de acordos de leniência e o avanço das medidas anticorrupção em um cenário sensível para o legado das recentes operações”. A inscrição no evento custa 530 reais. Moro, segundo a Alvarez & Marsal, não recebe cachê nesses eventos.
A missão de Moro de prospectar clientes corporativos junto aos grandes escritórios de advocacia é mais complexa do que parece, dada sua biografia – que ajuda, mas também atrapalha. Na condição do juiz que mandou prender o ex-presidente Lula, Moro ganhou notoriedade nacional, entrou na lista de presidenciáveis e virou ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro, do qual saiu fazendo uma denúncia grave – a de que o presidente vinha pressionando para manipular a Polícia Federal em favor de sua família.
A mesma notoriedade, porém, é um complicador para quem atua num terreno – de compliance e investigações – que requer o máximo de discrição. “A marca Moro hoje é maior do que a Alvarez & Marsal e isso por si só pode ser complicado”, disse um advogado que esteve num dos road shows e pediu para não se identificar porque alguns de seus clientes também trabalham com a Alvarez & Marsal. “A notoriedade dele pode levar um cliente a temer que os jornais noticiem, por exemplo, que seus executivos tiveram celulares e computadores apreendidos em uma análise por corrupção interna.”
Além disso, a situação de Moro ficou mais frágil depois que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por 3 votos a 2, decidiu que sua atuação nos processos da Lava Jato contra o ex-presidente Lula foi incorreta e parcial. Nesta quinta-feira (22), o plenário formou maioria de sete votos para ratificar a suspeição de Moro. A decisão do STF é uma nódoa em seu currículo como magistrado – o que pode espantar clientes. “A verdade é que Moro está mais queimado do que borda de pizza”, disse o mesmo advogado. “Ele não tem apelo junto a lulistas, nem a bolsonaristas, nem a garantistas”, avaliou, referindo-se aos que priorizam a atenção às garantias constitucionais no decurso de um processo.
Nem todos acham que sua trajetória é um prejuízo. “O Nelson Jobim foi deputado federal, ministro da Justiça, ministro da Defesa e, hoje, atua no conselho do banco BTG”, compara o advogado Sérgio Nutti Marangoni, sócio do escritório Salusse Marangoni Parente e Jabur Advogados. A própria Alvarez & Marsal aposta no valor da contribuição de Moro. Em nota à piauí, na qual confirma os road shows do ex-juiz, a consultoria disse que “o amplo conhecimento jurídico e investigativo e a experiência governamental de Moro contribuem para a construção de sistemas de prevenção de fraudes, além de investigações de situações complexas às quais grandes companhias estão expostas, principalmente neste momento importante de maturidade de governança das empresas em um mundo em transformação e com transações cada vez mais frequentes no mundo digital”.
Para evitar que o trabalho de juiz contamine o trabalho do consultor, a Alvarez & Marsal faz questão de esclarecer que o contrato de Moro “tem uma cláusula que proíbe expressamente sua atuação em qualquer caso que inclua empresas que possa gerar conflito de interesses”. Em outras palavras: Moro não terá nada a ver com o processo de recuperação judicial de empresas como a OAS ou a Odebrecht, que tiveram papel central no escândalo da Lava Jato.
A questão do “conflito de interesses”, no entanto, está na Justiça. No dia 18 de março, o juiz João Oliveira Rodrigues Filho, da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, determinou que a Odebrecht interrompa seus pagamentos à Alvarez & Marsal, passando a depositá-los em conta judicial, até que seja esclarecido que os termos do contrato do ex-juiz impedem “qualquer ingerência do sr. Sergio Moro” em assuntos relacionados à Odebrecht ou outras empreiteiras envolvidas na Lava Jato. O Tribunal de Contas da União está conduzindo uma investigação sobre a contratação do ex-juiz e deve informar suas conclusões ao juiz.
Antes de associar-se à Alvarez & Marsal, Moro deu alguns passos para trabalhar no mundo da advocacia, aquele universo em que chegou a ser bastante contestado como juiz. Estreou no rentável mundo dos pareceres jurídicos ao ser contratado pelo escritório Warde Advogados para dar um parecer em favor do empresário israelense Benjamin Steinmetz, acusado pela Vale de corromper o governo da Guiné para obter o direito de explorar uma jazida de minério de ferro no país. Segundo o jornal O Globo, Moro recebeu 750 mil reais por três pareceres. O advogado Walfrido Jorge Warde Júnior, sócio do escritório e autor da ideia de contratar Moro, não quis se manifestar: “Não posso falar por dever ético e profissional”, disse.
Enquanto fazia pareceres para o Warde Advogados, houve uma tentativa de articular a contratação de Moro para trabalhar no escritório Nelson Wilians Advogados, cuja carteira de clientes inclui o empresário Luciano Hang, o bolsonarista conhecido como “véio da Havan”, a empresa de plano de saúde Prevent Senior e o Banco do Brasil. A aproximação entre as partes foi feita pela advogada Sandra Marchini Comodaro, diretora do escritório em Curitiba e amiga de Rosangela, mulher do ex-juiz. Mas a tentativa não avançou. “Não houve uma conversa nem proposta”, disse Nelson Willians. “Ficou apenas no desejo dessa advogada em ter Moro em nossos quadros.”
*A versão original desta reportagem informava que o parecer de Moro não foi sinônimo de sucesso porque, em janeiro, o tribunal de Genebra condenou Steinmetz a cinco anos de prisão e multa de 50 milhões de francos suíços. A informação fazia uma correlação incorreta. O parecer de Moro em favor de Steinmetz versa, de fato, sobre a disputa entre a Vale e o empresário israelense, mas diz respeito a uma sentença prolatada pela London Court of International Arbitration (LCIA) – e não à ação na corte de Genebra. No caso da LCIA, a causa ainda não teve um desfecho.