Um aspecto menos conhecido da vida e da carreira de Machado de Assis foi o longo tempo passado como funcionário público. Primeiro como chefe de seção e depois diretor de Secretaria de Estado da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, no Rio de Janeiro.
Nessa função, Machado exercia uma intensa atividade burocrática e preenchia inúmeros documentos, que se perderam em sua maior parte quando foram descartados os arquivos mortos do futuro ministério. Alguns poucos relatórios assinados ou referendados por Machado sobreviveram, e surgem ocasionalmente quando são dispersadas antigas coleções de manuscritos formadas por literatos de meados do século passado.
O memorando reproduzido nesta página é particularmente divertido, e acompanha um relatório de seis páginas com várias outras intervenções e anotações de Machado. Mas o mais saboroso é, sem dúvida, o despacho final, endereçado em 17 de dezembro de 1890 ao General Francisco Glicério, então chefe de Machado como titular da Secretaria, num momento em que a República recém havia completado seu primeiro ano.
Para encaminhar um processo interno ao qual já haviam sido agregados diversos documentos, Machado escreve a Glicério a nota seguinte:
“Faço subir estes papéis que baixaram do Gabinete para que na Diretoria se pudesse informar os da Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros. Informados os dessa Companhia, subiram todos juntos e baixaram hoje, dando Vossa Excelência esse despacho, ‘Arquivem-se’, ? o qual presumo refere-se aos últimos. Os que ora sobem outra vez tem de ser juntos ao decreto que Vossa Excelência por seu despacho de 13 de dezembro disse-me estar suspenso por enquanto”.
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Com fina ironia, Machado lembra ter feito subir os “papéis que baixaram do gabinete”, tê-los mandado em seguida subir “todos juntos”, menciona que “baixaram hoje” e que finalmente manda-os subir “outra vez” para serem juntados a um decreto da Secretaria que soube “estar suspenso por enquanto”…
É provável que Glicério pouco ou nada tenha percebido da graça do memorando de seu funcionário-modelo, ? que oficiava havia quase vinte anos na Secretaria ? sem dúvida levemente irritado com a falta de familiaridade do novo Secretário com o mecanismo de circulação dos documentos no órgão. Habituado a uma rotina inabalável que regulava os despachos da abundante documentação ? graças à qual limitava-se o sobe e desce dos papéis ? Machado não podia deixar de manifestar sutilmente sua reação diante o balé burocrático a que assistiu nesse caso, talvez provocado pela relativa inexperiência de Glicério.
Todos os papéis revestidos de sua letra ou assinados por Machado de Assis figuram entre os mais procurados pelos colecionadores brasileiros, e ainda estão por ser recolhidos e reunidos por seus inúmeros exegetas os textos de trabalho do grande escritor, que muitas vezes contêm pérolas.