Em Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho (1933-2014), ao falar sobre a morte do camponês João Pedro Teixeira (1918-1962), assassinado com cinco balas de fuzil, Manoel Serafim diz: “A gente sentimos uma tristeza, assim. Houve isso. Parece que o sol esfriou, assim, não quis sair do lugar, e foi aquela serenidade fria, assim, aquela tristeza arrancando, assim. Aquela vida com aquela saudade. Por que tem… Existe saudade sem alegria, aquela saudade com tristeza. E todo mundo sentiu, não é?”
Eduardo Coutinho (1933-2014) teria completado 90 anos em 11 de maio, data em que, além da alegria de celebrar seu legado como cineasta e evocar memórias pessoais do amigo, foi inevitável sentir também “aquela saudade com tristeza” de que falou Serafim. Entre outras recordações, lembrei do relato que Liana Aureliano mandou para minha irmã, Silvia, em janeiro de 2015: “Esta noite sonhei com Eduardo Coutinho. Um sonho longo e interessante. Eu ia entrar no elevador de um hotel e ele estava dentro. Era ele, bem moço e tentando se esconder de mim. A porta do elevador fechou antes que eu pudesse entrar. Na portaria do hotel me informaram que ele era um hóspede antigo e me deram o número do quarto. Fui falar com ele. Reclamei do susto horrível que ele nos havia dado, se fazendo de morto. Ele respondeu que estava muito cansado do mundo.”
Nove anos depois do “susto horrível” que levamos na trágica manhã de domingo, 2 de fevereiro de 2014, continua difícil aceitar que Coutinho tenha morrido da forma que morreu. A linda fotografia feita por Zeca Guimarães durante a gravação de As Canções, em fevereiro de 2011, é a imagem de um homem feliz que seria maravilhoso conseguir perpetuar para sempre na memória, mesmo cientes de que ele sempre foi um homem atormentado, “muito cansado do mundo”.
À medida em que se aproximou do fim, Coutinho incorporou aos seus inúmeros dons o de prever o futuro. Na entrevista, dada em 2013 à pesquisadora Andrea Nestrea, declarou: “… [A arte] está ligada à vida na medida em que… na medida em que dá uma razão para viver, até…. econômica, que é a pior de todas, mas pelo menos… se eu não fizesse esse trabalho [de dirigir filmes] iria ser insuportável. A vida em si é… é fogo, né? A vida é dura. Mas, ah… tudo bem. A gente vai… enquanto você respira há esperança. […] E o ideal, quando você morrer, que infelizmente a gente morre, eu queria que fosse no meio de um filme e que o filme fosse exibido… inacabado. Meu sonho é fazer filmes inacabados. Se você morrer, é perfeito. Espero que demore, não é?” [sons de batidas na madeira]
A expectativa de que a morte tardasse acabou sendo frustrada. Mas chegou, de maneira imprevista, “no meio de um filme” – Últimas Conversas (2015), já gravado em fevereiro de 2014, mas ainda não montado e que teve lançamento póstumo, no ano seguinte.
Se pudermos considerar a fotografia do sorridente Coutinho um marco da sua trajetória de cineasta consagrado, a que Ricardo Aronovich tirou cerca de 45 anos antes, por volta de 1965/66, registra com precisão a atmosfera sombria do início de sua carreira – período árduo em que ele era o realizador de um filme de ficção inacabado, a primeira versão de Cabra Marcado Para Morrer, cuja filmagem havia sido interrompida pelo exército em 1º de abril de 1964. O flagrante dele barbado, de perfil, diante do copo de uísque, no instante em que acabou de riscar o fósforo para acender o cigarro, faz parte de uma série “muito anos sessenta, muito intelectual-looking”, nas palavras do próprio Aronovich. “Era uma época muito bonita e agradável”, ele escreveu, “muita mexida intelectual aí em Bs As, o novo cinema argentino paralelo ao cinema novo… que boa época!!!” No final do e-mail de Aronovich, enviado em 2013, o haiku citado, de Jorge Luis Borges, parece premonitório: “¿Es un imperio/ esa luz que se apaga, / o una luciérnaga?” (“É um império/essa luz que se apaga/ou um pirilampo?”, na tradução de Jorge Luis Borges – Obras Completas, volume 3, Globo, 2000) – a menção a esses versos teria o propósito de sugerir que, em retrospecto, a obra de Coutinho ilumina a floresta escura, como o brilho da luz do vagalume?
Na mesa-redonda em homenagem a Jean-Claude Bernardet no 11º Festival É Tudo Verdade, em 2006, Coutinho afirmou: “…uma espécie de coisa imantada, que eu lia e me provocava todo o tempo, em que trabalhava na televisão e pretendia voltar [ao cinema], mas não sabia como, era o que o Jean-Claude escrevia nos anos 1970 e 80. Basicamente sobre o documentário, mas não só. […] no período em que eu pensava em fazer o Cabra eu me alimentei […], eu fiz o Cabra um pouco do jeito que eu fiz em resposta às questões que o Jean-Claude colocava […] eu fiz o filme um pouco para ele.” (Transcrição incluída em Jean-Claude Bernardet, Brasil em tempo de cinema. Companhia das Letras, 2007. pg 11.)
Após ter renascido em 1984 com a estreia de Cabra Marcado Para Morrer, Coutinho sentiu que estava “morrendo de novo, por falta de coragem”, em 1997: “O Cabra todo mundo esperava, era um filme previsível”, declarou. E estava convicto que só poderia renascer de novo se fizesse o que “ninguém quer ou pode fazer”. Foi isso que o entusiasmou: “fazer um filme que ninguém pode fazer.” E graças a um “déspota esclarecido”, José Carlos Avellar, então diretor da RioFilme, teve a coragem de fazer Santo Forte (1999), inaugurando nova etapa de sua carreira, além de provar aos que a princípio rejeitaram o filme, eu inclusive, que ele é que estava certo. (Depoimento de Coutinho dado no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro em 25 de abril de 2012.)
“Eduardo Coutinho sei lá quem é. Sei lá quem eu sou. Não sei quem eu sou, nem porque eu faço documentários. Eu tento transferir tudo isso para o domínio do que eu faço. O que eu sou, eu não falo, por que eu nem sei. Mas é claro que não há condição de separar o que eu sou do que eu faço. Mas eu, enfim, tento não personalizar, não ter autobiografia que influa. Mas influi, por mais que eu tente que influa menos.” (Sangue Latino, direção: Felipe Nepomuceno; entrevistador: Eric Nepomuceno. Canal Brasil, 2013.)
“Eu torço para continuar imortal, mas contribuo para que não seja imortal. Mas não pretendo parar de fumar. Não pretendo parar de fumar.” (Flip, julho de 2013.)
“[…] A única coisa que é importante para o ser humano é dar sentido à vida. Por que você vai levantar da cama de manhã? Eu me pergunto. É uma coisa absurda. Para quê? Por que não ficar dormindo? Para que viver?…Você dá um sentido à vida com a religião, fazendo filme, pintando…enquanto você não encontra uma coisa, inventa uma paixão, inventa… não importa. É esse o único problema na vida, é esse. É dar um sentido a uma coisa que você não sabe quanto vai durar. Você não pediu para nascer e não vai pedir para morrer. E quanto dura esse espaço entre nascer e morrer? Então, a vida é muito simples, entende? O que acontece entre nascer e morrer. É só isso.” (Mesma entrevista a Andrea Nestrea citada acima, publicada na revista digital Portfólio #3 da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, agosto de 2013.)
“Tenho fascinação por tudo que é inacabado, resíduo, lixo, detrito. A vida não é senão isso.”
“Continuo tão infeliz quanto antes. E tão feliz quanto antes.” (Outubro, 2013. Gravação feita para o filme Eduardo Coutinho, 7 de outubro, de Carlos Nader.)