Em entrevista após o encerramento do debate na TV Gazeta, no último domingo, dia 9, Ciro Gomes lamentou a ausência de Jair Bolsonaro “por essa infelicidade que aconteceu”. E completou: “Felizmente está tudo bem com ele, vida que segue.” O “está tudo bem”, a “vida que segue” é, no caso, uma situação de saúde mais do que delicada e uma internação prolongada. Significa nada menos do que o afastamento do capitão-candidato da campanha do primeiro turno. Mas resume bem o tom geral que prevaleceu no período pós-atentado: cada um com seus problemas.
O problema de Ciro se chama Fernando Haddad, e o de Haddad se chama Ciro. A disputa pelo espólio de Lula está entre os dois, bem como a vaga no segundo turno que caberá a um deles. Desnecessário dizer o quanto Haddad leva vantagem. Cresceu meteoricamente mesmo antes de ser declarado oficialmente candidato. Na declaração espontânea de voto alcança 4%, quase o mesmo que Ciro, que tem 5% nesse quesito. A queda vertiginosa de Lula na pesquisa espontânea, de 20% para 9%, mostra que a substituição do ex-presidente por Haddad como cabeça de chapa foi realizada no momento-limite para isso.
Se a centro-esquerda se organizou em termos de um mano a mano, o outro campo tem uma disputa bem mais complexa. A começar pelos problemas do capitão-candidato, que não são pequenos. O atentado não o catapultou definitivamente para o segundo turno. E a campanha sentiu duramente a sua ausência.
Bolsonaro é o único com legitimidade e autoridade para resolver as frequentes disputas ferrenhas dentro de sua equipe. Sem ele na coordenação, a confusão se instalou. Errar no tom da reação ao atentado nem foi o acontecimento mais desastrado. Mas foi muito danoso para a candidatura. O presidente do partido fez chamamento à guerra – e não esteve sozinho nessa batalha de Itararé. O próprio Bolsonaro, desconectado do sentimento das ruas e sem informação suficiente sobre o clima geral, posou cheio de tubos, no leito de hospital, com as duas mãos engatilhadas em forma de revólver. Uma vítima querendo revidar, ir para o ataque. Erro crasso de estratégia.
Sem a presença física do capitão-candidato nas ruas e na cobertura jornalística, não vai ser fácil manter viva uma campanha que já não dispunha de estrutura e recursos. Ainda mais quando toda a estratégia foi montada em torno da candidatura viril e forte, capaz de superar qualquer obstáculo. Tendo se apresentado como mito, Jair Bolsonaro surgiu como um ser humano vulnerável. Seu processo de recuperação será longo e exigirá isolamento hospitalar. Isso está muito longe de ser pouco em termos de perda para a imagem que construiu para si.
O erro mais primário no bate-cabeça da campanha bolsonarista pós-atentado foi a entrada em cena ostensiva de seu aparato militar. Generais da ativa e da reserva saíram das sombras em uníssono para apoiá-lo e fazer ameaças de variados tipos ao eleitorado. E, claro, para tentar tomar para si a campanha. Não pararam nem um minuto sequer para pensar que o candidato que se apresentou como antissistema não podia mostrar que contava, na verdade, com o porrete do sistema à sua disposição.
Some-se a todas as dificuldades mencionadas o fato decisivo de que o atentado contra sua vida não foi capaz de fazer crescer significativamente sua intenção de voto. É um dado que parece apontar para um teto de crescimento efetivamente alcançado. Indício cristalino disso está no impressionante aumento de sua taxa de rejeição, que foi da taxa já alta de 39% para a taxa proibitiva de 43%. É algo tanto mais impressionante e sintomático porque aconteceu no período pós-atentado, em que teoricamente o eleitorado tenderia a aliviar no quesito rejeição. Não aliviou, muito pelo contrário.
Esses muitos problemas não significam, evidentemente, que Bolsonaro não tenha chances de chegar ao segundo turno. Afinal, o Datafolha mostrou que ele é líder isolado da corrida presidencial, com vantagem de onze pontos sobre o segundo colocado. Mais que isso, chegou a 20% de declaração espontânea de voto, uma enormidade em termos eleitorais.
Mas os 22 dias que ainda restam de uma campanha de tevê prevista para 35 representam também uma eternidade eleitoral. Abrem uma avenida para voltas e reviravoltas. Ainda mais em se tratando de uma campanha interrompida a cada momento em que se declarava que tinha finalmente começado. Só agora parece que está na mesa o tabuleiro completo, com todas as peças.
Em termos de tempo de rádio e de tevê, o dono do tabuleiro se chama Geraldo Alckmin. Para conquistar parte de fato significativa do eleitorado que hoje está com Bolsonaro, Alckmin tem de proceder em duas etapas. Primeiro, tem de conseguir diminuir de maneira significativa a distância que o separa do líder, para algo em torno de seis pontos. O que é o mesmo, hoje, que crescer sete ou oito pontos sem que Bolsonaro cresça. Só depois de realizar essa primeira tarefa é que Alckmin se qualificaria para a segunda etapa, para um mano a mano com Bolsonaro em torno de quem tem chances efetivas de derrotar Lula.
Na primeira etapa, o candidato tucano terá de ser rápido. Precisa aproveitar bem o momento de fragilidade da campanha de Bolsonaro. E não tem outra estratégia disponível senão partir para uma luta por sobras e restos. É preciso tirar votos de Bolsonaro, mas não devem ser muitos os que Alckmin poderá conseguir virar nesta primeira etapa da estratégia. Terá também de conseguir roubar parte daqueles votos de Marina que têm motivação anti-Lula. É provável que essa parte não seja a maior do total de intenção de voto da ex-senadora. Mas também não deve estar abaixo do patamar de intenção de voto em que se encontram os outros três candidatos de quem Alckmin tem de roubar eleitorado anti-Lula: os 3% de Alvaro Dias, Henrique Meirelles e João Amoêdo.
É operação das mais difíceis pescar votos em muitas lagoas para conseguir fazer volume. Mas é o que restou a Alckmin fazer. Somando as diferentes lagoas, a quantidade de votos pode resultar expressiva. Alckmin tem de impedir que esses votos migrem para Bolsonaro. E tem de convencer esse eleitorado a votar útil desde já.
É aqui que a campanha negativa contra Bolsonaro a ser desenvolvida pelo tucano ganhará novos contornos. Tentar roubar alguns pontos do capitão-candidato terá de ser uma operação articulada com o convencimento do eleitorado anti-Lula, hoje fragmentado em várias candidaturas. Alckmin terá de convencer de que dispersar o voto no primeiro turno é o mesmo que colocar Bolsonaro no segundo. E que o capitão-candidato é um risco. Não apenas porque, se ganhar, levará o país a uma crise permanente e sem solução. Também porque Bolsonaro não é nem mesmo garantia de que Lula será derrotado no segundo turno.
No momento, as dificuldades de Alckmin parecem pelo menos tão grandes quanto as de Bolsonaro. Só que não basta comparar dificuldades. O capitão-candidato está nada menos do que 14 pontos à frente do tucano. As dificuldades só são de fato iguais quando a própria disputa se iguala. É o que Alckmin terá de fazer acontecer nos próximos dez dias para se manter no jogo.