O noticiário sobre a manifestação da última sexta-feira na Praça XV, no Centro do Rio, falava do ato como um desagravo a Lula e Dilma. No entanto, bastava circular entre as cerca de 70 mil pessoas, estimativa dos organizadores do evento, para perceber que ali se aglomeravam duas gerações da esquerda. E que elas não convergiam totalmente em suas defesas e reivindicações.
Em meio à turma da boca do palco, viam-se muitas bandeiras, malvistas no contexto das manifestações de 2013. Retirados do armário, estavam lá, esvoaçantes, pendões do PT, PCdoB, PDT, CUT, UNE e MST. Boa parte do pessoal na fila do gargarejo estava a favor do governo e do Partido dos Trabalhadores. Cada vez que o ex-presidente Lula era mencionado, pululavam as ovações. Estar ali era, em grande medida, como uma viagem no tempo, aos comícios dos anos 80 e 90. Agitando uma bandeirola da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Edda Sant’Ana, 64 anos, animada, disse ser militante do PT desde a eleição presidencial de 1989. Ela reconhece que há muito tempo não saía às ruas para defender o partido. Recentemente, tem protestado durante os constantes panelaços na Lagoa, um dos metros quadrados mais caros da Zona Sul carioca. “Quando batem panela, eu grito da minha janela: ‘LULA! DILMA!’ É claro que o PT se acomodou. Erraram em tentar agradar a elite e fazer acordo com esses partidos que não prestam. Mas eu não aceito o rompimento da democracia, esse impeachment forçado.”
Terminado o falatório dos políticos, alguns artistas da MPB subiram ao palco. A sambista Teresa Cristina cantou Canto das Três Raças, O Bêbado e a Equilibrista, Vai Passar e Vou Festejar. Nesse momento, um grupo de estudantes de cinema discutia como o PT havia se afastado dos movimentos sociais e como tinha sido nefasta aos movimentos sociais a aprovação do Projeto de Lei Antiterrorista sancionado pela presidente Dilma. Quando se ouviu o famoso verso do samba: “Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão”, um deles disparou: “Essa é a música do PT com os movimentos sociais.”
Quanto mais o observador se afastava do palanque, menos camisas vermelhas e bandeiras ao vento ele via, bem como constatava uma queda da média da faixa etária. Os jovens se concentravam basicamente na periferia do palanque, onde armaram oficinas de faixas e cartazes, tocaram marchinhas políticas numa bandinha e dançaram funk e hip hop. Em tudo a jovem esquerda se assemelhava mais às manifestações de 2013, distante do clima da comissão de frente, onde um Lula versão bonecão de Olinda animava a militância tradicional.Já no fundão, a garotada evitava apoiar o governo e o ex-presidente. “Não estou aqui pra defender o PT, mas contra o golpe, a manipulação dos fatos pela mídia e para pedir a imparcialidade da Justiça”, disse Thiago Castro, 27 anos, de camisa branca. Mayara Mayane Gonçalves, uma jovem de 19 anos, de Jardim América, subúrbio do Rio, justificou sua presença por vislumbrar um retrocesso em caso de impeachment. Também de branco, a estudante de logística de uma universidade privada acrescentou: “Sei que este governo tem muitos problemas, mas sou bolsista do Prouni e sei reconhecer os avanços também.”
Afastado do palanque, junto ao reduto dos mais jovens, o cientista político João Roberto Lopes Pinto, professor da PUC e da Unirio, notou as diferentes esquerdas ali representadas. “O divórcio da rua com o PT é grande. O partido tentou segurar os grupos sociais e se comprometeu com forças que hoje querem tirar a legenda do poder. Hoje aqui há dois grupos buscando uma conciliação que há tempos se perdeu. O que une essas pessoas é o sentimento contra a tentativa de golpe. Já falei com muita gente que é contra o governo. A ligação do PT com a corrupção é real, mas é preciso ter provas. Eu estou aqui para defender as regras mínimas de nossas instituições fracas. Acho que todos nós aqui.” O professor acredita que o atual governo possivelmente não resistirá à pressão e a presidente Dilma deve renunciar até o fim de abril. Ele diz que o futuro político deve se aproximar de medidas econômicas liberais como nos governos de Horácio Cartes, no Paraguai, e de Mauricio Macri, na Argentina.
Entre os mais jovens, um grupo de estudantes secundaristas gritava: “Dilma Rousseff, legaliza o beque”. Algumas moças carregavam cartazes onde se lia: “Mulheres do Grelo Duro”. Ao ver o helicóptero que sobrevoava a Praça XV, do palanque alguém falou ao microfone: “Olha lá! Será o helicóptero do Perrella? Será que vai cair pó? Não!!! É o helicóptero da Globo!” Instantaneamente um coro se formou: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!”
Em direção à turma da tribuna, a aposentada Lourdes Aparecida da Silva Dias, 67 anos, uma mulher negra com a camisa do PT, aplaudia e pulava enquanto o ator Osmar Prado dizia que “Lula estreitou a distância entre a casa-grande e a senzala”. Pouco atrás dela, postava-se um grupo de militantes com bandeiras do Movimento dos Sem Terra. Com uma expressão séria, o representante do MST Marcelo Luiz Souza, 33 anos, enxergava no ato um problema de embate de classes. “Independentemente da questão do governo, estar aqui é um posicionamento de classe. Estamos aqui para impedir o avanço da direita. Apoiar estes atos significa, neste momento, fazer frente ao avanço da burguesia e à ofensiva contra os trabalhadores. O governo se afastou dos movimentos sociais por causa de suas alianças e durante o comando da presidente Dilma, nós vimos um grande retrocesso nas políticas de reforma agrária. Nenhuma medida importante foi tomada.”
Do meio da multidão, alguém acendeu um sinalizador de fumaça vermelho que explodiu numa nuvem densa. Alguém gritou: “É black bloc?” Não era. Eles não vestiram as ninjas naquela noite. Enquanto isso, lá na frente esgoelavam: “Lula vale a luta, Lula vale a luta”. O grito não alcançou toda a multidão. Só em dois momentos as duas esquerdas vociferaram em uníssono: “Fora, Cunha” e “Não vai ter golpe”.