Esta reportagem integra a série Má alimentação à brasileira, sobre a fome e a epidemia de obesidade que afetam a população mais pobre do país. Participaram Camille Lichotti (reportagem), Plínio Lopes (checagem), Fernanda da Escóssia (edição) e José Roberto de Toledo (coordenação).
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Quando Karine Vieira realizou o sonho de ter mais um bebê, não imaginou que precisaria passar toda a gestação levando oito picadas de agulha por dia. A técnica de enfermagem de 38 anos descobriu a gravidez em março passado, às vésperas de realizar uma cirurgia bariátrica para perder peso. À época, ela pesava 101 kg e estava com obesidade grau 3. Seguir com uma gravidez sendo obesa era um terreno desconhecido para Vieira. Ao iniciar a gestação do primeiro filho, sete anos antes, ela tinha 70 kg. Os médicos alertaram sobre os riscos de uma gravidez com 30 kg a mais. “Eu queria perder peso antes de ter um novo bebê. Achava que seria mais tranquilo e saudável. Mas não deu tempo”, lamenta ela. A primeira complicação a aparecer foi a diabetes gestacional, associada ao excesso de peso de Vieira. Com níveis altos de glicose – que podem ser mortais numa gravidez de risco –, ela precisava aplicar insulina em si mesma duas vezes por dia. Também precisava espetar a ponta dos dedos outras seis vezes e verificar se a glicose estava controlada. “Não era assim que eu imaginava a minha segunda gravidez. Mas pensei: ‘seja o que Deus quiser’”, diz.
Dados compilados pela piauí e pela agência de dados públicos Fiquem Sabendo, com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), do Ministério da Saúde, mostram que, em todo o país, a proporção de mulheres grávidas com obesidade mais que dobrou nos últimos treze anos: saltou de 11% para 24% de 2008 para 2021. Ao todo, o percentual de gestantes com excesso de peso – somando sobrepeso e obesidade – subiu de 33% para 53% no mesmo período. Isso significa que mais da metade das mulheres grávidas em 2021 estava com o peso acima do ideal, segundo os dados do Sisvan. O sistema registra peso e altura das gestantes que fazem acompanhamento pré-natal no sistema público de saúde e referem-se prioritariamente a mulheres em situação de vulnerabilidade social.
Além disso, a taxa de gestantes registradas no Sisvan com peso adequado nunca foi tão baixa: caiu para 34% em 2021 (em 2008 era de 44%). A proporção de mulheres abaixo do peso ideal diminuiu ao longo dos anos, apesar de estar em um patamar considerado elevado: 13% em 2021. Essa mudança mostra que, ao longo dos anos, a obesidade se tornou o principal problema nutricional entre grávidas brasileiras, ao mesmo tempo em que a falta de comida é questão permanente. No Brasil, cerca de 33 milhões de pessoas ainda passam fome, segundo pesquisa da rede Penssan. E são as mulheres mais pobres as que mais sofrem os efeitos da má alimentação.
“Essa transição nutricional está relacionada a modificações no padrão alimentar e epidemiológico brasileiro, com a diminuição da desnutrição e aumento da obesidade. Isso está relacionado à saída das doenças infecto-parasitárias e protagonismo das doenças crônicas”, explica Gilberto Kac, professor do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e especialista em epidemiologia nutricional. “Mas no Brasil existe na verdade a coexistência desses dois sintomas, o que torna muito mais complexa a atuação do sistema de saúde”.
Os dados do Sisvan revelam que, ao longo dos últimos anos, a proporção de gestantes que realizam ao menos três refeições por dia despencou – cenário que se repete em praticamente todos os estados brasileiros. A tendência foi de queda desde 2015, quando 86% das grávidas diziam fazer pelo menos três refeições diárias. Em 2021, essa proporção chegou a 49%. Ou seja, apenas metade das gestantes atendidas no sistema de saúde conseguiam fazer três ou mais refeições diárias. O levantamento realizado pela piauí e pela agência de dados públicos Fiquem Sabendo levou em conta as informações de 1557 cidades brasileiras que registraram pelo menos uma gestante fazendo as três refeições diárias na base do Sisvan em todos os anos da série histórica.
Em todas as análises das cidades que apresentaram dados mais consistentes, a tendência de queda na proporção de grávidas com frequência alimentar inadequada se manteve. Os municípios restantes não registraram sequer um caso de grávidas com esses hábitos alimentares – e os gestores não informam se isso ocorreu porque todas as gestantes atendidas pelo sistema público se alimentam de forma inadequada ou se as informações locais não foram coletadas e monitoradas. Grandes capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, não têm dados na plataforma. Vale lembrar que o Sisvan serve de guia para todas as estratégias e ações do Ministério da Saúde na área de alimentação e nutrição. Até hoje o governo Bolsonaro não apresentou o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que deveria orientar as políticas nutricionais entre os anos de 2020 e 2023.
A obesidade é uma condição complexa e tem entre suas causas uma série de fatores endócrinos e metabólicos. Mas os especialistas são unânimes em apontar a má alimentação, tema desta série de reportagens da piauí, como grande vilã da epidemia de obesidade atual do Brasil – especialmente o alto consumo de alimentos ultraprocessados, que são mais baratos, práticos e acessíveis. “A verdade é que ninguém deveria comer ultraprocessados”, diz o nutricionista Gilberto Kac, da UFRJ. Na gravidez, porém, o cuidado com a alimentação precisa ser redobrado. A gestante deveria optar por alimentos ricos em ferro, como feijão e verduras escuras e alimentos ricos em fibra. “São coisas que as pessoas mais pobres não conseguem comprar. Quando falamos do aumento da obesidade entre as grávidas, estamos falando dos mesmos fenômenos que explicam a obesidade nos adultos em geral. E a escolha alimentar saudável muitas vezes se torna impossível”, avalia Kac.
“Para fazer dieta certinha com a nutricionista tem que ter tempo e dinheiro. Não dá, né?”, diz Vieira. Tempo e dinheiro são duas coisas que ela não tem. Vieira trabalha em dois empregos diferentes para aumentar a renda da família. O marido, caminhoneiro, passa a maior parte do tempo na estrada. Então cabe à mãe cuidar da casa e dos filhos, além da dupla jornada de trabalho. “No café da manhã eu como qualquer coisa, um pão ou biscoito. O almoço é normal, arroz e feijão e alguma carne. À noite é pão com ovo também. Não dá tempo de preparar mais coisa”, relata ela. A receita regada a pão, sanduíche e bolachas também se repete no hospital em que trabalha como técnica de enfermagem. Entre um plantão e outro, quando a comida da unidade vinha com uma cara duvidosa, ela dividia uma pizza com os colegas de trabalho.
Durante a gravidez, Vieira teve a sensação de que os médicos da unidade de saúde não estavam preparados para lidar com seu quadro de obesidade. Ela realizou todo o pré-natal na cidade onde mora, Garanhuns, no agreste pernambucano. “Os médicos diziam que eu era uma bomba-relógio”, lembra. Certa vez, enquanto fazia uma ultrassonografia, o médico que a atendia apontou para uma região manchada na imagem e falou que tudo aquilo era gordura, conta Vieira. “Olha o que você está fazendo com sua filha”, ele disse. “Parecia que eu estava obesa porque eu queria. E eu sentia muita culpa só de pensar que algo poderia acontecer com o bebê por causa disso”, diz Vieira. Mas a obesidade é menos uma questão de escolha individual e mais uma consequência de uma série de vulnerabilidades a que a maioria da população brasileira está exposta. A obesidade é um problema de saúde pública. “Eles não estavam errados em alertar para os riscos, mas a forma como faziam é que dava medo.”
Os riscos associados à obesidade durante a gravidez são muitos – tanto para a mulher quanto para o bebê. Grávidas obesas são mais propensas a desenvolver diabetes gestacional, como foi o caso da técnica de enfermagem Karine Vieira. A grande quantidade de glicose no sangue da mãe pode fazer a criança desenvolver diabetes no futuro ou ter hipoglicemia ao nascer. Outro desfecho trágico relacionado ao excesso de peso é a maior probabilidade de a mãe ter pré-eclâmpsia, que, em poucas palavras, significa o aumento da pressão arterial durante a gestação. “Essa é a doença mais preocupante na gravidez e é uma das maiores causas de mortalidade materna no país”, explica o obstetra Jorge Rezende Filho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor da Maternidade Escola da UFRJ, referência para atendimento de gravidez de risco. Em níveis extremos, a pré-eclâmpsia pode causar convulsões e levar à antecipação do parto – e ao nascimento de um bebê prematuro.
“Na população de grávidas obesas a gente também observa mais perdas gestacionais, abortamentos espontâneos e malformações das crianças”, acrescenta Rezende, que já testemunhou uma série de desfechos trágicos como esses. A Maternidade Escola, unidade que ele dirige, conta com um ambulatório específico para atendimento de mulheres com excesso de peso. “Como atendemos a população do Sistema Único de Saúde, fica bem claro que as grávidas menos favorecidas socialmente têm mais obesidade do que as mulheres que podem ter acesso a outras dietas”, diz.
Essa diferença também aparece na prática clínica do obstetra Ricardo Porto Tedesco, professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí e membro da Comissão de Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. Além de atuar no hospital universitário, Tedesco atende em seu consultório particular em Jundiaí. “São perfis de atendimento totalmente diferentes”, observa ele. A obesidade é muito mais comum entre grávidas atendidas no serviço público e são elas, as mulheres mais vulneráveis, que precisam enfrentar os riscos da gravidez.
As pacientes obesas têm muito mais risco de eventos tromboembólicos (formação de coágulos na circulação sanguínea) no pós-parto, explica Tedesco, e isso pode levar à morte. Ele lembra um caso recente, quando uma mulher de 140 kg passou por uma cesárea no hospital universitário. “Na primeira vez que ela levantou para tomar banho, ainda no hospital, teve um desses episódios e caiu no chão do banheiro já morta. Foi uma catástrofe”, lamenta. “E os mais pobres são os mais obesos no Brasil, de forma geral. Comer bem custa caro”. A má alimentação atinge em cheio a população mais pobre do país – e as grávidas não fogem à regra.
Além da diabetes gestacional, Karine Vieira, a técnica de enfermagem de Garanhuns, também teve pré-eclâmpsia – o que a fez tomar uma série de remédios para controlar a pressão durante a gravidez. Além de fazer o pré-natal no sistema público, ela era atendida por um médico particular pelo plano de saúde. Ela só conseguia se consultar com nutricionistas pelo SUS, mas o atendimento era esporádico. Vieira conta que os profissionais faziam recomendações gerais e frequentemente indicavam alimentos que ela não podia pagar.
Ainda no início do pré-natal ela soube que o médico de sua cidade se recusou a fazer seu parto. Se ela tivesse algum problema durante a cirurgia, ou a bebê precisasse ser encaminhada a uma UTI neonatal, as unidades de saúde da cidade não teriam como oferecer atendimento de alta complexidade. Vieira precisaria viajar ao Recife e realizar o parto num hospital de referência para gravidez de risco. Conforme a gravidez avançava, a ideia de se pesar – e constatar qualquer aumento de peso – começou a deixá-la apavorada. “Para eles eu não tinha que ganhar peso nenhum, quando eu ganhava 1kg parecia um desastre. Eu não queria ir para não levar uma bronca.”
O ganho de peso durante a gestação é normal, mas deve respeitar a situação nutricional de cada gestante antes da gravidez. Mulheres desnutridas, por exemplo, devem ganhar mais peso que mulheres obesas. Este ano o Ministério da Saúde publicou a nova caderneta da gestante, com as curvas atualizadas de ganho de peso para cada situação nutricional, garantindo a segurança da gestante e do bebê. As recomendações são fruto do trabalho do nutricionista Gilberto Kac, da UFRJ, em associação com outros pesquisadores. Eles calcularam a faixa de ganho de peso ideal levando em conta as características da população brasileira. “A curva usada antes era muito permissiva. Durante anos essas mães ganharam mais peso do que é adequado na gravidez, acreditando que estivessem saudáveis. É um dado muito perigoso”, diz Kac.
No ano passado, ele e outros pesquisadores publicaram uma pesquisa analisando os dados do Sisvan com o uso de um algoritmo. Eles concluíram que, em 2018, apenas um terço das grávidas ganhou peso da forma ideal. Mais de 64,6% delas ganharam peso de forma indevida – tanto acima como abaixo do recomendado. A maior parte delas (38,7%) ganhou mais peso do que deveria. “Uma mãe que ganha o peso acima do recomendado retém o peso depois de ter o filho. Imagina se essa mulher engravidar novamente. Ela já vai chegar na próxima gravidez com sobrepeso e provavelmente vai acumular ainda mais. Depois de dois ou três filhos ela já estará com 10kg a mais”, explica Kac. Isso ajuda a aumentar a incidência de excesso de peso entre mulheres adultas em geral – e consequentemente a prevalência de doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e problemas cardiovasculares, que reduzem a expectativa de vida da população.
Tanto o aumento de peso indevido quanto a gravidez de mulheres já obesas aumentam o risco de o feto ter macrossomia, ou seja, ficar pesado demais para a idade fetal. Com isso, a criança tem mais risco de desenvolver obesidade ainda no primeiro ciclo da infância – e se tornar também um adulto obeso, dando continuidade a um ciclo nefasto, praticamente impossível de se romper. “Colocando dessa forma, parece terrível”, reconhece o nutricionista Gilberto Kac. “Mas se nada for feito, é bem por aí. A gente precisa de intervenções durante esse ciclo para não deixar isso piorar.” No ritmo atual, dizem os especialistas, o Brasil caminha para ter uma população cada vez mais doente.
Estudos antigos mostravam uma relativa melhora nos hábitos alimentares das mulheres durante a gravidez. Mas os profissionais ouvidos pela piauí relatam que essa não é a realidade atual das gestantes no SUS. Nas consultas, é cada vez mais comum o atendimento de mulheres que substituem proteínas e micronutrientes essenciais por gordura e carboidrato. Quase sempre a justificativa é o alto custo da comida e dificuldade de acesso a alimentos in natura. “Isso é muito preocupante porque a alimentação das gestantes influencia toda a vida da criança”, diz a nutricionista Julyane de Oliveira Sobrinho, do Ambulatório de Nutrição do Pré-Natal do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).
A chave para entender como a alimentação de mulheres grávidas se relaciona com os hábitos alimentares dos filhos – os futuros adultos – é o conceito dos 1.100 dias de ouro. É o período que abrange os noventa dias de pré-concepção até os dois primeiros anos da vida da criança. “Essa é a janela de oportunidade, que vai impactar na saúde das mulheres, dos bebês e nas gerações futuras para diminuir o risco de desenvolver obesidade e doenças cardiovasculares na vida adulta desse filho”, explica Sobrinho.
A rotina alimentar nos 1.100 dias é crucial para incentivar a boa alimentação das crianças, passando os bons hábitos adiante. Mas quando os adultos se alimentam mal, acabam fazendo da má alimentação uma herança maldita para os filhos. As crianças brasileiras já estão comendo ultraprocessados como nunca antes, mesmo na primeira infância. Um relatório publicado pelo Unicef no final de 2021 revelou um alto consumo de ultraprocessados na primeira infância entre integrantes do programa Bolsa Família (substituído em novembro passado pelo Auxílio Brasil). Um terço das crianças de até 2 anos consumiu bebidas açucaradas no dia anterior à pesquisa. Para bolachas e biscoitos, o percentual foi de 55%. “Deveríamos ter maior incentivo para ações que promovam a alimentação saudável. A gente no ambulatório tenta fazer a nossa parte, mas é um problema muito maior”, reconhece Sobrinho, da Fiocruz.
Procurado pela piauí, o Ministério da Saúde afirmou que “os dados de gestantes usuárias do SUS são coletados na rotina das equipes de saúde nos serviços da atenção primária ou nas visitas domiciliares dessas equipes.” Segundo o ministério, as ações de vigilância alimentar e nutricional incluem o monitoramento do peso das gestantes, com pesagem das pacientes durante o pré-natal.
No início de dezembro passado, Karine Vieira saiu de Garanhuns, no agreste pernambucano, e viajou 230 km de carro até Recife para fazer o parto de alto risco da bebê. A cirurgia precisou ser adiantada em duas semanas para mitigar os riscos de a criança nascer muito grande e trazer complicações para a gestante, que tomava remédios para controlar a hipertensão. “Eu estava com muito medo de morrer”, lembra ela. Em meio ao parto demorado, sua pressão ficou descontrolada e os médicos precisaram correr para terminar o procedimento.
Depois do susto, veio o alento. Tainá nasceu no dia 14 de dezembro, com 3,6 kg e 50 cm, perfeitamente saudável. No pós-parto, os médicos tiveram que medir a glicose da bebê e da mãe a cada duas horas por precaução. “Dava um dó porque eles furavam o pézinho dela o tempo todo. Mas perto do que poderia ter acontecido, foi quase nada”, diz Vieira. Como a mãe teve problemas para amamentar, a bebê toma fórmula infantil – ou leite artificial, que também é um produto ultraprocessado – cuja lata custa 52 reais. Ela consome cinco latas por mês, em média, o que fez a família cortar outros alimentos da casa para fazer a conta fechar. Mas Tainá, uma bebê sorridente de 8 meses, está apenas começando a descobrir o mundo da culinária. “Por enquanto ela só está comendo algumas frutinhas”, diz a mãe.