Por princípio, linhas de metrô são criadas para conectar diferentes áreas da cidade. Isso parece óbvio. Contudo, não se menospreze a capacidade de um mau projeto: um sistema de transporte público de massa sobre trilhos também pode segregar localidades. Parece ser o caso da linha 2 do metrô de Salvador, cujas estações estão sendo inauguradas desde dezembro de 2016.
O próprio uso do termo metrô já é questionável: a linha transcorre sempre sobre o solo e com trechos em elevação. Desenrola-se no eixo leste-oeste da cidade, ligando a linha 1 do sistema metroviário e a região central com o aeroporto e a cidade de Lauro de Freitas. Para tanto, grande parte do percurso ocupa o trecho entre as pistas rodoviárias da chamada avenida Paralela. Não era um mero canteiro central. Era um parque linear com cerca de 17 quilômetros de extensão e 60 metros de largura em média, com espécies nativas selecionadas pelo maior paisagista brasileiro, Roberto Burle Marx. Mesmo estando entre as vias expressas da avenida mais movimentada de Salvador, tal corredor verde conectava ecossistemas que sobrevivem em meio à ocupação soteropolitana – desde as dunas remanescentes até lagoas circundadas por densa vegetação arbórea. O novo metrô destruiu o eixo central de um sistema natural tão diverso quanto frágil.
“Salvador tem uma topografia muito delicada”, já dizia João Filgueiras Lima, o Lelé (1931-2014), fundamental arquiteto com forte atuação na capital baiana: nas décadas de 70 e 80, capitaneou a Companhia de Renovação Urbana de Salvador e a Fábrica de Equipamentos Comunitários, onde desenvolveu as excepcionais passarelas urbanas sobre grandes avenidas, os pontos de ônibus, os bancos, os muros de contenção de encostas e canalização de riachos, as escadas de estrutura modular para escoamento subterrâneo das águas nos morros, e muitas escolas. Em suma, no desenho de infraestruturas urbanas e equipamentos públicos, o arquiteto fazia intervenções em Salvador respeitando o relevo – com suas colinas de média altura frequentemente ocupadas com casas – e os trechos cada vez mais raros de vegetação remanescente. Ao passo que Lelé projetava respeitando a capital baiana, o novo metrô é plenamente brutal.
Enquanto muitos presenciavam o desastre (hoje, irremediável) para a cidade, poucas vozes se levantaram de modo tão esclarecedor como a do antropólogo e escritor baiano Antonio Risério: “Salvador assiste hoje àquele que é o maior crime urbanístico contra a cidade, desde que Thomé de Sousa comandou sua construção no ano de 1549. E não vejo ninguém bater na mesa. Nem sequer reclamar. […] o mais grave nem é a destruição do verde. É que teremos uma ferrovia murada. Olhem no mapa. A Avenida Paralela passa justamente entre os bairros pobres do miolo da cidade e os bairros privilegiados da beira do mar. Com o muro, a cidade ficará irremediavelmente apartada. Teremos o nosso muro da vergonha. […] A segregação será oficializada – e por um governo que faz de conta que é de esquerda”, escreveu, em referência às administrações do PT no estado. A percepção do metrô como um muro é correta e visível a qualquer pessoa que vá a Salvador. Seu potencial de segregação de classes sociais é tão evidente quanto. Mas cabe entender as razões para tal opção de linha metroviária – construída dentro do PAC Mobilidade Urbana para cidades-sede da Copa do Mundo de 2014 – e quais seriam as alternativas.
Apartir do momento em que se selecionou um trajeto que demandava quase nenhuma desapropriação de terrenos privados e uma rara abundância de áreas para a obra, o projeto para esta linha 2 do metrô tinha mais opções do que restrições.
Caso a opção fosse por um metrô subterrâneo, não seria necessário um custoso “tatuzão”, como nas linhas 4 paulistana e carioca, ou soluções construtivas que não interferissem na superfície. Poderia ser usado o método mais tradicional de abertura de trincheiras(também conhecido pela alcunha anglicista cut and cover) que seriam depois recobertas. Isso permitiria a restituição de um parque linear a céu aberto na Paralela. Esse não foi o caminho escolhido, provavelmente, por argumentos aparentemente técnicos de custo e estudo do solo. Outra hipótese seria um meio-termo: a abertura de uma espécie de canal seco, não muito profundo e sem cobertura, para que os vagões transitassem abaixo do nível do solo, de modo mais discreto, sem afetar a paisagem na altura do olho do pedestre, o que permitiria transposições em nível e a integração entre as partes da cidade.
A opção, porém, foi fazer algo vistoso (nesse caso, no sentido de espalhafatoso). Os trilhos estão sobre viadutos que, por vezes, são atarracados junto ao solo e, por outras, se elevam sobre bacias d’água, ruas e avenidas. A escolha foi por infraestrutura e um gasto de concreto muito maior do que seria, caso a opção fosse a movimentação de terra preparação do terreno para pousar os trilhos, como num convencional trem de carga interurbano. Para além disso, o que chama atenção são as mastodônticas estações.
Projetadas pelo escritório JBMC Arquitetura e Urbanismo, as onze estações prontas variam entre dois projetos padrão. Mais próximas à região central de Salvador, as estações Acesso Norte, Detran e Rodoviária têm uma enorme cobertura em formato de paralelepípedo com inclinações e painéis com cores marcantes. As outras estações fazem-se notar por grandes coberturas semicilíndricas, cuja inclinação as divide em partes – assemelhando-se à carapaça de um tatu. A articulação entre a telha metálica do teto e sua estrutura em concreto pré-moldado demonstra uma involução em comparação à pesquisa construtiva de Lelé – seus componentes pré-fabricados em argamassa armada são encontrados nas passarelas da própria Avenida Paralela. As áreas internas das estações têm dimensões visivelmente maiores do que o mínimo necessário para o bom funcionamento.
Em uma análise geral, estações com essas características levantam questionamentos. Externamente, é evidente que estes equipamentos afetam a paisagem urbana soteropolitana: seria isto necessário? Qual é a razão de um impacto visual tão grande? Pensando no orçamento, as dimensões das estações e o tipo de construção dos trilhos nos levam a deduzir que os custos de execução foram altos – até aqui, não foram feitas análises comparativas entre os custos de uma versão subterrânea para o metrô e o que foi construído. Em última instância, cabe uma pergunta geral que é tão válida para uma parada do metrô de Salvador quanto para a estação Butantã, em São Paulo, e tantas outras pelo país afora: que tamanho deve ter uma estação de metrô?
Obviamente a resposta é relativa, mas o caso do metrô da cidade do Porto é esclarecedor de que tamanho não é documento. Tal como a capital baiana, a cidade portuguesa tem um centro histórico razoavelmente preservado e vívido, e grande parte da população habitando ao redor, em zonas urbanas construídas ao longo do último século e meio. As condições geográficas também guardam semelhanças: seguindo a mesma tradição lusitana de estabelecimento das cidades, ambas ocupam áreas próximas a àgua – o Rio Douro no Porto, o mar e a Baía de Todos os Santos em Salvador – e com topografias compostas por mais morrotes do que planícies. Outra semelhança está na idade das redes de transporte público sobre trilhos, ambas recentes.
As diferenças iniciam-se quando a empreiteira selecionada na cidade ao norte de Portugal designa um arquiteto para coordenar uma equipe interdisciplinar de desenvolvimento dos projetos da primeira fase do metrô portuense entre 1997 e 2005. Não era qualquer profissional. Era o português Eduardo Souto de Moura (1952), que mais adiante venceu o Prêmio Pritzker (o Nobel da Arquitetura) em 2011. “Aquilo foi um projeto de cidade. Foi a primeira vez em Portugal que o arquiteto dominou a infraestrutura para reabilitar a cidade”, disse-me Nuno Sampaio, diretor da Casa da Arquitectura, instituição que acolherá o acervo de projetos do Metro do Porto.
Há uma relação franca e respeitosa entre o metrô e a cidade. Na região central e histórica do Porto, o percurso se desenvolve abaixo do solo. Nas cercanias, os vagões seguindo sistema VLT transitam integrados às ruas com trilhos correndo em paralelo às faixas de carros e calçadas, com estações que mais parecem pontos de ônibus, de design caprichado. Ou seja, a opção foi o subsolo, em áreas cujo valor do patrimônio arquitetônico e do antigo traçado viário precisava ser preservado; e, em zonas mais recentes, os trilhos integram-se à cidade, sem construir muros.
As estações subterrâneas nas regiões centrais afloram da superfície com formas que se fazem perceptíveis, porém com grande sobriedade. Por exemplo, a estação da Casa da Música, em síntese, é uma grande laje plana de cobertura tanto para a escadaria de acesso ao metrô quanto para a estação de ônibus ao lado. Por sua vez, a estação do Bolhão tem a mesma altura da igreja vizinha. Ali também se faz uso de azulejos como uma alusão a esse mesmo templo e como uma releitura desse material tão típico das fachadas da cidade. Por fim, o arquiteto aproveitou o espaço de escavação durante a construção e criou uma praça com uma escadaria que estabelece um novo espaço público de conexão na cidade. Em suma, há um trabalho cuidadoso de Souto de Moura na integração da estação com o contexto urbano.
Os projetos escolhidos para as duas estações subterrâneas citadas ecoa nas várias outras da cidade. Não são projetos idênticos. Souto de Moura inclusive convidou outros arquitetos, como o também Pritzker Álvaro Siza, além de João Álvaro Rocha e Adalberto Dias, para desenhar algumas estações. Mas há uma coerência entre eles. Seja no uso interno de mais azulejos, seja nos blocos de granito que se tornam bancos para o descanso. Muito presente na geologia do Porto, essa pedra é ainda mais presente nos pisos. Não há catracas. O projeto gráfico composto por tipografias em linhas delgadas se integra bem com a alvura predominante nas paredes, pilares e vigas. Os corredores, escadas e plataformas têm um acerto preciso no dimensionamento, sem deixar margem para exageros espaciais. A acessibilidade para deficientes também foi bem garantida. As estações apresentam sutis diferenças entre si, mas o que encontramos é um conjunto que tem sua unidade na simplicidade e na austeridade dos projetos.
O arquiteto Daniel Fortuna do Couto, que estudou o metrô do Porto, vincula tais características a um rigor financeiro necessário a um país não tão abastado como Portugal: “O limite parece ser o da necessidade funcional associada ao controle financeiro do projeto. Em todo o percurso do metrô do Porto, a arquitetura de Souto de Moura transmite uma ideia de rigor compositivo ao qual se associa invariavelmente a ideia de rigor técnico e financeiro característica deste tipo de obra.”
Fato é que o metrô do Porto foi catalisador da recuperação urbana. Pois junto da construção dos trajetos por onde passariam as composições metroviárias, foram redesenhadas ruas, avenidas, praças – o espaço público. Não se pensou somente nas estações, mas também fizeram projetos para os caminhos dos cidadãos até elas – desenharam-se as calçadas para pedestres, reavaliaram-se faixas para carros, criaram-se bolsões de estacionamento em paradas mais longínquas a fim de desestimular a ida de veículos ao centro histórico. Diferentemente do que predomina nos casos brasileiros, o metrô do Porto não é fruto de um raciocínio tecnicista que usa como argumento o número de usuários, o espaço das catracas, a velocidade do veículo, e ignora o impacto no tecido urbano.
Não adianta fazer estações de metrô descomunais com formas extravagantes para chamar a atenção, como tem sido frequente na última década. No Brasil, o tamanho desses equipamentos de transporte público tem sido definido por uma combinação entre os valores de contrato de licitação com empreiteiras e ambições eleitoreiras – o raciocínio marqueteiro de que, quanto maior a visibilidade da obra pública, mais votos ela vale. Uma estação de metrô pode impactar sua vizinhança de diferentes modos: pode ser um berro estridente na paisagem urbana como em Salvador, ou uma precisa costura urbana como no Porto.