Por volta das cinco da manhã desta quarta-feira, 16 de janeiro, começou a circular nos grupos de WhatsApp bolsonaristas um vídeo com o título “Urgente e Gravíssimo”, postado no YouTube por Olavo de Carvalho, tido como guru da extrema direita brasileira. Os ataques do ensaísta, desta vez, não eram dirigidos à “petralhada” ou aos “criminosos da esquerda”, como ele se refere a seus adversários ideológicos, mas sim aos integrantes do Partido Social Liberal, partido do presidente Jair Bolsonaro. Carvalho foi implacável com os onze parlamentares do PSL, entre eles uma senadora, que foram em comitiva para a China a convite do governo daquele país para conhecer produtos da tecnologia chinesa, em especial o sistema de identificação de faces. “Esta viagem de meia dúzia de senadores e deputados do PSL à China para negociar o sistema de reconhecimento facial nos aeroportos… A firma que trata disso, a Huawei, é altamente suspeita”, afirmou no vídeo. “O seu representante foi preso na Polônia, no Canadá e nos Estados Unidos por espionagem. Instalar esse sistema é entregar ao governo chinês informações sobre todo mundo que mora no Brasil.”
Sem ouvir previamente os parlamentares, acusava-os de ignorantes e analfabetos funcionais. Entre os parlamentares do PSL que ele citava nominalmente estavam a senadora eleita pelo Mato Grosso do Sul Soraya Thronicke e a deputada eleita por São Paulo Carla Zambelli. Carvalho disse que a comitiva estava fazendo “uma loucura”, e os xingou. “Estão entregando o Brasil à China. Vocês são idiotas, meu Deus do céu? Bando de caipira, inclusive você Carla Zambelli. Já te apoiei muito. Se você não sair desse negócio não falo mais com você.”
O fogo amigo funcionou. Carvalho, da sua casa nos Estados Unidos, inflamou os grupos de WhatsApp de direita jogando-os contra os seus, até recentemente, aliados. Em poucos instantes, o vídeo se espalhou pelas redes e alcançou quase 500 mil visualizações. Insuflados por Carvalho, participantes dos grupos passaram a postar mensagens cada vez mais agressivas aos parlamentares viajantes. Os ataques sugeriam que alguns deles eram “comunistas infiltrados” na direita.
A senadora eleita Soraya Thronicke, ligada ao agronegócio, tentou se justificar em um dos grupos – e foi massacrada. “Aqui tem gente que vende para a China. Que rala na vida”, ela explicou. “Temos que vender para a China, e não nos vendermos para a China”, ouviu como resposta. Thronicke argumentou que o Brasil tinha negócios importantes com a China. Não convenceu. “Sei muito bem, senadora, mas estamos cansados de ser enganados por agentes de esquerda”, disse um dos integrantes do grupo.
O portal de notícias sul-matogrossense MorenaNews não aliviou. Postou uma foto do grupo seguida de um texto que insinuava relações de esquerda da senadora. “Voltando às origens: Soraya Thronicke e sua turminha esquerda caviar viajaram rumo à China.”
Também citada por Carvalho, Carla Zambelli postou um vídeo da China, no começo da manhã de lá, e avisou que defenderia sua posição. “Vou responder especificamente ao vídeo do Olavo. Vou esperar amanhecer o dia. Vocês estão com a cabeça focada no que o Olavo falou. Ele bateu no Bolsonaro e bateu em mim. Por que uma palavra do Olavo mudou tanto? Ele bateu no Bolsonaro por causa da CNN e bateu em mim por causa da China. Ele não sabe o que está acontecendo aqui. Eu também achava o que Olavo falou. Mas saibam: ninguém está falando em entregar o Brasil para a China.” E afirmou: “Sou muito mais brasileira que muita gente aí. Aliás, eu moro no Brasil, diferente de pessoas que estão nos criticando e moram há anos fora do Brasil.” Zambelli admitiu que Carvalho até a apoiara na eleição. Mas disse que a candidata que mais recebeu apoio de Carvalho foi Joice Hasselmann, com quem ela não mantém uma relação amigável. “Eu não devo a minha eleição a ele. Eu fui pra Israel, fiquei dez dias e ninguém bateu palma. E vou para a Coreia do Sul, que é o ápice do capitalismo no mundo. Alguém vai bater palma?”
A resposta não convenceu. Logo os grupos comentaram o vídeo de Zambelli. “Caramba, ela não diz coisa com coisa”, falou um integrante. “Será cera no ouvido, o baixo nível do entendimento?”, questionou outro. “Dona Zambelli acha que é obrigação da gente elogiá-la cada vez que ganha uma viagem internacional?” Outro a chamou de “deslumbrada”.
Mais tarde, por volta da 1 hora desta quinta-feira na China, fim da manhã no Brasil, Zambelli resolveu rebater mais detalhadamente os ataques feitos por Carvalho, em um novo vídeo, postado no Facebook. Com a expressão cansada, ela explicou a razão da viagem, disse que os deputados não tinham poder para fechar negócios e lembrou que a China é um importante parceiro comercial do Brasil. Dirigindo-se a Carvalho, lembrou-o de que ele foi contra o impeachment de Dilma Rousseff por achar que não daria resultado e que, à época, enquanto grupos de direita iam para as ruas pedindo a saída da presidente, ele esbravejava contra a estratégia de tirá-la do poder pelas vias constitucionais. Foi nessa época que Zambelli ganhou notoriedade, como uma das líderes do grupo Nas Ruas, em favor do impeachment da ex-presidente. “Professor, tentei falar com o senhor e não me atenderam. Lembra quando o senhor disse que o impeachment era um engodo e que tínhamos que fazer intervenção civil para botar ordem? Isso foi em 2015. Naquela época o senhor fez a mesma coisa que está fazendo agora, só que eu não era tão conhecida. Três anos se passaram, houve impeachment que você disse que era impossível, e Bolsonaro foi eleito, o que o senhor disse que não era possível. Vamos dar um pouquinho a mão à palmatória? Nem sempre o senhor está certo.”
O revide não demorou. Por volta das 15 horas, Marcello Reis, do Revoltados On Line, um canal de direita, e ex-marido de Zambelli, saiu em defesa de Carvalho e fez um vídeo com críticas virulentas à comitiva. Na gravação intitulada “Deputados e senadores do PSL, Bando de Comunistas?”, Reis não poupou ninguém, muito menos a ex-mulher. “Gente, vocês viram aí que o professor Olavo de Carvalho falou que vinte jumentos e jumentas deputados do PSL, o que é pior, foram pra China? Fazer o quê?” Com a expressão crispada, ele prosseguiu: “Ficamos oito anos aqui criticando a Dilma. Eu já tomei tiro dessa bandidagem. O que esse bando de jumento está fazendo na China? Querem trazer de novo o comunismo?” E alertou: “Carla, você sabe muito bem, porque é minha ex-mulher. Você está errada. Se você tentar trazer o comunismo vai ter resistência, e resistência revoltada.” Nos comentários de seu canal no YouTube, internautas o apoiaram, chamando Zambelli e os parlamentares do PSL de “traidores da pátria”. Um escreveu: “Meu Deus, quanta irresponsabilidade! Está cheirando a trairagem.” Até Carlos Bolsonaro se manifestou no Twitter, no fim da tarde, ao postar uma montagem de Zambelli empunhando uma bandeira do país comunista.
À tarde, o caso era um dos assuntos mais comentados nas redes sociais e portais de notícias. O Direita São Paulo, soltou uma nota oficial condenando a viagem. O PSL tratou de se explicar dizendo que nem o presidente Jair Bolsonaro nem o partido tinham conhecimento da viagem. Integrantes dos grupos então fizeram circular o convite formal da embaixada da China ao PSL, em carta timbrada, no dia 15 de novembro de 2018. O convite informa que as despesas seriam pagas pela República Popular da China e que a embaixada chinesa “aproveita esta oportunidade para reiterar à Comissão Executiva do PSL, os protestos da sua alta estima e consideração”.
Por volta das 16h30, o deputado Luciano Bivar, presidente do partido, repetiu, na rádio Jovem Pan, que nem ele nem Bolsonaro sabiam da comitiva, mas tentou amenizar, dizendo que estavam “fazendo tempestade em copo d’água” em torno do assunto. No início da noite, Marcello Reis me disse, pelo celular, que discorda de Bivar. “Gato escaldado tem medo de água fria.” E afirmou que a viagem de parlamentares brasileiros a um país comunista era “um risco para o Brasil”. Reis prometeu que fará uma oposição acirrada contra os que tentarem trair o Brasil. “Eles [da esquerda] me quebraram todo tentando me parar e não conseguiram. Não é minha ex-mulher que vai me parar”, afirmou.
Inflamado, Reis afirmou que muitos dos deputados que entraram no PSL eram “oportunistas”, e que “não têm bom caráter”. Avisou que os movimentos de rua farão uma fiscalização rigorosa sobre essas pessoas. “Somos os fiscais do governo”, disse. “Os petistas passam a mão na cabeça de quem faz as besteiras. Nós, da direita, não fazemos isso. Não temos bandido de estimação. Se esses deputados saírem dos trilhos nós vamos para as ruas e tiramos eles de lá na marra.” Finalmente, criticou a intenção de Zambelli de ir à Coréia do Sul, Israel e Estados Unidos. “Quando é que eles vão trabalhar? Ou vão só ficar fazendo turismo?”
Com a confusão provocada nas redes, Olavo de Carvalho, que andava se sentindo relegado pelo governo, voltou à cena de forma ruidosa. Na semana passada, ele fez um desabafo na sua página na internet dizendo que não tinha como responder sozinho aos ataques da imprensa contra ele. “Imaginem o custo da assessoria jurídica que eu precisaria ter para levar essa multidão de hienas a responder na Justiça pelos crimes que têm cometido contra mim”. Os “autores dessa monstruosidade”, continuou ele, “partem da premissa de que sou o guru do governo Bolsonaro e daí concluem que, emporcalhando a reputação do guru, derrubarão o governo”. E termina com uma queixa. “Curiosamente ninguém no governo, até agora, disse uma única palavra em minha defesa.”
Os ataques entre integrantes do governo e apoiadores do presidente já viraram rotina, com fogo amigo praticamente diário. Letícia Catelani, ou Letícia Catel, que foi destituída do cargo de secretária-geral do PSL de São Paulo pelo Major Olímpio, alegando que ela “não se submetia ao comando do partido”, foi uma das que sofreram ataques de correligionários. Muito próxima a Carvalho, ela ocupa uma diretoria na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, a Apex, agência governamental de incentivo ao comércio exterior, e foi acusada nesta semana, por fontes do governo, de se aproveitar do cargo em causa própria, já que é empresária na área de importação. A amigos ela reclamou dos ataques e disse que todos conhecem a sua integridade. Outro a sofrer ataques é Filipe Martins, assessor internacional de Bolsonaro e amigo de Catel. A suspeita é de que parte dos ataques a ela, por meio de notas na imprensa, tenham vindo de Gustavo Bebianno, ministro da Secretaria-Geral de Governo de Bolsonaro. Foi ele quem mandou demitir Catel da secretaria do PSL, disse o Major Olímpio, em uma entrevista para a piauí em novembro.
Bebianno nunca teria se conformado, segundo amigos da empresária, com o fato de ela ter tirado Bolsonaro da Santa Casa em Juiz de Fora e o levado para o Hospital Albert Einstein. Ele defendia levá-lo para o Sírio Libanês. Já Filipe Martins costuma ser tachado de “imaturo” para ocupar o cargo, por generais próximos de Bolsonaro. No caso de Carvalho, depois da confusão armada com a viagem dos parlamentares do PSL à China, escreveu na sua página que o chamavam erroneamente de guru do governo. “Não sou guru dessa porcaria.”