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Olhos voltados para o mercado internacional

Filme de diretor americano rodado em morro carioca explicita abismo entre realidade e ilusão do cinema

Eduardo Escorel | 10 ago 2022_09h00
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Pacificado estreará no Brasil amanhã (11/8), após vitorioso percurso por diversos festivais, iniciado ao receber no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián, em setembro de 2019, os prêmios de Melhor Filme, Melhor Ator (Bukassa Kabengele) e Melhor Fotografia (Laura Merians). Seguiram-se outras láureas, entre as quais, no mês seguinte, a de Melhor Filme de Ficção Brasileiro, atribuída pelo público na 43ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, e as de Melhor Filme, Melhor Atriz (Cássia Nascimento Gil, atriz estreante) e Melhor Diretor (Paxton Winters), no Festival Internacional do Novo Cinema Latino-americano de Havana.

Chegando só agora aos cinemas, porém, é mais um filme da era a.P. (antes da pandemia) vítima das circunstâncias que atrasaram seu lançamento e causa certa estranheza ao ser visto por não fazer, naturalmente, menção à tragédia humanitária causada pela Covid-19. Deslocado no tempo, parece meio fora de lugar.

O diretor é um cineasta americano bissexto dotado de enorme disposição – Silk Road ala Turka, primeiro documentário de Winters, foi realizado durante os quinze meses da viagem de uma caravana de camelos através da China, Quirguistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Irã e Turquia. Crude, seu primeiro longa-metragem, é de 2003. O terceiro, feito após longo intervalo, é Pacificado, de cujo roteiro Winters também é autor.

Produzido pela empresa brasileira Reagent Media e distribuído pela Twentieth Century Fox, contando entre os produtores com o prolífico Darren Aronofsky, diretor entre outros de Mãe!, Noé e Cisne Negro, o projeto do filme Pacificado e o título em si tiveram origem a partir da vinda de Winters ao Brasil. Fazendo reportagens como cinegrafista, antes da Copa do Mundo de 2014, ele “filmava muito nas favelas, para além de outros locais sobre a chamada ‘pacificação’”, conforme disse em sua entrevista dada em San Sebastián, publicada no site C7nema. A pacificação, no caso, refere-se às UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora – criadas no Rio de Janeiro, a partir de 2008, com o objetivo declarado de tirar o controle das favelas de facções criminosas. O modelo de policiamento comunitário proposto seria baseado na proximidade e no diálogo com os moradores.

A relação estabelecida com Wellington Magalhães, morador da comunidade Morro dos Prazeres, localizada no bairro de Santa Teresa, permitiu que ele fizesse suas reportagens na área pela qual Winters afirma ter ficado “fascinado”. Quando pensou em voltar para a Turquia porque os aluguéis estavam muito caros antes da Copa, recebeu oferta de um lugar para morar na comunidade. Recusou, a princípio, pois “não queria ser um daqueles ‘gringos’ que se mudam para ali”. Mas, ao refletir sobre a razão de não ter aceitado, concluiu que foi “porque tinha medo”. Acabou alugando a casa oferecida durante cinco meses. Passado esse tempo, “já adorava” o Morro dos Prazeres, diz Winters. “Era uma relação muito próxima, as pessoas perguntavam sempre se eu precisava de alguma coisa e até podia deixar a porta e as janelas abertas sem medo. Acabei por ficar a viver lá três anos e depois desse tempo, como já tinha dado formação a jovens para filmarem as suas próprias histórias”, ele e Magalhães decidiram fazer curtas-metragens, mas sem pretender mostrar a alguém. Foram esses curtas que levaram Aronovsky e a produtora americana Lisa Muskat a pedir que lhes mandassem um roteiro e “cenas em modo de teste com os jovens atores” a partir das quais o projeto veio a se concretizar com a adesão dos produtores Paula Linhares e Marcos Tellechea, da Reagent Media.

A descrição dessa trajetória para viabilizar a realização de Pacificado indica ter sido feita, ao menos em parte, com os olhos voltados para o mercado internacional, sendo bem-sucedida até o momento no âmbito dos festivais de cinema. Para o espectador brasileiro, no entanto, tem pouca novidade a apresentar. No circuito de salas de cinema fora do Brasil, salvo engano, ainda não foi lançado.

Desde o início, as dificuldades enfrentadas para conseguir fazer o filme não foram pequenas. Nos Estados Unidos, alegaram que não poderia ser falado em português. Em São Paulo, uma produtora recusou o projeto por ser “mais um filme-favela”. “A violência de Cidade de Deus e de filmes que se seguiram”, segundo Winters, “e que eram bastante violentos, capitalizando toda essa violência”, complicaram as coisas. Mas, ao menos para ele: “a principal diferença entre esses filmes e o nosso é que no processo de construção da história eu me mantive calado e procurei ouvir o que as pessoas me diziam. Muitos me disseram que as suas histórias não eram bem representadas nesses filmes, por isso lhes perguntei como as devia contar. Que histórias tinham eles para contar? E como as devemos contar? No essencial, foi um processo de construção do roteiro muito colaborativo, muito orgânico. Ouvia as pessoas, fazia muitas perguntas e escrevia. Contratamos gente da comunidade para trabalhar conosco em todos os departamentos da produção do filme, desde as câmeras à direção artística.”

As declarações de Winters revelam um cineasta bem-intencionado, embora um tanto deslumbrado. Para escrever a história a ser filmada, ele contou com a colaboração de Magalhães e de Joseph Carter, que também seria morador do Morro dos Prazeres. “Todos os figurantes são da comunidade”, assim como a protagonista estreante (Cássia Gil). Winters considera que “Pacificado é um filme muito honesto”. Para ele, “um dos principais objetivos na produção era não glorificar a violência, o objetivo era definir como mostrar a violência de forma a que as pessoas que vivem lá se identificassem com essas experiências – que são dramáticas e traumáticas, mas também mundanas e constantes… Era importante fugir dos estereótipos e tentar construir personagens reais. Ajudou muito eu ter vivido lá aqueles anos todos e conhecer a complexidade das personagens. Eram pessoas com os mesmos problemas que muitos outros. Era gente real”.

Cássia Nascimento Gil interpreta Tati no filme – Foto: Divulgação

Há, de fato, a tentativa de tomar a realidade como princípio orientador. A começar pela legenda de abertura que define o período exato em que a ação do filme ocorre – o do chamado programa de pacificação – e, de modo ainda mais explícito, o prólogo que se passa no dia da cerimônia de encerramento da Olimpíada do Rio, em agosto de 2016. Essa busca de realismo é acentuada pelo fato de a história ser inspirada em experiências reais e a encenação feita em locações na comunidade Morro dos Prazeres.

Paradoxal, porém, é o fato de algumas de suas virtudes introduzirem no filme um componente glamourizado, típico do grande espetáculo – narrativa bem conduzida e articulada; alta qualidade do elenco principal, inclusive Débora Nascimento no papel de Andrea, mãe de Tati (Cassia Gil); excepcional direção de fotografia. O contraste entre a encenação ficcional e a única breve cena que ao menos parece ser documental, ou então é filmada como se fosse, acentua o paradoxo entre os dois estilos contrastantes – passados três quartos do filme, durante menos de um minuto vemos policiais em confronto armado nos arredores do Morro dos Prazeres, e o espectador se vê diante do abismo que separa a realidade da ilusão do cinema.

Após cumprir 14 anos de prisão, Jaca (Bukassa Kabengele) é solto e volta para a comunidade, onde é pressionado pelos moradores a reassumir sua antiga liderança. Ele se nega, porém, a retomar a posição que tinha até ser preso e é chamado de covarde – essa é a principal vertente narrativa de Pacificado. Quando se ouve o início do tiroteio entre a polícia e os traficantes, até Dona Preta (Léa Garcia), avó de Jaca, pergunta: “Cadê a tua coragem?” Em resposta, ele diz: “Nunca tive coragem, mas nunca tive medo, vó…Porra!… Eu só quero viver.” E para conseguir ficar vivo recusa ser o herói que todos desejam.

Bukassa Kabengele interpreta Jaca no filme – Foto: Divulgação

*

Destaque (IV)

“A avaliação da qualidade de uma narrativa ficcional não depende de ser ou não verdadeira, mas de ser esclarecedora. Da mesma forma que no caso de qualquer outra obra de arte, interpretar é uma questão para o observador, não apenas para quem comenta,… Sabemos que, sejam quais forem os eventos descritos em um romance político como 1984 de George Orwell…, a qualidade da obra depende, em primeiro lugar, da elegância que se percebe na narrativa e, em seguida, da eficácia e poder de persuasão do argumento implícito.” John Kay e Mervyn King, Radical Uncertainty – Decision-Making Beyond the Numbers. Nova York: W.W. Norton&Company, 2020. p. 226.

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