À medida que nos aproximamos do dia do segundo turno da eleição presidencial, tudo mais parece cada vez menos relevante. Tivemos o 24º Festival do Rio, de 6 a 16 de outubro, concorrendo pela nossa atenção com as demandas da campanha eleitoral. Tendo optado por retomar apenas sessões presenciais, deixando de lado a possibilidade de acesso via plataforma de streaming, o Festival restringiu seu alcance a um seleto grupo de pessoas com grande disponibilidade de tempo e limitou a repercussão dos filmes exibidos.
Na sexta-feira (14/10), a pesquisa Datafolha manteve os mesmos percentuais da semana anterior – 49% dos votos totais para o ex-presidente e 44% para o incumbente. A estreita margem de cinco pontos percentuais que separa os dois candidatos manteve a incerteza quanto ao resultado final. Um por cento de indecisos, votos brancos e nulos, índice de abstenções, além de a campanha em si e possíveis imprevistos, recomendam cautela ao fazer previsões quanto ao desfecho, mesmo 93% dos entrevistados afirmando que a sua opção de candidato será mantida.
A leitura de A Insurreição Permanente, artigo de Miguel Lago publicado na piauí deste mês, permite antever cenários possíveis dependendo de quem for eleito, todos dignos de um filme-catástrofe. Mesmo se o incumbente for derrotado no próximo dia 30, “teremos que conviver com essa nova realidade, que permanecerá com ou sem governo Bolsonaro”, escreve Lago. Segundo o cientista político, “uma revolução está em marcha. Deixamos de viver na normalidade democrática. Aquilo que entendemos como aceitável dentro do jogo político se expandiu. Todos os marcadores de certeza, as fontes de legitimidade e as vozes de autoridade viraram fumaça”. Para Lago, “derrotar o bolsonarismo deve ser a obsessão política dos próximos anos, comum a todos os democratas – de direita, centro ou esquerda”.
No sábado (15/10) à tarde houve oportunidade de fazer uma pausa, esquecendo por uma hora e meia as aflições resultantes da campanha eleitoral para assistir pela televisão à partida final do campeonato mundial feminino de vôlei entre Brasil e Sérvia, em Apeldoorn, na Holanda. O time favorito, invicto na competição, jogou muito bem, venceu por três sets a zero e se tornou bicampeão. Ao adversário coube o honroso título de vice-campeão. No intervalo entre o segundo e o terceiro set, os telespectadores da Globo tiveram o desprazer de assistir a um comercial de campanha do incumbente em que ele interpreta o papel de político modesto e termina dizendo: “… Se as minhas palavras estão te impedindo de fazer a escolha certa, eu humildemente te peço perdão.” Ver o lobo devorador em pele de cordeiro foi chocante, mas provou, se ainda fosse preciso, que a tapeação da propaganda política não tem limite.
Ainda no sábado, pouco depois da partida de vôlei, foi divulgado um ataque a tiros à sede do diretório do PT, na Zona Oeste do Rio, ocorrido no domingo anterior (9/10), quando não havia ninguém no local. A bala atravessou o portão e atingiu uma parede interna. O UOL informou à noite que imagens de câmeras de segurança mostram um motociclista atirando contra a sede. Mais um episódio do que já foi chamado de “a guerra nada santa” em curso.
Domingo à noite (16/10), no primeiro debate presidencial do segundo turno, realizado na Band, a campanha eleitoral em si voltou ao centro das atenções. O novo formato foi elogiado. Os candidatos puderam se deslocar pelo palco e se aproximar um do outro, a ponto de o incumbente insistir em pousar a mão no ombro do ex-presidente, o que é de todo descabido. Quanto ao resultado geral, parece ter sido equilibrado. Lula, melhor na primeira parte, tratando da pandemia, enquanto o incumbente teria se saído bem na segunda metade, ao fazer acusações de corrupção. Nada sugere, porém, que o debate possa ter causado alteração significativa na posição dos adversários. Caso essa avaliação esteja correta, a agonia quanto ao desfecho persistirá nos próximos dias.
A sucessão de eventos políticos, um criminal e outro esportivo, somados a compromissos profissionais, deixaram pouco tempo para assistir aos filmes exibidos no Festival do Rio. Circunstância agravada por continuar relutante em frequentar salas de projeção rodeado de seres humanos, em algumas das quais, pelo que foi comentado, a qualidade da projeção e do som estava precária.
Fui salvo pela gentileza de três colegas que mandaram links de acesso aos seus filmes. Assim, pude rever Tekoha, de Carlos Adriano, e assistir pela primeira vez a Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, de Pedro Bronz, e Kobra Auto Retrato, de Lina Chamie, documentários de 2022 mui dissemelhantes, mas que guardam em comum serem, por razões diferentes, projetos corajosos que lidam, em um caso, com o que o Brasil tem de pior, e nos dois outros, com aspectos do que tem de melhor.
Tekoha participou do Festival do Rio na mostra Première Brasil: O Estado das Coisas, após estrear em abril no 27º Festival É Tudo Verdade e ter sido exibido de lá para cá em outros festivais. O curta-metragem de 14’42” reafirma o raro talento de Carlos Adriano para conjugar com maestria linguagem inventiva refinada e empenho político. Trata-se da guerra de extermínio em vigor no país, nesse caso movida contra os Guarani Kaiowá, na Reserva de Dourados (MS). A intolerância, comentada aqui há uma semana a propósito de Fé e Fúria, manifesta-se em Tekoha através da ação de seguranças privados de fazendeiros e de membros de uma igreja pentecostal – uns queimam uma casa familiar, os outros uma casa de reza. Tekoha, como o filme ensina, quer dizer “lugar onde se é. Para os Guarani Kaiowá, é a definição de terra indígena, território étnico e vital”.
Trabalhando a partir de dois registros gravados pelos próprios Guarani Kaiowá, o primeiro de 2’52” e 4 frames, o segundo de 51” e 13 frames, Adriano reelabora ambos e cria configurações visuais abstratas, sem abrir mão de mostrar as origens documentais das duas gravações. À montagem visual e sonora inventiva é agregada informação contundente. Por meio de legendas se tem notícia de que em “28 de outubro de 2018, à noite, quando se confirmou a eleição” do atual incumbente “como presidente do Brasil, quinze pessoas Guarani Kaiowá foram feridas por disparos com balas de borracha e de gude. Desde tal data, ações violentas contra indígenas tornaram-se intensas e sistemáticas”.
Exibido fora de competição na Mostra Première Brasil, Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, com direção e montagem de Pedro Bronz, creditado também pela fotografia e câmera adicionais, é uma extensa e valiosa antologia de gravações, em alguns casos apenas de áudio, da carreira de Beth Carvalho (1946-2019). Integram esses registros alguns feitos pela própria cantora ou a seu pedido e outros provenientes de acervos familiares e públicos. Vídeos pertencentes ao acervo da Globo e algumas gravações originais, feitas especialmente para o documentário, completam o conjunto audiovisual reunido.
É natural que um acervo de origem tão diversificada como esse, cobrindo algumas décadas e incluindo registros amadores, apresente imagens e áudios defeituosos. Ao incluir gravações aquém do alto padrão usualmente requerido, o projeto sobrepõe o valor documental às exigências técnicas e ganha com isso um de seus principais atrativos – a informalidade que se harmoniza à perfeição com as situações apresentadas.
O tom descontraído resta definido desde a sequência de abertura do documentário, que é um de seus vários pontos altos – Beth Carvalho chega ao minúsculo bar Bip Bip, em Copacabana, repleto de frequentadores, e encontra Mário Lago, enquanto um grupo toca samba. Outros destaques são as cenas com Nelson Cavaquinho, Cartola e os bastidores de gravações no estúdio, para mencionar apenas algumas.
No comício das Diretas Já, na Candelária, em abril de 1984, Beth Carvalho entra em cena e canta Virada, de Noca da Portela e Noguinho, ao lado de Brizola, Montoro e Tancredo, além de outros políticos: “O que adianta eu trabalhar demais, se o que eu ganho é pouco,/… vamos lá rapaziada, tá na hora da virada vamos dar o troco./…”
Enquanto vemos imagens do comício, a artista e cidadã Beth Carvalho, crítica do elitismo da Bossa Nova, é clara em voz off: “… Eu vivo a vida de meu país e por que eu não posso dar a minha opinião? Eu posso dar… Eu falo aquilo que eu penso para as pessoas em quem eu acredito. Por que eu acredito nessas pessoas? Porque essas pessoas estão preocupadas com o povo brasileiro.”
Exibido em competição na Mostra Première Brasil, Kobra Auto Retrato, com roteiro, direção e montagem de Lina Chamie, é uma exuberante e refinada festa visual e sonora, editada com criatividade e esmero. O documentário talvez possa ser definido, em poucas palavras, como o retrato do artista quando jovem feito durante sua longa jornada noite adentro. Sentado diante da câmera de olhos fechados e iluminado com luz roxa, Eduardo Kobra, “um dos artistas de rua mais famosos do mundo”, conforme a página do filme no site do Festival do Rio, está de costas para o fundo inicialmente preto, depois monocromático, ganhando em seguida cores e padrões geométricos. Na abertura, após o preto total na tela e o asfalto escuro que surge passando com reflexos de luz noturna, segue-se à introdução musical a voz em off de Kobra que conduz a narrativa na primeira pessoa: “Passo minhas madrugadas desse jeito. Quando eu durmo muito bem, eu durmo duas, três horas, assim. Quando o remédio faz efeito.” Oitenta minutos de projeção depois, após a claquete de fim, o mesmo plano inicial de Kobra é repetido. Ele abre os olhos e olha diretamente para a lente da câmera, vindo a seguir o título em letras garrafais sobre fundo preto que ocupam toda a altura do quadro.
O que parece estar sendo sugerido é que todo o documentário se passa num piscar de olhos ou enquanto o artista está dormindo. Ideia que favorece grande liberdade em termos narrativos e de montagem.
Se o título é inequívoco quanto ao filme se propor a ser um autorretrato, para Kobra esse é um projeto inédito, conforme deixa claro de saída e reafirma a meio caminho do fim (“Não há mérito em ser retratado por alguém e não penso em autorretrato”, ele afirma). Não resta dúvida por outro lado que se trata também de um retrato de São Paulo, de sua configuração urbana e suas variadas edificações. No percurso do artista de bicicleta pela cidade os planos se tornam subjetivos, assumindo seu ponto de vista enquanto ele parece mapear possíveis lugares para pintar seus painéis.
Notável história de superação no plano pessoal, familiar e artístico, Chamie trata seu personagem com objetividade, sem deixar prevalecer indícios ufanistas ou de sentimentalismo.
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A Embaúba Play oferece sem custo a Mostra Embaúba Cinema e Política desde 15 de outubro até o próximo dia 30. Sete filmes brasileiros inéditos em plataformas de streaming ficarão disponíveis no site embaubaplay.com durante o período do segundo turno das eleições presidenciais, “de forma a contribuir com o debate político através de produções audiovisuais que tratam de questões urgentes no contexto brasileiro”. Serão exibidos Estamos te Esperando em Casa (Cecília da Fonte e Marcelo Pedroso, 2021); Lutar Lutar Lutar (Sérgio Borges e Helvécio Marins Jr, 2021); Brizolão (Jéferson, 2021); Quem Tem Medo? (Ricardo Alves Jr, Henrique Zanoni e Dellani Lima, 2022); Entre Nós Talvez Estejam Multidões (Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, 2020); Pão e Gente (Renan Rovida, 2020); Os Grandes Vulcões (Fernando Kinas e Thiago B. Mendonça, 2021).
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Destaque (XIV):
“O que pode fazer a rotina, a marcha cuidadosa e educada das consultas profissionais diante do terremoto que está sacudindo o cinema? Convocar com urgência um conselho de crise parece ser a substância do apelo lançado por um coletivo informal de personalidades do setor, cuja maioria tem origem na produção independente… Uma iniciativa concebida como meio de pressão sobre o poder público para provocar, a longo prazo, a reunião dos estados gerais do cinema. Exprime-se dessa maneira a necessidade de que o Estado renove seus compromissos com o cinema… Tudo isso alimentando uma ladainha cada vez mais desinibida segundo a qual o cinema francês, no fundo, seria um velho vacilante e mimado, ultrapassado pelo desejo do público, ultrapassado pela investida de ‘conteúdos’ espetaculares, competitivos, fabricados pelos novos operadores ultradinâmicos que são as plataformas americanas.” Sandra Onana, “Le cri d’alarme d’un cinéma en crise” (O grito de alarme de um cinema em crise – qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência), Libération, 5 de outubro, 2022. (tradução por minha conta. EE).