Marquinhos tinha 18 anos, um filho de 10 meses em casa, uma pistola de 9 mm na mão, e uma pena de morte a receber. Estava sozinho na entrada da Nova Holanda, na rua Teixeira Ribeiro, principal centro de comércio dessa cidade de 140 mil pessoas chamada Maré. Era o primeiro nível da “contenção”, defesa criada para proteger os chefes, as armas, e a cocaína cheirada do Leme ao Pontal. Com ombros finos como os de um menino, o jovem criado pela avó parecia ser ainda mais novo. Era uma noite quente, as pessoas estavam na rua, havia catorze bares e lanchonetes abertos, duas farmácias e também uma barraca de frutas que funciona 24 horas. No Rei do Baião, amigos bebiam a saideira, casais jantavam com filhos pequenos, cachorros reviravam lixo no meio-fio. Era 00h35 quando três caveirões com policiais do Bope arrancaram em velocidade da avenida Brasil para dentro da favela, pela rua onde bate o coração da Nova Holanda. Deram de frente com Marquinhos, na calçada da Casa do Biscoito: negro, boné preto, chinelo nos pés, pistola na mão. A sentença: um tiro de fuzil na barriga.
Marquinhos, como era conhecido Marcos Paulo Fernandes Mota, entrou tarde no tráfico, em comparação com alguns amigos e um de seus primos – que trocou sua foto de perfil no Facebook por uma imagem do morto. Muitos se surpreenderam quando ele começou a trabalhar no varejo das drogas. “Era bobo”, diz uma amiga de sua mãe. “A Grace, mãe dele, tem problemas mentais, vive com ajuda das pessoas, por isso ele foi criado pela avó.” Marquinhos morreu primeiro naquela terça-feira, dia 6 de novembro. Outras três pessoas morreriam em seguida em duas das dezesseis favelas – Nova Holanda e Parque União – que formam o Complexo da Maré, e foram nove os feridos. Um dos baleados acabou morrendo três dias depois no hospital, totalizando cinco óbitos.
O Rio amanheceu com a notícia dos mortos na Maré. Em muitas casas da Zona Sul e da Zona Oeste, as pessoas ficaram sabendo da operação antes de lerem o noticiário online, avisadas por babás e empregadas domésticas que estavam confinadas dentro de casa pelo tiroteio. Quando a paraibana Paula Silva, 27 anos, tentou sair para trabalhar – ela cuida de uma criança no Leme, a 20 quilômetros de distância –, as ruas estavam em silêncio, mas havia um policial do Bope encapuzado no portão de sua casa, no Parque União. “Sobe, sobe, sobe”, ele ordenou. Suas duas filhas não foram à escola – as aulas foram canceladas. O marido, motorista de ônibus, conseguiu sair às 3h – seu turno começa às 5h – vestindo o uniforme da empresa, para não ser confundido com traficantes. Paula está há quatro anos na Maré, e não pensa em sair: “Aqui é um bom lugar, melhor que minha cidade na Paraíba. Se não fosse tanta morte, seria perfeito.”
Em um posto de gasolina perto da passarela 9, na avenida Brasil, o Major Ivan Blaz, porta-voz da Polícia Militar do Rio de Janeiro, tentava explicar aos jornalistas – desta vez, a uma repórter da TV Record – a operação da madrugada. Havia dois anos que a PM não entrava assim nas comunidades, desde que uma liminar foi concedida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro impedindo o cumprimento de mandados de busca e apreensão durante a noite. A Defensoria Pública assegura que a operação foi ilegal, por desrespeitar a liminar. Satisfeito, o major negou desrespeito à decisão dizendo que não foi cumprido nenhum mandado em casa de morador – os policiais não tinham mandado nenhum. E contou que foi preciso agir rapidamente, pois a inteligência da PM obteve informações de que haveria uma reunião secreta de traficantes (do Comando Vermelho), inclusive com lideranças de outras cidades do estado. “Nesse momento, estamos encerrando a operação, as tropas já estão saindo do local”, disse Blaz. “O fato é que a ação que era protagonizada pelos marginais e foi dissuadida, ou seja, a reunião que tinha como objetivo fazer outras ações de terror no Rio foi impedida pela atuação da Polícia Militar.” Procurado, Blaz não quis atender a reportagem.
Segundo a Rede Globo, ninguém da Polícia Civil, corpo investigativo da segurança pública fluminense, sabia dessa reunião. A operação não conseguiu prender nenhum chefe do tráfico que estaria na reunião, embora os policiais tenham permanecido 17 horas na Maré. A versão oficial da PM foi diferente do que o Bope publicou em sua conta do Instagram, com a operação ainda em andamento: “Durante patrulhamento na comunidade, os policiais foram atacados por criminosos armados que efetuaram disparos contra os agentes. Houve confronto”, diz o texto, sem dar a entender que se tratava de uma operação planejada. Os cachorros do Batalhão de Ações com Cães (BAC) encontraram 820 quilos de drogas – de cocaína eram aproximadamente 12 quilos. “Os cães, com o faro, conseguem identificar armas e drogas, coisa que um ser humano não consegue fazer, principalmente durante a madrugada”, acrescentou o major, antes de fazer sua avaliação final. “Nesse momento a ação está sendo bem-sucedida.”
Não é a primeira vez que uma ação com mortos é considerada exitosa pelas forças policiais do Rio. No dia 15 de julho deste ano, PMs que participaram de uma operação que deixou cinco mortos no Complexo do Alemão foram chamados de “heróis” pela corporação nas redes sociais. “Estes são nossos guerreiros, nossos heróis! Foram eles que retiraram das mãos de criminosos da mais alta periculosidade dois fuzis de guerra, duas pistolas e uma granada”, diz a mensagem. “Somente nessa ação, quantas vidas eles ajudaram a salvar?”, indaga. Dias antes, uma outra operação na Maré matou um estudante a caminho da escola – Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos. Foi considerada “de grande êxito” pela Polícia Civil em um relatório. A operação do dia 20 de junho, além do adolescente, resultou em outras seis mortes em circunstâncias não esclarecidas. Sua missão era de prender 23 investigados por tráfico de drogas. Em duas horas e quarenta minutos (14 horas a menos que a operação do dia 6 de novembro), nenhum deles foi encontrado. “A diferença, neste caso, é que a Polícia Civil fez essa análise (de êxito na operação) em um relatório escrito apresentado em juízo”, afirma Daniel Lozoya, defensor público do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, que atua no estado do Rio, e foi o principal crítico do documento. Produzido pela Subchefia Operacional da Polícia Civil, comandada pelo delegado Gilberto da Cruz Ribeiro, que chefiou a corporação entre 2007 e 2009, o documento entregue à Justiça refere-se a Marcos Vinícius como “uma pessoa baleada e já socorrida no hospital”.
A questão semântica está mesmo no coração da segurança pública do Rio. A última é o novo nome para os autos de resistência, termo que as autoridades imaginavam ser possível enterrar quando instituíram a expressão, mais difícil de decorar, “homicídios decorrentes de intervenção policial”. Agora, as estatísticas se referem a “mortes por intervenção legal”. A palavra “legal” parece autorizar as mortes cometidas pelo estado. Os últimos dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que houve 127 autos de resistência em outubro – 30% a mais no estado em relação ao mesmo período do ano anterior (na Grande Niterói, o aumento é de 67%; na Baixada Fluminense, de 55%). No acumulado de janeiro a outubro, já são 1 308 autos de resistência. Desde que a série histórica começou a ser medida e divulgada, em 2003, somente em 2007 houve mais casos que agora: 1 330 mortes. Se mantiver a média atual, superior a quatro óbitos por dia, o Rio vai chegar ao Réveillon com um trágico recorde: mais de 1 500 autos de resistência.
As operações policiais, como a da madrugada do dia 6 na Maré, são como o trailer de um filme que o Rio assiste em reprise e que, a partir de 2019, quando o governador eleito Wilson Witzel assumir o controle das polícias, deve ficar em cartaz permanente. Um dos assessores de imprensa do governador durante a transição respondeu que ele não daria entrevista à piauí para não parecer “comentarista de segurança”. Ao jornal O Dia, naquela terça-feira, após receber a medalha Juiz Federal Luiz Eduardo Pimenta, por serviços prestados à magistratura, Witzel comentou a operação da seguinte forma: “Qualquer um em desacordo com a lei tem que ser punido.” Durante seu discurso, também falou que “ninguém vai sair por aí matando ninguém, mas os criminosos não podem ficar sambando na cara da sociedade”. As afirmações corroboram que Witzel poderá aceitar assassinatos por agentes públicos como forma de punição a quem estiver “em desacordo com a lei”.
Um desavisado, ao ouvir essas declarações, pode pensar que as polícias fluminenses matam pouco. No ano passado, as forças de segurança do estado mataram 1 127 pessoas – número mais alto desde 2008, quando o índice começou a cair com as Unidades de Polícia Pacificadoras. Durante a era das UPPs, as mortes em confrontos com policiais caíram para 416 em 2013. A partir daí, voltaram a subir sem controle.
Segundo a Anistia Internacional, os homicídios durante operações representam 25% de todas as mortes violentas intencionais na capital – 527 óbitos em um universo de 2131 mortes violentas.
Segundo o Atlas da Violência 2018, o Rio é o estado brasileiro onde as polícias mais matam. No ano de 2016, o último analisado no atlas, ocorreram 925 homicídios no estado. Em São Paulo, foram 856; na Bahia, 457; no Pará, 282; em Minas, 112. Entre 2006 e 2016, foram 3 301 mortes por policiais no Rio. Uma a cada 30 horas. Uma operação da Polícia Federal de combate ao tráfico de drogas perto de escolas, deflagrada uma semana depois da invasão noturna na Maré, prendeu 623 pessoas e apreendeu 122 adolescentes em todo o país. Duzentas e setenta e nove prisões foram em flagrante. Quase 400 armas de fogo foram apreendidas. Ninguém morreu.
“Em nenhum país desenvolvido a polícia entra numa operação, mata cinco e diz que foi um sucesso”, afirma Samira Bueno, doutora em administração pública e diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Nunca foi esclarecido, pelo núcleo de comando da intervenção federal no Rio, o objetivo da intervenção, e quais são os indicadores de monitoramento para avaliarmos o sucesso ou fracasso da iniciativa.” O que é mais complexo, segundo Samira, é que a intervenção “custa alguns milhões, sem nenhuma transparência da parte do Exército”.
Samira conta que, quando iniciou o levantamento para o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, tentou descobrir o custo da intervenção e não conseguiu. O Observatório da Intervenção, no Rio, também tem tentado saber o valor, e não consegue. “Tinha uma avaliação de que seria algo como 1 milhão de reais por dia. A lógica do sigilo é muito forte nas Forças Armadas, mas a gente precisa saber quanto custa e quais estratégias estão delimitadas. O que a intervenção quer? Se é produzir mais mortos, talvez ela esteja sendo bem-sucedida.”
“Bem-vindos à comunidade Parque Maré”, diz a placa em frente à rua Teixeira Ribeiro. Um amontoado de lixo se acumula à espera da Comlurb no local onde, alguns dias antes, o corpo de Willian Filgueira de Oliveira, de 36 anos, jazia sobre uma carroça na beira da avenida Brasil, à espera dos peritos da Divisão de Homicídios, que só chegaram às 11h40. O corpo foi localizado às 5h por moradores, mas até 10h a Polícia Militar não havia informado a Civil sobre as mortes – isso só foi feito pela equipe de segurança da ONG Redes da Maré, a mais atuante de todo o complexo, que ajuda os moradores a ter acesso ao sistema de Justiça, e acompanha as famílias de todos os mortos e feridos. Primeiro correu a notícia de que Willian seria professor de física, mas ele era instrutor de educação física. Ele não trabalhava em academia havia pelo menos onze meses, quando se mudou para a Maré. Willian conhecia bem as comunidades, só conseguia se achar na Nova Holanda. Tinha corpo de atleta, e muitas namoradas. Uma delas se diz noiva, e veio da Paraíba para morar com ele há um mês, depois de duas transas no começo do ano, quando ele esteve lá a passeio. Ela ficou o tempo todo ao seu lado, esperando a perícia. Willian saiu de casa para comprar um lanche por volta da meia-noite. Os tiros começaram, ele não voltou. A namorada esperou o dia amanhecer e os disparos cessarem para procurá-lo na rua. Passou duas vezes pelo corpo no chão sem saber que era o homem com quem ela fazia planos. Willian foi encontrado às 5h, no meio-fio da rua Teixeira Ribeiro, com vários tiros no corpo e marcas de tortura. O cobertor vermelho era também uma forma de esconder o seu estado.
“A gente sonhava morar na Paraíba, ele queria voltar a ser professor, eu ia voltar a ser cabelereira. Estávamos falando muito sobre isso, ele dizia que não queria entrar na vida do crime, que é rápido para entrar e difícil de sair. Ele andava preocupado com o filho dele, de 17 anos, que dependia dele. Pra mim ele não dizia que tinha envolvimento com o tráfico, ele não demonstrava, e eu nunca vi ele na rua com rádio, aquelas coisas. Se eu soubesse disso não ia querer mais ele”, afirma sua namorada, de 22 anos, que pediu anonimato.
Ela conta que o corpo foi enterrado no interior de Minas Gerais, onde ele tem duas irmãs – os pais, que moravam em Caxias, já morreram. A namorada não pôde ir ao enterro. Não tinha dinheiro. Ela quer voltar para a Paraíba sozinha, mas ao mesmo tempo pensa: Já que estou aqui, por que não continuar? “Estou perdida, não sei o que fazer. Dói muito.”
Segundo moradores, Willian, conhecido como “Playboy” na Nova Holanda, foi morto enquanto trocava tiros com policiais na rua Teixeira Ribeiro. Ninguém sabe a hora em que o mataram. Seu corpo caiu no meio da rua, e companheiros o arrastaram até o meio-fio, antes de roubarem o dinheiro do seu bolso. A única mulher entre os cinco mortos na operação foi encontrada a poucos metros de distância de Willian. Maria José da Silva Videira, de 34 anos, era conhecida como Zezé. Caçula de seis irmãos, nasceu no Parque Fluminense, em Duque de Caxias, e vivia na Maré há uns dez anos com seu marido. Ele ficou tão abalado que não foi ao enterro, quinta-feira, no cemitério São Francisco Xavier, no Caju. Moradores lamentam a morte de Zezé. Garantem que “ela não tinha envolvimento com coisa errada”, mas que errou ao se aproximar do corpo de Willian – não se sabe se para ver se ele ainda estava vivo ou se para pegar sua arma. Atiradores de elite do Bope estavam à espreita: Zezé foi atingida por cinco tiros, segundo a mulher que a encontrou na porta do seu quiosque. A comerciante está preocupada com seu filho, de 18 anos, que entrou para o tráfico há três meses. “Não sei o que fazer com ele. Minha filha já está namorando um traficante pela segunda vez. Só o mais velho não dá problema”, desabafa.
Johnson Vinicius Guimarães também foi atingido na rua Teixeira Ribeiro. Foi levado em estado grave, com um tiro no peito, para o Hospital Estadual Getúlio Vargas. No dia 9 de novembro, seus amigos postaram no Facebook a notícia da sua morte: “Os menor tão revoltado irmão (sic), nem tô acreditando. Espera irmão, Deus tá com a gente, vamos te vingar.” O quinto morto na operação foi Thiago Ramos Pereira Costa, morador da Nova Holanda, atingido por uma bala na cabeça. Atiraram nele no Parque União. Ele foi levado por amigos até o Hospital Geral de Bonsucesso, mas não resistiu. Um morador que conhecia Thiago desde a infância, motorista de aplicativo que foi criado no Parque União, lamenta que ele tenha sido “fraco”. “Antes do crime te matar, ele te seduz. Você acha que controla, que sai quando quer, e quando percebe está preso, ou com um tiro no peito”, ele conta, enquanto me leva numa corrida da Maré à Zona Sul. “Por isso que eu saí dessa vida.”
No primeiro domingo após a operação, a Nova Holanda e o Parque União estão em festa. Tem baile funk, show de pagode e também de forró, em três espaços diferentes. Tudo a céu aberto. A cultura do funk resiste na favela que já teve o maior baile da cidade, posto hoje ocupado pelo Baile da Gaiola, que reúne 30 mil pessoas no meio de uma rua na Penha – começa numa noite e acaba na tarde do dia seguinte. Em frente a um bar, um grupo de teatro comemora com churrasco e cerveja a última apresentação da temporada de Corpo minado. A peça, exibida na Maré, conta a história de uma organização de mulheres que luta para garantir a sobrevivência de mulheres pretas no futuro. “O corpo favela é um corpo matável. É disso que trata a peça. Mas, para nós, a favela é muito mais do que violência. É um espaço que produz vida, arte, amor”, afirma Wallace Lino, de 31 anos, ator e diretor do espetáculo. Cria da Maré, ele é formado em artes cênicas na Unirio, e esta é a quarta peça que monta na favela à frente da sua companhia, chamada Atiro.
Na rua Teixeira Ribeiro, onde morreram quatro das cinco vítimas, os bares e restaurantes estão vivos. Um casal namora no banco de trás de um carro, dois cachorros esperam pedaços de carne de sol dos clientes do Bar Cajueiro, famílias saem de uma igreja evangélica vestindo roupas sociais, e precisam atravessar o baile funk no caminho de casa. As ruas estão cheias de crianças, principalmente na praça do Parque União, por onde também entraram blindados e policiais naquela madrugada, para encurralar os traficantes do Comando Vermelho, minoria no complexo onde quem manda mais é a facção inimiga: o Terceiro Comando Puro. Passa de uma hora: mesmo horário em que, alguns dias atrás, a operação começava, com o tiro de fuzil na barriga de Marquinhos, o menino negro de boné e pistola na mão. Em sua página no Facebook, o rapaz mistura fotos da vida no crime com imagens de seu filho. Quando o bebê nasceu, ele postou uma foto sorrindo com o pequeno no colo, e a legenda: “Você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida.” Morreu em seu primeiro confronto, antes de Myckael completar um ano.