Uma reportagem de autoria de Breno Pires, publicada nesta edição de julho da piauí sob o título Farra ilimitada, revela que milhões de reais do orçamento secreto controlado pelo Centrão no Congresso Nacional estão sendo direcionados para prefeituras que falsificam números na área da saúde. A maioria das prefeituras fica no Maranhão, ainda que a bancada do estado não tenha peso político expressivo na Câmara e no Senado – o que sugere que o esquema tem uma coordenação central que orienta e direciona as verbas públicas.
Ocupando oito páginas, a reportagem apresenta exemplos de aumentos exorbitantes. Bom Lugar, que nem hospital tem, diz que aumentou seus atendimentos em saúde em 1.300% de um ano para o outro. O município de Governador Luiz Rocha informou ao SUS que seus serviços aumentaram em 12.500%. Em Luís Domingues, o salto foi da ordem de 39.000%.
Em Igarapé Grande, as consultas foram tão infladas que chegaram à média de 34 por habitante, padrão que supera até o recorde mundial, estabelecido pela Coreia do Sul, onde a média anual é de 17 consultas por habitante. Santa Quitéria do Maranhão registrou mais exames para detectar infecção pelo vírus HIV do que a cidade de São Paulo. Pedreiras disse ter feito tantas extrações dentárias que dá média de dezenove dentes extraídos por habitante. É a cidade mais banguela do Brasil.
Entre 2019 e 2021, período em que o orçamento secreto nasceu e cresceu sob as bênçãos do governo de Jair Bolsonaro, o esquema virou uma epidemia: 66 cidades maranhenses registraram aumento de 500% ou mais em seus serviços de saúde de um ano para o outro. Trinta cidades aumentaram mais de 1.000%.“Aumentos assim, de dez a vinte vezes em apenas um ano, é algo que nunca vi”, espanta-se Maria Angélica Borges dos Santos, professora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
O superfaturamento dos números eleva o teto de verbas em saúde que os deputados e senadores podem enviar aos municípios. Assim, os parlamentares, usando como base os tetos superfaturados, vêm despachando polpudas emendas para as prefeituras. São Raimundo das Mangabeiras, que recebia 213,6 mil reais por ano, passou a receber 4 milhões de reais. São Bernardo, na divisa com o Piauí, pulou de 720 mil para 4,2 milhões de reais anuais. Miranda do Norte subiu de 1,1 milhão para 10 milhões de reais. Bacabal, com 105 mil habitantes, recebeu mais dinheiro do que o Distrito Federal, cuja população passa de 3 milhões de pessoas. Bela Vista recebeu 5,5 milhões de reais. É mais do que receberam as secretarias de saúde de onze capitais de estado, entre elas Florianópolis, Natal, Vitória, Belém e Manaus.
Farra ilimitada mostra que, com as emendas gordas, as médias de verba por habitante dispararam. Enquanto a média nacional é de 20 reais por habitante, as prefeituras maranhenses saltaram à frente. A medalha de ouro nacional pertence a Igarapé Grande: 590 reais. Nenhum outro município do Brasil, consideradas capitais e cidades do interior, conseguiu tanto dinheiro per capita. Tamanha disparidade está deformando a estrutura nacional do SUS, cujos critérios demográficos e epidemiológicos para distribuição de verbas estão sendo ignorados. Serrano do Maranhão, por exemplo, recebeu uma verba modesta de 10,8 mil reais de acordo com a avaliação técnica do SUS, mas os parlamentares mandaram 2,8 milhões de reais para a cidade. É 26.000% mais do que a verba técnica do SUS.
O esquema do orçamento secreto com consultas fantasmas é uma conexão direta entre parlamentares em Brasília e prefeituras no Maranhão. A suspeita, sob investigação da Polícia Federal, é de que parlamentares recebem propina em troca das emendas que favorecem as prefeituras. Uma parte das verbas – que, em alguns casos, pode chegar a até 30% da emenda – vira o que os corretores de propina em atividade no Congresso chamam de “volta”. A “volta” é a quantia de dinheiro que a prefeitura devolve ao autor da emenda que beneficiou o município. É propina paga com verba da saúde. “Ninguém fala porque é preciso ter provas concretas, mas a ‘volta’ é voz corrente no Congresso”, diz um deputado que já ocupou altos postos na Câmara. Às vezes, a “volta” faz parte do acordo já no início da elaboração da emenda. Outras, a cobrança chega sem aviso prévio, à base da extorsão. O deputado federal Josimar Maranhãozinho (PL-MA) é investigado pela PF pelo uso de grupos armados na hora de extorquir prefeitos.
O presidente da Câmara Arthur Lira, que controla 11 bilhões de reais do orçamento secreto neste ano, não quis falar sobre o assunto. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que tem 5,5 bilhões de reais sob seu comando, mandou uma nota à piauí dizendo que os volumes destinados às prefeituras do Maranhão seguem “critérios definidos pelas bancadas”. Os dois, Lira e Pacheco, estiveram no Maranhão neste ano, em reuniões públicas com os prefeitos em que trataram dos recursos da saúde. O Ministério da Saúde, procurado pela piauí, admitiu que encontrou irregularidades em “alguns municípios” e disse que vai abrir uma auditoria “nos próximos dias”.
Até agora, contabilizando-se as remessas feitas até o final do mês de junho, no prazo permitido pela lei eleitoral, as prefeituras do Maranhão receberam 918 milhões de reais para a saúde por meio do orçamento secreto. A piauí procurou todos os parlamentares do estado para saber quanto cada um mandou para sua região e quais os critérios definidos pela bancada. A maioria não quis comentar. Os que falaram assumiram a autoria de emendas que somam 52 milhões. Falta explicar 866 milhões de reais.
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