Em dois dias, a cidade de Picos, no sertão do Piauí, recebeu uma bolada de uma vez só: 11 milhões de reais reservados do orçamento federal secreto para o terceiro maior município do estado. Distribuída como emenda do relator, a verba é superior à prometida a estados inteiros na mesma ocasião – o Rio Grande do Norte inteiro, por exemplo, ficou com 6,6 milhões de reais. Uma planilha do orçamento secreto com empenhos de 28 outubro a 5 de novembro, obtida pela reportagem, mostra a falta de critérios técnicos para a distribuição desses recursos. O Piauí, 19º estado do país em população, ficou com a quarta maior fatia do bolo, um total de 99 milhões de 1,3 bilhão de reais.
O ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, senador licenciado pelo estado e presidente nacional do PP, tem em Picos uma confluência de interesses. O município é administrado por Gil Paraibano (PP), o milionário empresário que é seu segundo suplente no Senado. É de lá também a deputada federal Marina Santos, que trocou o Solidariedade pelo PL em setembro. O partido, aliado do PP no plano nacional, pode perder o seu principal dirigente no estado – Fábio Xavier se opôs à filiação do presidente Jair Bolsonaro à legenda, pois ela prejudica sua aliança com o PT do governador Wellington Dias. Se a saída de Xavier se consumar, o PL piauiense já tem em Marina Santos um nome afinado aos interesses de Nogueira no estado para seguir adiante com os planos – o outro deputado federal pelo PL do Piauí, Fábio Abreu, também tem resistência à entrada de Bolsonaro na sigla.
Num passado recente, eles estavam todos no mesmo barco. Na eleição de 2014, Wellington Dias se elegeu governador com a hoje deputada federal Margarete Coelho, do PP, como vice – ela era o nome indicado por Ciro Nogueira para a chapa. Em 2018, Dias se reelegeu já com outra vice, mas com Nogueira na chapa vencedora como candidato ao Senado. Em 2020, na eleição municipal, Picos foi o palco da divisão do grupo. Gil Paraibano, que também era aliado do governador, foi para o enfrentamento e tirou o PT do poder, com Ciro Nogueira e a máquina federal por trás – e carreou o senador Elmano Férrer junto. Outro antigo aliado de Dias, Férrer se filiou ao PP às vésperas do pleito e anunciou milhões em obras por meio do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), cujo superintendente no estado é indicado seu.
Em 2022, Férrer disputará com o governador Wellington Dias a única vaga aberta ao Senado na próxima eleição. Agora ministro-chefe da Casa Civil, Nogueira vem ajudando a destravar emendas com apelo eleitoral de Férrer, seja em Picos (4 milhões de reais em outubro), seja fora de lá (6,3 milhões de reais para Oeiras em novembro, 28 milhões para Teresina).
Nenhum estado, nem mesmo o maior do país, São Paulo, recebeu tanta verba naquela semana quanto Minas Gerais. Foram destinados 198 milhões de reais à terra de Rodrigo Pacheco (PSD), presidente do Senado, um dos que guardam a chave do cofre secreto das emendas do relator. Depois da capital, Belo Horizonte (cerca de 40 milhões), o município mais contemplado foi Pouso Alegre, na região Sul do estado, onde Pacheco cresceu. O município administrado por um aliado seu recebeu 31 milhões de reais duas semanas antes de uma visita oficial do presidente do Senado.
No dia 19 de novembro, Pacheco subiu a um palco montado em Pouso Alegre para inaugurar a pedra fundamental do hospital oncológico Samuel Libânio. “Pouso Alegre e a região nunca me faltaram. Quando, no primeiro mandato de deputado federal, desejoso de ser senador da República, todos vocês, prefeitos, prefeitas, vereadores, vereadoras, deputados, colocaram aquele deputado de primeiro mandato sobre os ombros e o levaram ao Senado da República do Brasil. A minha gratidão ao Sul de Minas, a minha gratidão a Pouso Alegre pela condição que tenho hoje na política brasileira, na política mineira”, discursou. Nascido em Rondônia, ele cresceu em Passos, cidade próxima.
Ao falar da importância de bons atendimentos de saúde para a população, mandou um recado indireto ao Judiciário. “Nós temos uma grande responsabilidade, de colocar de pé este hospital. E se coloca de pé este hospital com dinheiro, com recursos provenientes do Orçamento público, que é gestado pelo Poder Executivo, que sofre sugestões a partir de emendas parlamentares. A participação de discricionariedade, de deliberação de recursos, isso faz parte da política. Não é papel do Judiciário, é papel da política decidir que o Samuel Libânio tem que estar de pé. Sabe por quê? Porque naquela janelinha lá no último andar vai estar a esperança de alguém em sobreviver ou não.”
Dez dias antes, o Supremo Tribunal Federal tinha decidido suspender as emendas do relator, conhecidas como Orçamento secreto – rubrica bilionária sob controle do Congresso alheia ao escrutínio público, porque escapa às regras de transparência das emendas parlamentares comuns. O Supremo decidiu que sem informar qual congressista indicou qual emenda, de qual valor e com qual finalidade, os repasses deveriam cessar. Pacheco se empenhou pessoalmente ao lado do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) para costurar com ministros do tribunal e entre deputados e senadores uma solução. Definiram que passariam a informar valores e destinatários beneficiados, mas abrindo brechas para manter a identidade do congressista por trás da indicação anônima. Quanto ao Orçamento secreto de 2020 e 2021, nada mudaria – a medida não seria retroativa.
País afora, o orçamento secreto se consolidou como um instrumento poderoso para ampliar alianças e avançar sobre territórios adversários. O poder persuasório das emendas se desdobra nas teias da micropolítica e se reflete nas disputas locais.
Alagoas, por exemplo, base de Lira, apesar de ser o 18º estado em tamanho de população, obteve a quinta maior fatia do orçamento secreto, de 85 milhões de reais, naquela semana que antecedeu a votação da PEC dos Precatórios na Câmara. Os municípios controlados por prefeitos de seu partido, o PP, receberam a soma de 33 milhões, enquanto o MDB, partido dos Calheiros, que administra o maior número de municípios do estado, amealhou 23 milhões de reais, mesma quantia destinada ao PSB, que governa a capital. Outros valores menores foram distribuídos pontualmente, mostrando a força dos partidos do Centrão, que têm ajudado o presidente Jair Bolsonaro a manter o controle do Congresso.
São Miguel dos Milagres, no litoral alagoano, por exemplo, recebeu 480 mil reais. O prefeito da cidade é correligionário e aliado do deputado federal Nivaldo Albuquerque, do PTB. O empenho da verba saiu na véspera da votação da PEC dos Precatórios. O congressista não votou no primeiro turno, mas deu o seu sim no segundo. Uma semana depois, foi à cidade posar em cima de um trator fazendo sinal positivo com o polegar. “O motivo da visita? O deputado veio entregar uma uma pá-carregadeira, que irá ajudar bastante na administração e infraestrutura da nossa cidade. Além disso, o prefeito conversou sobre as emendas que já foram destinadas pelo parlamentar a São Miguel dos Milagres, e sobre as que ainda estão por vir”, anotou a prefeitura em rede social.
Lira, em uma espécie de guerra fria com o MDB, usa o cofre para se aproximar de aliados dos Calheiros. O prefeito de Coruripe, Marcelo Beltrão, é um deles. Deixou o MDB no ano passado e se filiou ao PP. Rompeu com o primo, o deputado federal Marx Beltrão, e disputou a prefeitura contra o irmão deste, Maykon Beltrão. Marcelo ganhou e sucedeu o tio Joaquim Beltrão, do MDB – a família está no poder há décadas. Após a eleição, Maykon e o irmão de Marcelo, Marcius Beltrão, assumiram secretarias de estado no governo Renan Filho. Mas Lira não ficou para trás. Só no final de outubro, reservou 8,3 milhões de reais do orçamento secreto para a cidade administrada pelo neoaliado.