Quando escalou seus ministros e aliados, com cinco generais incluídos, para rebater as acusações de Sergio Moro de que havia agido para intervir na Polícia Federal, o presidente Jair Bolsonaro talvez não soubesse, mas uma tropa ainda mais numerosa começava a se perfilar ao lado do seu novo inimigo. Os oficiais de alta patente do Exército tinham no ex-ministro sua maior referência positiva no governo e são agora, em sua maioria, órfãos de Moro. À exceção dos fardados palacianos, a cúpula da principal e mais política das Forças Armadas é bem mais “morista” que bolsonarista.
Um general ouvido pela piauí classificou o pronunciamento de Bolsonaro naquela sexta-feira, 24 de abril, como “fraquíssimo, vulgar e constrangedor”. Moro, por sua vez, foi definido pelo mesmo oficial como alguém de “caráter elevado, que tem o Brasil como prioridade absoluta” e cujo comportamento no episódio foi “imperturbável e assertivo”. O militar conta que esta é a visão predominante entre os seus colegas oficiais-generais da ativa. A aproximação de Bolsonaro com o Centrão os afasta ainda mais do presidente.
Generais da reserva muito respeitados na instituição, caso do ex-ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz, também não escondem a admiração pelo ex-magistrado da Lava Jato. “Não são só os militares, acredito que toda a sociedade vê no Moro não só o juiz que trabalhou noite e dia no combate à corrupção, mas um símbolo. Aí você percebe uma mobilização de internet, de correligionários do governo, para atacá-lo. E, mesmo com tudo isso, Moro continua com apoio. Acredito que a saída dele traz um prejuízo para o governo”, afirmou Santos Cruz à piauí.
A escolha de André Mendonça como substituto de Moro no Ministério da Justiça – e não de Jorge Oliveira, muito mais próximo dos Bolsonaro, como chegou a ser cogitado – amenizou o desconforto da caserna, mas não o elimina, comentou um general da reserva com trânsito na cúpula dos três poderes. “Não cura a ferida, mas ameniza a dor. Os militares são fãs do Moro e não deixaram de ser. A saída dele quebrou parte do encanto que ainda havia com o governo no meio”, disse. Uma medida da idolatria por Moro no universo militar: ali, os vazamentos das conversas comprovando que o então juiz atuava em parceria com procuradores da Lava Jato –o que contraria o Código de Processo Penal e o Código de Ética da Magistratura– são subestimados e nem trincam a imagem heroica que se tem dele.
A reverência a Moro apareceu até nas hostes do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas –assessor especial do GSI, o Gabinete de Segurança Institucional, e a quem Bolsonaro já disse dever a sua eleição. No dia em que o ex-juiz deixou o governo, Adriana Haas Villas Bôas, a filha mais apegada ao general – espécie de braço-direito do pai, que se aproximou ainda mais dele depois da descoberta da doença degenerativa que o acomete –, publicou numa rede social uma foto ao lado de Moro. “Em tempos sombrios de corrupção desenfreada, reforçada por aduladores de bandidos, o senhor fez um país inteiro sonhar novamente! Obrigada por tudo”, dizia a mensagem, acompanhada de um coração e duas mãos juntas em sinal de gratidão. Choveram comentários, a maioria a apoiando e alguns poucos discordando. Num destes, uma pessoa escreveu: “Tomou partido cedo demais, Drika”. A filha de Villas Bôas respondeu: “E nós precisamos parar de rachar entre nós. Independente de quem é Bolsonaro ou Moro. Temos que continuar do mesmo lado quando o assunto é Brasil”. Todos os comentários foram depois apagados da publicação.
Enquanto isso, três ministros-generais que trabalham ao lado de Bolsonaro no Palácio do Planalto – Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria Geral) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) – terão de passar pelo constrangimento de prestar depoimento à Polícia Federal no inquérito que investiga as acusações de Moro contra Bolsonaro. O pedido foi feito pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, e autorizado pelo ministro Celso de Mello, do STF, depois de Moro afirmar, em seu depoimento à PF, que os três generais foram avisados por ele sobre a tentativa do presidente de tentar intervir no órgão.
O desgaste provocado pela saída de Moro entre oficiais superiores ocorre em um Exército que, sob o comando do general Edson Leal Pujol, busca se distanciar tanto do governo Bolsonaro quanto da gestão de seu antecessor no cargo, um processo definido por um ex-ministro da Defesa como “desvillasboização” da instituição. No primeiro caso, é um movimento quase esquizofrênico, que tem seu efeito diminuído porque, ao mesmo tempo, o próprio Bolsonaro insiste em povoar a Esplanada de militares (ocupam 8 dos 22 ministérios e centenas de cargos no governo) e, assim, dar densidade ao seu discurso de que as Forças Armadas estão ao seu lado.
O presidente dobra a aposta nessa estratégia à medida que enfraquece politicamente. É acossado por dois inquéritos no Supremo, o gerado pelas acusações de Moro e outro sobre a origem das fake news contra ministros da Corte, que pode atingir seu filho Carlos. Dias antes de o ex-ministro sair do cargo atirando, Bolsonaro anunciou como secretário-executivo do Ministério da Saúde o general Eduardo Pazuello, sem nenhuma ligação com a área, almejando que a experiência do oficial em logística seja o bastante para essa função estratégica durante a pandemia. Mais que um militar a mais no governo, Pazuello é um militar da ativa, assim como o ministro Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Representam uma minoria – os fardados que ocupam postos-chave na Esplanada são, em sua maioria, da reserva — e perdem temporariamente sua função no Exército (são, no jargão militar, “agregados”), mas arrastam a instituição para o centro da crise.
Bolsonaro atua para arrastá-la ainda mais. Em 19 de abril, o presidente participou de um ato em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, em que manifestantes pediam intervenção militar, a volta do AI-5 e o fechamento do Congresso e do Supremo. O gesto foi visto na cúpula do Exército como uma provocação desnecessária de Bolsonaro, especialmente pelo local em que ocorreu. Nem Pujol nem outro integrante do Alto Comando do Exército estavam lá. No dia seguinte, dada a repercussão negativa do gesto, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, divulgou uma nota declarando que as Forças Armadas trabalhavam “sempre obedientes à Constituição Federal” e ressaltava outra preocupação dos militares, “combater um inimigo comum a todos: o coronavírus e suas consequências sociais”.
Nesta segunda-feira (4/5), dia seguinte a um ato em frente ao Palácio do Planalto, com a presença de Bolsonaro, em que bolsonaristas voltaram a atentar contra a democracia e agrediram jornalistas, Azevedo se viu obrigado a soltar outra nota. “As Forças Armadas cumprem a sua missão Constitucional. Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado. […] A liberdade de expressão é requisito fundamental de um país democrático. No entanto, qualquer agressão a profissionais de imprensa é inaceitável”, dizia o texto sobre as manifestações de bolsonaristas, acrescentando novamente que a prioridade das Forças Armadas nesse momento deve ser combater o novo coronavírus.
Com o aumento da temperatura da crise e o comportamento atávico de Bolsonaro de radicalizar quando se vê acuado, ressurge o receio de que o presidente possa promover um “autogolpe”, recorrendo às Forças Armadas para sufocar os outros poderes. Segundo oficiais ligados ao Comando do Exército, essa possibilidade não existe. A opinião é compartilhada por políticos com bom trânsito entre os militares. “Não existe nenhum compromisso das Forças Armadas com nenhum tipo de aventura de Bolsonaro. Nenhuma chance de ter isso. Vão respeitar Constituição e decisões do Congresso e do Supremo. Não vai acontecer nada fora das regras do jogo”, afirma Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa no governo Dilma, interlocutor de oficiais das três Forças Armadas e um dos políticos mais respeitados pelos militares.
Rebelo – que presidiu a Câmara dos Deputados de 2005 a 2007 e foi titular de vários outros ministérios nos governos petistas — considera que Bolsonaro cruzou uma linha quando foi ao evento golpista no QG do Exército. “O gesto do presidente abre as comportas para todo tipo de arruaças, independentemente dos objetivos ideológicos que as justifiquem. Qualquer aventureiro está autorizado, a partir do gesto do presidente, a reunir sua facção e seus asseclas e afrontar com suas arengas e provocações os quartéis do país e as instituições”, escreveu em um artigo no portal Bonifácio, do qual é fundador.
Ainda assim, diz o ex-ministro, a atitude não pode ser encarada como senha para a ruptura democrática. “Não é que isso constitua uma ameaça de golpe ou quebra da legalidade, porque Bolsonaro não tem força para isso, mas constitui uma degradação das Forças Armadas, do Exército especialmente, e da instituição Presidência da República, que ele vem submetendo a constrangimentos seguidos.”
Santos Cruz também não vê risco de seus colegas da ativa apoiarem um golpe bolsonarista. “O Exército tem uma estrutura hierárquica muito boa, em todos os níveis, do sargento do tiro de guerra ao coronel, capitão, general. Tem um processo de seleção que pode não ser perfeito, mas é muito bom e acaba selecionando os melhores para comandar os quartéis. E o Pujol é um cara muito inteligente e discreto. Estamos vivendo um período de confusão quase permanente, então o comandante de uma força armada tem que ser um cara cauteloso no meio dessa fuzarca.”
Ao contrário do seu antecessor, Pujol, o comandante do Exército, não dá entrevistas e não tem perfil em redes sociais. Villas Bôas não só era ativo no Twitter como foi por essa rede que em 2018 pressionou o STF, na véspera do julgamento de um habeas corpus que poderia tirar da cadeia o ex-presidente Lula, então ainda preso. Escreveu na ocasião que o Exército compartilhava “o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”.
Pujol tem se mantido calado. Num raro pronunciamento, no final de março, o general afirmou que o combate ao novo coronavírus era possivelmente “a missão mais importante de nossa geração” – enquanto Bolsonaro minimiza a gravidade da pandemia, desrespeita as orientações das autoridades sanitárias e insiste em sua campanha para relaxar as medidas de distanciamento social. Nesse sentido, o comandante também tem tido gestos eloquentes. Numa cerimônia recente de passagem de comando em Porto Alegre, Bolsonaro foi cumprimentar Pujol com um aperto de mão, e o general não retribuiu – ofereceu-lhe no lugar uma batida de cotovelos, uma recomendação das autoridades sanitárias.
E determinou que suas tropas se dediquem a combater o vírus. “Hoje toda a energia do Exército está voltada para a pandemia. Estamos em 200 localidades de todas as regiões do Brasil, conduzindo cerca de 400 ações simultâneas, com cerca de 20 mil militares. Isso não tem nenhuma vinculação política, estamos em todos os estados da Federação, acolhendo pedidos provenientes de todos eles e das mais diversas prefeituras e órgãos”, afirmou à piauí o general Richard Nunes, chefe do CCOMSEx (Centro de Comunicação Social do Exército).
Uma das medidas da gestão de Pujol foi a publicação, em julho do ano passado, de uma portaria com normas para criação e uso de mídias sociais por militares do Exército. “O Estatuto dos Militares impede o militar da ativa de opinar em assuntos de política partidária. Mas as mídias sociais criam um ambiente em que se começa aquela polêmica, aquela coisa toda, então nós demos aquela chamada à ordem. [Como se disséssemos: ]‘Olha só, as mídias sociais não são terra de ninguém’”, explicou o general Richard Nunes.
Desde o começo do governo, generais respeitados no Exército foram achincalhados pelo “gabinete do ódio” – a célula palaciana de destruir reputações comandada por Carlos Bolsonaro – e pelo polemista Olavo de Carvalho, referência para o bolsonarismo. Foi o caso de Santos Cruz, demitido por se opor ao radicalismo dos filhos e do guru. É o caso hoje do porta-voz Otávio do Rêgo Barros, que teve suas funções esvaziadas em benefício da “comunicação direta” das redes sociais, tão cara ao presidente.
Os episódios de desconforto entre oficiais da ativa e da reserva se acumulam. Um dos últimos foi a interferência de Bolsonaro numa área de competência do Exército, o rastreamento e controle de armas. No mês passado, o presidente revogou três portarias que, na prática, dificultavam o acesso de criminosos a armas e munições extraviadas de forças policiais. O general que formulou as portarias, Eugênio Pacelli Vieira Mota, foi exonerado – segundo o Exército, porque seu prazo na carreira se encerrou e ele teve de ir para a reserva.
“O pessoal ali [na Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados, que cuida do tema no Exército] é absolutamente técnico, zero de interesse político. Fazer consideração política naquilo ali não é bom, deixar armamento sem controle não é bom. Se você não tem controle e rastreamento de munição, favorece todo aquele que tem interesse ilegal. O colecionador e o atirador esportivo não se importam de ser rastreados e controlados. Para eles, o controle até ajuda”, disse Santos Cruz.
A tentativa do comando do Exército de se distanciar de Bolsonaro não significa que as Forças Armadas vão deixar de participar da gestão do capitão reformado. E há, para além dos que integram o Executivo, muitos que o apoiam. Os militares sabem que um insucesso do governo respingará na credibilidade das Forças Armadas. É nessa chave que deve ser lida a tentativa recente dos militares generais palacianos de dar um cavalo de pau na área econômica, abandonando a agenda ultraliberal de Paulo Guedes em favor de outra desenvolvimentista, baseada em investimento público, obras e de um Estado forte para retomada da economia após a pandemia. Batizado de plano Pró-Brasil, o PAC bolsonarista foi lançado pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, numa cerimônia sem a presença do titular da Economia. Temporariamente abortado por um contra-ataque de Guedes, que o percebeu como um tiro de morte no ajuste fiscal – como se a recessão inevitável pós-pandemia não já fosse enterrá-lo por si só – , está na gaveta dos militares à espera de uma oportunidade para reaparecer.
É também nessa perspectiva que os fardados do Planalto enxergam o ministro do STF Alexandre de Moraes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, como conspiradores contra Bolsonaro. Por fim, mas não menos importante como justificativa para o apoio dos militares, existe a contrapartida financeira que Bolsonaro lhes tem dado, com orçamentos generosos mesmo em tempo de crise e uma reestruturação de carreira que atendeu aos anseios da cúpula militar.
É nesse fio de navalha que se equilibra o vice-presidente Hamilton Mourão. Como tem feito desde o início do governo, o general emite simultaneamente sinais que ora o aproximam, ora o afastam de Bolsonaro. Na mesma segunda-feira em que fez uma crítica contundente aos bolsonaristas que atacaram jornalistas (“Sou contra covardia; agredir quem está fazendo seu trabalho não faz parte da minha cultura”), disparou contra o STF porque o tribunal barrou a nomeação do primeiro escolhido de Bolsonaro para diretor da PF (Alexandre Ramagem) e suspendeu a ordem do presidente para expulsar diplomatas venezuelanos. “Os Poderes têm que buscar se harmonizar mais e entender o limite da responsabilidade de cada um“, declarou Mourão.