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    Ilustração: Carvall

questões do presente e do futuro

Os implantes que traduzem neurônios

Procedimentos de estimulação cerebral (alguns já cobertos pelo SUS) ajudam a tratar pacientes com doenças neurológicas como Parkinson – e agora os cientistas querem mais

Camille Lichotti | 18 maio 2022_09h01
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O engenheiro eletricista aposentado Antônio Carlos Medeiros, de 65 anos, não se incomoda em ter dois eletrodos encravados na parte mais profunda de seu cérebro. Também não lhe importuna a corrente elétrica que contorna seu crânio e pescoço. O pequeno gerador implantado embaixo da pele, como um marca-passo, já faz praticamente parte de seu corpo. “No começo eu estranhava, agora até durmo por cima”, diz ele, mostrando a protuberância um pouco acima do peito direito, causada pela pequena bateria ali instalada. A vida voltou ao normal para Medeiros – mas ele confessa que às vezes se sente um pouco “elétrico”, sem se esquivar do trocadilho.

Há sete anos, Medeiros descobriu que tinha Parkinson, uma doença neurológica que afeta os movimentos corporais e causa tremores, rigidez muscular e alterações na fala. No início, evitava tocar no assunto e escondia os sintomas. Mas aos poucos eles foram escalando. Os leves tremores e movimentos involuntários nas mãos vieram primeiro, depois a rigidez das pernas e do rosto. Medeiros começou a mancar e andava aos solavancos, com o ombro direito projetado para a frente. “Eu não conseguia mais falar palavras longas, saía tudo embolado”, lembra. Se ficasse muito tempo de pé, logo sentia as pernas formigarem. Medeiros tomava a medicação padrão para a doença, mas pouco adiantava. “O remédio é como se fosse uma corrente alternada”, explica ele. “Em poucos minutos atinge o pico do efeito e você fica bem. Mas depois vai caindo e caindo, como uma onda. E os problemas para se movimentar voltam.” 

Foi quando seu neurologista comentou sobre outra possibilidade para tratar os sintomas: uma cirurgia que parecia a descrição de uma cena de filme de ficção científica. Na estimulação cerebral profunda, ou DBS (Deep brain stimulation, em inglês), os cirurgiões iriam furar o crânio de Medeiros e enviar uma corrente elétrica para estimular o núcleo de seu cérebro, na região afetada pelo Parkinson, trabalho que, numa pessoa saudável, é feito pelos neurônios. Ele topou na hora. “Eu tinha que melhorar, não podia ficar do jeito que estava. Eu sou jovem, não podia me render à doença”, diz Medeiros. Em junho de 2021, pegou um avião de São Luís, no Maranhão, onde mora com a esposa, e viajou para São Paulo atrás da cirurgia. Depois de cinco meses de consultas, exames e acompanhamento com o neurologista, ele foi autorizado a realizar o procedimento, em novembro do ano passado. 

A cirurgia começou por volta das 7 horas da manhã. Ainda consciente, Medeiros foi posicionado na maca e sua cabeça ficou envolvida por um halo cirúrgico, que o manteve imóvel durante todo o processo. Uma máquina de ressonância indicaria a posição exata dos cortes. Primeiro, os neurocirurgiões realizaram dois furos do tamanho de uma moeda de 50 centavos em seu crânio – um do lado esquerdo e um do lado direito. Para encontrar o alvo exato da cirurgia em meio a toda aquela massa retorcida, os cirurgiões começaram introduzindo um eletrodo finíssimo no cérebro de Medeiros. “É como se você estivesse olhando a cidade de São Paulo do alto e seu alvo fosse o Parque Ibirapuera”, explica o neurologista Rubens Cury, que integrou a equipe médica. Pode ser que no processo de inserção o eletrodo se desloque alguns milímetros, diz ele, como se caísse numa rua transversal ao parque. Para evitar esse erro, os neurocirurgiões precisam ter certeza que estão atingindo precisamente o ponto certo do núcleo cerebral. Num computador ao lado da mesa cirúrgica, Cury acompanhava a empreitada. Na tela surgiam linhas que subiam e desciam freneticamente, conforme o eletrodo-teste era inserido. Aquele era o desenho da atividade neural de Medeiros. 

O cérebro comanda, registra, controla e organiza todos os aspectos da nossa vida – o que pensamos, o que sentimos, o que vemos e o que fazemos. A caixa-preta de Medeiros estava aberta numa tela de computador, apenas codificada em uma linguagem exótica. “Imagina que você está colocando um microfone numa arquibancada de futebol”, sugere Cury. “A diferença é que o que a gente registra ali é a conversa dos neurônios, é atividade elétrica.” De repente, um ruído particular, que vibrava numa frequência específica, interrompeu o silêncio da sala de cirurgia. Soava como se alguém esfregasse um plástico-bolha. Um expectador inexperiente talvez não conseguisse reconhecê-lo, mas, aos ouvidos apurados de Cury, o som era inequívoco: eles haviam encontrado o alvo no núcleo cerebral. Cada neurônio tem uma assinatura eletrofisiológica específica, que funciona como uma espécie de digital. O Parkinson é uma doença estudada há muitos anos e, por isso, esses marcadores estão bem descritos na literatura científica. Os médicos estavam prontos para inserir os eletrodos definitivos. 

Para seguir com a operação, os neurocirurgiões retiraram o eletrodo-teste e começaram a inserir os dois eletrodos permanentes, que têm a espessura de uma carga de caneta. O engenheiro Antônio Carlos Medeiros estava acordado e consciente a essa altura da cirurgia (por mais contraintuitivo que pareça, o cérebro não tem receptores para sensações dolorosas, o que significa que os humanos não sentem dor neste órgão). O neurologista, então, ligou os eletrodos a uma fonte de energia e começou a testá-los, modulando a corrente elétrica enviada ao cérebro do paciente. Ainda na mesa de cirurgia, Medeiros levantou os braços e as pernas. Estava livre dos tremores, não sentia nenhum formigamento, nem cansaço muscular. O médico pediu que ele fizesse um movimento de pinça com os dedos. A tarefa, que tornara-se custosa por causa do Parkinson, de repente voltou a ser simples. “Parecia mágica”, ele lembra. Naquele momento, com os eletrodos ligados, o engenheiro conseguiu fazer o que há muito tempo a rigidez facial lhe havia impedido: ele sorriu.

Depois de uma rápida recuperação, Medeiros voltou ao Maranhão. Neste primeiro ano, só precisa ir a São Paulo de três em três meses para fazer o acompanhamento com o neurologista Rubens Cury. A corrente elétrica é modulada, a depender da gravidade dos sintomas e da necessidade de mais estimulação. Esse tipo de cirurgia – com níveis de tecnologia diferentes – já é feita há pelo menos duas décadas no mundo e desde 2008 é oferecida pelo SUS. De lá para cá, o Ministério da Saúde já contabilizou 591 cirurgias para tratamento de Parkinson com estimulação cerebral, como a realizada no engenheiro Antônio Medeiros. Seu procedimento foi feito pelo plano de saúde em uma clínica particular. Independente de onde a cirurgia é realizada, em todos os casos os pacientes recebem o estímulo elétrico de forma contínua, 24 horas por dia, todos os dias. Medeiros, por exemplo, só pode aumentar ou diminuir a corrente elétrica durante as consultas periódicas, em que o neurologista avalia se a estimulação programada ainda é suficiente para controlar os sintomas do Parkinson. Mas agora os pesquisadores estão mais ambiciosos: querem deixar para trás a modulação cerebral manual e inaugurar em definitivo a era da interface cérebro-máquina. 

“As pessoas não têm uma vida regular: os sintomas mudam [de intensidade] entre os dias – ou até dentro do mesmo dia”, explica o neurologista Rubens Cury, professor da USP e coordenador do ambulatório de DBS do Hospital das Clínicas da universidade, o maior polo de pesquisa em DBS da América Latina. “E se nós tivéssemos uma estimulação que se adapta ao estado da pessoa em tempo real? Seria lindo”, diz ele, sem esconder o fascínio pelo tema. Isso significa que se o paciente estiver com o corpo mais rígido ou tremendo mais, a estimulação elétrica aumentaria sozinha. Caso a pessoa esteja sob efeito da medicação, mais “solta”, a corrente também diminuiria automaticamente. “E isso se estende para pacientes com depressão, ou transtorno obsessivo compulsivo”, diz Cury. Para isso, a bateria implantada no tórax, além de mandar impulsos elétricos para o cérebro, precisaria entender que aquele paciente está tremendo mais ou que está passando por um período de crise depressiva. É como se o computador pudesse vigiar a mente e saber o que está acontecendo com o corpo. “A gente já consegue fazer isso, já temos capacidade de ensinar o computador a reconhecer sinais cerebrais do estado da pessoa”, diz Rubens Cury. Parece ficção científica, mas é neurotecnologia. 

Para ensinar uma máquina a entender o que se passa no cérebro, os pesquisadores precisam estudar nossa atividade neural – aquela barulheira que apareceu durante a cirurgia do engenheiro Antônio Medeiros. O desafio é traduzir a conversa de neurônios, procurando padrões em meio à algazarra cerebral. No meio científico, essa atividade é chamada de decodificação. “Se eu colocar eletrodos superficiais na sua cabeça [como num eletroencefalograma] e pedir para você abrir e fechar a mão mil vezes, eu posso olhar para a atividade dos seus neurônios e encontrar um padrão, um ‘barulho’ que se repete quando você faz isso”, explica Cury. Depois, os pesquisadores enviam essa informação para o computador e um algoritmo matemático começa treinar a máquina, basicamente ensinando a ela que toda vez que aquela certa atividade neural for registrada, significa que alguém está tentando abrir e fechar a mão. A teoria é simples, mas essa operação pode durar meses ou até anos. Ainda assim, o campo da interface cérebro-máquina está avançando numa velocidade avassaladora.

Em março deste ano, um estudo liderado por pesquisadores da Universidade de Tübingen, na Alemanha, mostrou como, pela primeira vez, um implante cerebral permitiu que uma pessoa com paralisia completa expressasse seus pensamentos. O participante da pesquisa, um homem de 32 anos com esclerose lateral amiotrófica (ELA), não conseguia mexer um único músculo do corpo e não era sequer capaz de mover os olhos. Recebeu dois conjuntos de eletrodos na parte do cérebro que controla os movimentos. Depois de alguns esforços malsucedidos, o paciente conseguiu ajustar seus sinais cerebrais e indicar respostas de “sim” e “não”. 

Usando apenas o pensamento, ele pôde escolher primeiro um grupo de letras e, em seguida, letras individuais dispostas num computador. Em poucos meses, ele produziu suas primeiras frases inteligíveis – geralmente direcionadas aos cuidadores, para que o reposicionassem na cama ou trocassem sua roupa de dormir. Com o passar do tempo, conforme a operação se tornava mais fácil, o paciente formulou dezenas de frases. “Sopa goulash e sopa de ervilha doce”, disparou ele. “Eu gostaria de ouvir o álbum do Tool alto”, pediu certa vez. No dia 251 do experimento, ele interagiu com seu filho de 4 anos. “Eu amo meu filho legal”, disse, antes de perguntar se o rapaz gostaria de assistir a um filme do Robin Hood com ele. 

Esse tipo de tecnologia também faz com que seja possível mover objetos mecânicos sem tocá-los, usando só o pensamento. Pesquisadores de uma universidade em Grenoble, na França, registraram o feito num vídeo que parece retirado do filme Matrix. Nele, um paciente imóvel, rodeado por fios e telas, consegue guiar uma cadeira de rodas motorizada à distância, fazendo com que ela siga em frente, vire à direita ou à esquerda – tudo isso pensando nesses movimentos. “A máquina aprendeu quais sinais cerebrais significam ‘querer virar à esquerda’ e executa isso”, explica Cury, que fez pós-doutorado na cidade francesa. A mesma ideia é replicada em experimentos com braços e pernas robóticos, em pessoas que já não movem os membros. São pacientes que perderam a ligação entre o córtex motor e os músculos, mas ainda têm a cognição intacta – por isso, apenas se imaginar em movimento já é suficiente. 

Em entrevista recente à revista The New Yorker, o neurocientista Adrian Owen, que estuda interface cérebro-máquina na Universidade Western, no Canadá, subiu o sarrafo das expectativas sobre a neurotecnologia. “Não tenho dúvidas de que, em algum momento, seremos capazes de ler mentes. As pessoas serão capazes de articular ‘Meu nome é Adrian, e eu sou britânico’, e nós poderemos decodificar isso em seus cérebros”, vislumbra ele. Owen acredita que isso ocorrerá num futuro distante, daqui a duas décadas, no mínimo. Ainda precisamos de tecnologia – e tempo – para decodificar um pensamento completo (por exemplo, uma frase inteira), em vez de responder apenas “sim” ou “não” para escolher letras em um teclado. Mas a proposta, por mais absurda que pareça, não está tão longe da realidade. Afinal, os pensamentos, por mais abstratas que sejam suas definições, são formados por sinais elétricos trocados entre neurônios. A inteligência artificial já transformou a forma como os cientistas leem os dados neurais. Agora eles querem mais. 

Outros pesquisadores, porém, são céticos em relação aos limites da tecnologia. “Essa definição de ler pensamento é muito genérica. Nós pensamos muita coisa ao mesmo tempo”, diz Lucas Trambaiolli, que pesquisa neurofeedback na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Basta imaginar uma pessoa multitarefas, que dirige enquanto conversa com alguém e, ao mesmo tempo, tenta se lembrar se trancou a porta de casa. “Ler tudo isso em tempo real? Estamos longe disso. Para falar a verdade, a gente nem entende como tudo isso funciona ainda”, completa Trambaiolli. A ciência sabe que partes do cérebro estão relacionadas a aspectos diferentes da vida – existem redes de controle motor, de atenção, de processamento visual, do campo afetivo etc. Mas ainda não sabemos exatamente qual o papel específico de cada neurônio, nem como eles se conectam. 

Em 2005, pesquisadores ingleses estavam monitorando a atividade neural de alguns voluntários quando notaram um fenômeno curioso. Toda vez que mostravam fotos da atriz norte-americana Jennifer Aniston, um neurônio específico no cérebro dos voluntários entrava em atividade, aumentando a geração de impulsos nervosos. Quando a mesma pessoa recebia fotos de outras celebridades, como Tom Cruise ou Oprah Winfrey, a atividade elétrica ocorria em células totalmente diferentes. Além do neurônio Jennifer Aniston – alcunha dada à célula que abrilhantou o estudo –, um ser humano tem, em média, outros 86 bilhões de neurônios. Grande parte deles (e suas tarefas superespecíficas) ainda são um mistério para a ciência. Mas se um deles reage à Jennifer Aniston, então provavelmente há outros que reajam a diferentes ideias, emoções, conceitos e movimentos. É esse tipo de informação que vai ampliar o leque de aplicações da interface cérebro-máquina. Para isso, os pesquisadores precisam antes decifrar o significado dessa quantidade absurda de sinais. A boa notícia é que eles nunca estiveram tão dedicados a essa tarefa.

“O que está acontecendo agora é uma corrida mundial”, define Rubens Cury, da USP. “Todos os grupos de neuromodulação estão atrás dos sinais eletrofisiológicos.” Na corrida para decifrar o código da mente estão cientistas, universidades, tradicionais empresas do ramo, startups e bilionários. Um dos competidores é a NextSense, uma startup que nasceu no Google e que promete vender fones de ouvido sem fio, capazes de melhorar a saúde do cérebro enquanto coletam milhares de dados. A ideia é que esses aparelhos substituam os eletrodos de eletroencefalograma – caros e desconfortáveis – e vasculhem o cérebro em busca de informações sobre nosso humor, atenção, padrões no sono e períodos de depressão. É como um smartwatch, só que ainda mais inteligente. A NextSense planeja enviar seu dispositivo para aprovação do FDA (a agência reguladora dos Estados Unidos) ainda neste ano, o que pode se tornar um divisor de águas no campo da interface cérebro-máquina.

Além de milhões de dólares em financiamento, a startup já firmou parcerias com universidades e empresas farmacêuticas para explorar os usos médicos de seus fones de ouvido. Espera-se que os fones da NextSense ajudem a avaliar a eficácia de medicações para epilepsia, depressão e outros problemas de saúde mental. “O paciente não vai precisar dizer se está se sentindo bem ou mal, o cérebro dele vai mostrar para o psiquiatra ou neurologista os efeitos do tratamento”, explica Rubens Cury, coordenador de uma pesquisa no Hospital das Clínicas que desenvolve essa mesma forma de análise para a doença de Parkinson. O bilionário Elon Musk – que já investiu em carros elétricos, viagens espaciais e recentemente ensaiou a compra do Twitter – também é fundador de uma startup na área, a Neuralink. Com uma proposta ainda mais ambiciosa, sua empresa pretende implantar chips cerebrais para captar os sinais neurais de pacientes com problemas cognitivos e tratar uma série de doenças com estimulações elétricas.

As máquinas atuais de interface cérebro-máquina não são rápidas. Os experimentos com braços robóticos e teclados para comunicação às vezes demoram anos para ficarem prontos. Os especialistas preveem um salto tecnológico nos próximos anos, graças à atuação de empresas que agora investem pesado em novas tecnologias. Isso não acontece ao acaso: a população mundial está envelhecendo mais, morrendo mais tarde e, consequentemente, ficando mais debilitada. Trata-se de um mercado gigantesco à espera de uma solução – e quem largar na frente terá vantagem. “Essas startups têm dinheiro e pessoal trabalhando 100% do tempo no desenvolvimento de pesquisa”, diz Lucas Trambaiolli, de Harvard. “E além disso não estão lidando com toda a burocracia e coisas que os acadêmicos precisam lidar, que acabam tomando muito tempo.”

Essa corrida desenfreada, contudo, traz desafios éticos. Os pesquisadores, quando fazem um estudo, precisam se submeter a um comitê de ética e normalmente filtram o escopo do trabalho para não vasculhar conversas neurais que não trazem implicações clínicas. Ainda não está claro como isso vai funcionar no mercado das grandes empresas. “Existe invasão maior de privacidade do que saber o que você está pensando?”, lembra o neurologista Rubens Cury. “Hoje sabemos que isso é usado para trazer benefícios. Mas se você olhar para o futuro, a coisa começa a ficar louca.” Até os especialistas têm dificuldade de prever o que será possível fazer com tanta informação. Quando finalmente aprendermos a falar a língua dos neurônios, as possibilidades serão infinitas.

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