Com a eleição de Bolsonaro, as Forças Armadas assumirão a partir de janeiro próximo o maior protagonismo na gestão do Estado brasileiro do que tiveram nos últimos mais de trinta anos. Em princípio, a volta de militares a posições destacadas de poder não representa ameaça à democracia, a menos que elas se deixem arrastar pelos impulsos autoritários do presidente eleito. Essa possibilidade parece remota, a julgar pela obediência constitucional das Forças Armadas desde o fim do regime autoritário e pelas reiteradas declarações de seus principais oficiais hoje na ativa. Em que pesem as conjecturas do general Hamilton Mourão, vice-presidente eleito, o mais provável é que os militares sejam antes uma força de contenção a quaisquer tentações de afastamento da ordem constitucional.
Se o novo protagonismo das Forças Armadas não é em princípio uma ameaça à democracia, por outro lado não deixará de provocar impactos sobre os modelos de concepção, gestão e implementação de políticas públicas em áreas cruciais para o desenvolvimento do país: infraestrutura, energia, ciência e tecnologia, além da defesa nacional, com suas ramificações na segurança pública (área na qual, por boas razões, as Forças Armadas temem ser chamadas a intervir diretamente).
Os impactos serão tão mais positivos quanto maior capacidade de atualização demonstrarem os militares que assumirem posições de direção em órgãos governamentais.
A economia e a sociedade já não são mais, nem aqui nem no mundo, as mesmas que eram nas décadas em que as Forças Armadas estiveram no poder: os indivíduos, a sociedade civil, as empresas privadas, ganharam maior autonomia; o intercâmbio de ideias, tecnologias, capitais, se intensificaram em escala global; os compromissos internacionais do país se adensaram; a sustentabilidade ambiental se tornou um requisito do desenvolvimento; os Estados nacionais já não têm mais, para bem ou para mal, o poder que tiveram no passado.
Parte da elite militar sabe disso, pois não esteve alheia a essas mudanças, e não raro delas participou. Basta mencionar o projeto de desenvolvimento de aviões de caça em parceria com a Suécia, o desenvolvimento dos novos submarinos brasileiros, em cooperação com os franceses, a chefia das tropas militares da ONU no Haiti e a coordenação de ações de segurança pública em grandes eventos esportivos realizados no país, todas elas iniciativas complexas envolvendo múltiplos atores, diferentes níveis de governo e países.
Resta saber em que medida as mudanças antes referidas foram internalizadas e até que ponto alteraram visões de mundo e práticas historicamente enraizadas nas Forças Armadas. Disciplina, planejamento e patriotismo não perderam valor no mundo contemporâneo, mas para que na prática beneficiem o país precisam ser ajustados a uma realidade que já não mais se amolda a princípios rígidos de comando e controle, hierarquia vertical e especialização compartimentalizada, predomínio inconteste do estatal sobre as forças sociais e de mercado. Disciplina e hierarquia rígidas, nunca é demais lembrar, são indispensáveis, sim, no interior das Forças Armadas, como garantia à manutenção da ordem constitucional e da própria integridade da instituição militar.
Não tenho dúvida de que as Forças Armadas estão abertas à interlocução com a sociedade. Falo isso com base na experiência de quem organizou ao longo dos últimos anos, na Fundação Fernando Henrique Cardoso, diversos encontros públicos com militares e civis para discussão de vários temas da agenda nacional e global. Trata-se não apenas de preservar esses espaços de interlocução, mas também de ampliá-los em quantos fóruns e instituições houver dispostas a tanto.
Nessa perspectiva, faço aqui alguns apontamentos que podem ser úteis para balizar esse diálogo.
Começo pela infraestrutura. Os militares desempenharam um papel histórico marcante na construção de redes nacionais relativamente integradas de telecomunicações, transporte e energia. A partir do início dos anos 80, os investimentos em infraestrutura física declinaram sistematicamente como proporção do PIB, com exceção das telecomunicações, impulsionadas pelo bem-sucedido processo de privatização na segunda metade dos anos 90.
A julgar pelas declarações do general da reserva Oswaldo Ferreira, incumbido do grupo de trabalho voltado ao tema, há clareza no círculo militar próximo ao novo presidente de que a retomada dos investimentos em infraestrutura requer participação crescente do capital privado e melhor regulação setorial, a começar pelo fim do loteamento político das agências reguladoras que campeou solto no ciclo petista.
É um bom ponto de partida, mas insuficiente. O mesmo general revela certa nostalgia do passado quando, em suas palavras, para construir uma estrada “não tinha o Ibama ou o Ministério Público para encher o saco”. Também nostálgico é o apego à ideia de que empresas estatais encarnam interesses estratégicos do país.
Estou longe de ser um ultraliberal, mas me pergunto se manter nas mãos do Estado todas as empresas geradoras do sistema Eletrobras, como por exemplo a Eletronorte e a CHESF, não é antes um indevido tributo pago aos interesses políticos de oligarquias político-empresariais do Norte e Nordeste, respectivamente, que há décadas se servem dessas empresas. Terão os militares a ilusão de controlá-las com mão de ferro? Não estarão expondo a corporação a tentações indevidas? De onde viriam os recursos para fazer os investimentos necessários? Na mesma linha, se não cabe privatizar a Petrobras, por que não abrir o mercado de refino à participação do capital privado nacional e estrangeiro, em benefício do consumidor e da balança comercial? A nomeação de militares para dirigir a empresa estatal de petróleo não é um problema (melhor do que uma camarilha partidária a roubar a companhia). Desde que não suscite a nostalgia da Petrobras monopolista (ou quase), que ressuscitou nos governos do PT e levou a empresa à beira do desfiladeiro.
Outro setor em que os militares tiveram desde o início uma presença marcante é o de Ciência e Tecnologia. O programa nuclear brasileiro nasceu na Marinha e até hoje tem na força naval o seu principal condutor. Sua importância para o país é consensual, embora haja discordâncias legítimas sobre a prioridade que se deva dar à energia nuclear e aos submarinos à propulsão atômica.
Desde a Constituição de 1988 o Brasil renunciou à construção de armas nucleares. Dez anos depois o país se tornou membro integrante do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Os militares jamais esconderam suas ressalvas em relação à adesão ao TNP. Veem aí antes os aspectos supostamente negativos (a perda de um fator de dissuasão e barganha) do que os benefícios do acordo (fim da rivalidade bélica com a Argentina, que também enterrou o objetivo de construir armas nucleares, e proteção contra sanções das grandes potências). Pode-se ponderar sobre a conveniência de assinar o protocolo adicional ao TNP, que prevê fiscalizações mais intrusivas ao programa nuclear brasileiro, mas seria um equívoco monumental alimentar veleidades de dar marcha à ré na história. Simples conjecturas a respeito de uma eventual retirada do TNP causariam danos às relações do Brasil com a Argentina e à imagem já tão machucada do Brasil no mundo.
Desde o Marechal Cândido Rondon, o Exército brasileiro está ligado à questão indígena. Rondon idealizou e foi o primeiro presidente do Serviço de Proteção ao Índio, antecessor da Funai, e um dos grandes defensores do Parque Nacional do Xingu.
Certa ambivalência no texto da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 2007, produto de anos de negociações diplomáticas, despertou nos meios militares o receio de que a definição sobre o direito desses povos aos seus territórios originários colocasse em xeque a soberania do Estado nacional. Tal ambivalência estimulou nas Forças Armadas a suspeita de que o texto servisse deliberadamente a propósitos de grandes potências estrangeiras interessadas em submeter parte do território brasileiro, notadamente a Amazônia, à jurisdição internacional. A questão esclareceu-se posteriormente no âmbito das Nações Unidas. Os quatro países que haviam votado contrariamente à sua ratificação na Assembleia Geral passaram a subscrevê-la: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Trata-se de norma internacional indicativa e não lei vinculante. Com se não bastasse para tranquilizar os espíritos mais inquietos, a interpretação do STF sobre não constituírem os povos indígenas nação ou pátria é inequívoca. Assim como é pacífico o entendimento de que não há obstáculo à presença de militares em terras indígenas situadas em regiões de fronteira.
Apesar disso, Bolsonaro instrumentalizou e vocalizou o medo da perda de soberania ao falar em uma suposta iniciativa Triplo A (Andes, Amazônia, Atlântico) que visaria amputar parte do território nacional. O nosso Quixote ataca inimigos imaginários. A “monstruosa iniciativa” consiste na proposta de criação de um corredor ecológico co-gerenciado pelos países amazônicos, ideia de uma ONG colombiana que ganhou boa acolhida do governo daquele país anos atrás. Nada que, na hipótese de vir a se materializar, implique cessão de soberania territorial e não caiba perfeitamente nos marcos do Tratado de Cooperação Amazônica, firmado em 1978, sob a presidência do general Geisel, por Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador, Suriname e Guiana.
Os militares têm toda razão em afirmar que a soberania nacional sobre o território é inegociável. Não significa isso dizer que o Brasil deva rejeitar compromissos internacionais. Não apenas porque rejeitá-los implicaria danos ou penalidades, mas porque respeitá-los coincide com os melhores interesses nacionais. É o caso da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, assim como o da Convenção sobre o Clima, nos termos do chamado Acordo de Paris.
Pode-se perfeitamente discutir os pormenores práticos da implementação das políticas ambiental e indigenistas. Não há como nem por que evitar a regulamentação do uso do subsolo em terras indígenas, em bases que respeitem a sustentabilidade ambiental e a organização sociocultural dos índios. Mas seria desastroso para o interesse nacional se afastar dos marcos legais que a respeito desses temas inter-relacionados definem a Constituição de 1988 e a jurisprudência que se assentou no STF a partir do início dos anos 90.
A carreira militar tem suas especificidades em comparação com as dos demais servidores do Estado, para não falar no trabalhador do setor privado. A imprescindível reforma dos sistemas previdenciários pode refletir essas peculiaridades, mas jamais a ponto de comprometer o princípio de equidade que deve reger a reforma, sob pena de torná-la politicamente inviável. O déficit do sistema previdenciário dos militares corresponde a aproximadamente metade do déficit total da previdência dos servidores públicos federais. A diferença é que, ao contrário do déficit das aposentadorias e pensões dos funcionários civis, a dos militares apresenta tendência de alta. O problema se agrava porque atinge os estados, aos quais cabem arcar com as despesas com polícias militares inativos e seus pensionistas. Dado o protagonismo que terão, a postura dos militares frente à reforma da Previdência será decisiva para a sorte da reforma em seu conjunto. Uma coisa é certa, se as contas da Previdência se mantiveram na atual trajetória, em breve não haverá mais um tostão sequer para as áreas que as Forças Armadas corretamente enxergam como prioritárias.
Por fim, o tema mais delicado. O general da reserva Aléssio Ribeiro Souto, responsável pelo grupo de trabalho dedicado à educação, manifestou reiteradas vezes a intenção do governo Bolsonaro de rever o material didático e combater a “doutrinação ideológica” nas escolas e universidades, em consonância com o movimento “Escola Sem Partido”. Nesse tema, há muitos pingos fora dos “is”. Primeiro, é preciso constatar que em parte do sistema público de ensino, em particular nas áreas de humanas e no ensino superior, um marxismo em geral raso e dogmático ganhou espaço em detrimento de um debate aberto e pluralista sobre temas históricos e da atualidade. Segundo, é preciso dizer que a reação do movimento “Escola Sem Partido” a esse estado de coisas é equivocada e perigosa, pois em lugar de se bater pelo pluralismo de ideias estimula a intolerância e o cerceamento à liberdade de pensamento e expressão.
Sala de aula não é lugar para proselitismo político-partidário, mas não se combate esse mal com outro maior ainda, mobilizando o Judiciário e, pior ainda, a polícia. Além disso, não existe educação ideologicamente asséptica nas áreas de ciências humanas. Não há problema em que, ao ensinar a matéria, o professor ou professora expressem seus valores – sejam eles conservadores, liberais ou socialistas. O importante é que ele ou ela conheça a matéria e não apenas assegure, mas também estimule, os alunos a expressar e debater seus diferentes pontos de vista. Esse processo enriquece o aprendizado e fomenta a cultura democrática.
Nada incomoda mais os militares do que a prevalência, ao ver da corporação, de uma interpretação unilateral da história do regime autoritário em geral e das atividades repressivas do Estado naquele período, em particular. Os militares têm um ponto ao criticar a glorificação da luta armada. Está mais do que na hora de se reconhecer amplamente que a ideologia que animava os grupos clandestinos pouco ou nada tinha de democrática. Membros das Forças Armadas erram, porém, ao justificar a tortura sistemática de presos políticos – uma política de Estado à época, como hoje está fartamente documentado – em nome de uma suposta guerra contra o comunismo internacional. A justificativa não se coaduna com a realidade nem com os valores da dignidade humana. O justo prestígio social angariado pelas Forças Armadas nos últimos anos em nada depende ou se beneficia da manutenção dessa justificativa.
Diz o clichê que o tempo é o senhor da razão. Lá se vão cinquenta anos dos fatos ocorridos… Mas o tempo por si só não apaga ou resolve os problemas enquanto a razão não se põe a serviço de resolvê-los. Há bons exemplos a seguir. Um deles nos é dado pelo jornalista e historiador Hugo Studart em seu livro Borboletas e Lobisomens: Vidas, Sonhos e … Araguaia (Editora Francisco Alves, 2018), um relato factual cuidadoso, baseado em extensa pesquisa, que não encobre as atrocidades feitas por militares na repressão e extermínio da guerrilha rural naquela região do país, nem sacraliza os guerrilheiros. Mostra-os como seres humanos, movidos por paixões generosas e uma ideologia totalitária, capazes de levá-los a cometer atos heroicos de sacrifício pessoal, mas também, em certos casos, a comportar-se com absoluta indiferença ante o sofrimento alheio. Nos agradecimentos, Studart menciona ex-guerrilheiros e militares que se dispuseram a compartilhar com ele memórias e documentos. Está na hora de curar essa ferida de vez e não há outro modo de fazê-lo se não falar abertamente sobre ela.
O melhor do Brasil está em ser muitos e ao mesmo tempo um só. Cuidemos de manter vivo o que temos de melhor, com a razão democrática e o afeto que se encerra em nosso peito já não tão juvenil.