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Os Miseráveis – catástrofe à vista

Revolta de jovens na periferia de Paris é um sinal de alerta para políticos franceses

Eduardo Escorel | 29 jan 2020_10h22
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“Você acha que o lugar de um leão é no circo?”  Essa e outras perguntas desconcertantes, como “O que deu em vocês?”, além de algumas afirmações perturbadoras (“Eu sou a lei!”; “Eles tiveram razão em exprimir sua cólera.”; etc.), são feitas ao longo de Os Miseráveis, primeiro longa-metragem de ficção do documentarista e ator Ladj Ly. Nascido no Mali, ele cresceu e vive há trinta anos em Montfermeil, famoso celeiro de craques de futebol de origem africana, na periferia leste de Paris, distante apenas 17 km do Centro da cidade.

Baseado em sua experiência pessoal, Ly encena o estado de tensão aguda existente entre jovens filhos de imigrantes e policiais da Brigada Anticrime, a BAC. Conflitos, como os ocorridos de fato, em 2005, no bairro Les Bosquets de Montfermeil, são sempre iminentes, envolvendo também grupos muçulmanos marginalizados e mediadores sociais.

Segundo o jornal Libération, entre outras sentenças, uma das quais levou Ly a ficar preso durante dois anos, ele recebeu condenação de seis meses e multa de 400 euros, em 2011, por ter gravado em vídeo e postado online com “comentário ultrajante” uma cena de violência policial em Montfermeil – situação que ele recria em Os Miseráveis.

Na abertura do filme, a câmera acompanha Issa (Issa Perica), um adolescente a caminho da celebração pela conquista da Copa do Mundo em 2018. A multidão festeja os “azuis”, como é chamada a seleção nacional francesa de futebol. Todos estão unidos na comemoração. A diferença de procedências, etnias e classes sociais parece desaparecer. Forma-se uma comunidade imaginada. No caso, uma comunidade fugaz, como Os Miseráveis deixará claro em seguida.

Na tentativa de encontrar e devolver ao dono o filhote de leão furtado do circo, Chris (Alexis Manenti), chefe da BAC, não sabe o que responder quando Salah (Almamy Kanouté), dono de uma pequena lanchonete, pergunta se o circo é um lugar adequado para o animal. Em outra sequência, é Chris quem gritará “Eu sou a lei!”, posando de monarca absoluto em um acesso sem disfarce de prepotência. E é Salah quem dirá, próximo ao final do filme, sempre no papel de mediador social, que os meninos “tiveram razão em exprimir sua cólera”.

Ly é inequívoco quanto aos objetivos de Os Miseráveis: “Meu filme é, antes de tudo, um sinal de alarme para políticos: aqueles que são responsáveis ​​pelo sistema implantado e que deixaram apodrecer. Eles apenas deixam esse sistema ficar no lugar e sabem muito bem que não funciona.” (Entrevista completa disponível em https://www.slantmagazine.com/features/interview-ladj-ly-on-sounding-an-alarm-bell-with-les-miserables/.) No Huffpost, Ly foi mais contundente: “É neles [os políticos] que jogamos a pedra. E cabe a eles encontrar soluções, mas eles não dão a mínima. Veja Macron, ele lançou o ‘plano subúrbios’, convidou todas as pessoas que era preciso e depois, na véspera, cancelou. Isso é para lhe dizer o total desprezo que ele tem por nós.” 

O filhote de leão furtado termina por ser um pretexto para apresentar os personagens em confronto, o bairro onde o enredo transcorre e a situação que os moradores enfrentam. Quando o ladrão é identificado e Os Miseráveis chega a seu segundo clímax (após a celebração nacional na abertura), pode parecer que o filme está para terminar – o que haveria mais a dizer? Na verdade, porém, transcorreu apenas a primeira parte e o mais importante está por vir.

Com destreza, como quem reduz a marcha do carro, Ly desacelera a narrativa e passa a narrar em cadência mais lenta cenas da vida doméstica dos brigadistas, antes de retomar aos poucos o andamento acelerado do primeiro terço e chegar à apoteótica batalha final que antecede a última cena – o confronto sem desfecho entre o coquetel molotov de Issa e a pistola do policial Stéphane Ruiz (Damien Bonnard), apelidado de Pento (referência a um gel francês que deixa o cabelo lustroso). Frente a frente, ambos hesitam. A cena inconclusa sugere ainda ser possível evitar, de algum modo, a catástrofe final.

Ly só vacila quando sublinha a suposta filiação literária do seu filme ao clássico de Vitor Hugo, publicado em 1862. Além de ter o mesmo título e ser filmado em Montfermeil, onde Hugo escreveu o romance e situou a estalagem dos Thénardier, Issa é uma versão contemporânea do filho do casal, Gavroche, menino que recolhe munição nas trincheiras da batalha entre revolucionários e o exército. Não satisfeito com esses elos, alguns tênues e irrelevantes para o espectador, no encerramento do filme Ly recorre a uma célebre citação de Hugo. Ela surge na tela após a última imagem, em letras brancas sobre fundo preto – “Meus amigos, nunca digam que há plantas más ou homens maus. O que há são maus cultivadores.” Ao explicitar desse modo a relação com o romance, Ly revela insegurança em relação à potência autônoma do que realizou, deixando transparecer ainda certo menosprezo pela capacidade de compreensão do espectador. Não há, porém, o que temer. Independente das ligações com o romance de Hugo, a força e clareza de Os Miseráveis – um filme simples e direto – são justamente duas de suas maiores virtudes.

O mínimo a ser dito sobre Os Miseráveis é que se trata de um acontecimento incomum, resultante da conjugação perfeita entre a relevância do tema e a qualidade das diversas faces de sua realização cinematográfica. Mesmo assim, tendo estreado no Brasil em 16 de janeiro, nos primeiros quatros dias de exibição em vinte cinemas teve apenas 6 992 espectadores, sofreu queda de público de 50% no segundo fim de semana, e chegou a apenas 14 073 ingressos vendidos até o final do segundo fim de semana em cartaz.

No Festival de Cannes, em 2019, Os Miseráveis recebeu o Prêmio do Júri ex-aequo com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho. Vale observar a diferença entre o realismo de um e a fantasia do outro, sendo ambos, coincidentemente, histórias de revoltas populares. Sábado passado (25/1), Os Miseráveis recebeu, em Madrid, o Goya 2020 de Melhor Filme Europeu e, embora não esteja entre os favoritos, concorre ao Oscar de Melhor Filme Internacional a ser entregue em 9 de fevereiro.

Segundo Jean Labadie, distribuidor francês de Os Miseráveis citado no jornal Libération, Ly teria recebido uma mensagem de felicitações do presidente Emmanuel Macron, quando o filme foi premiado em Cannes, na qual o presidente perguntava se seria possível assistir a Os Miseráveis no Palácio do Eliseu, residência oficial da Presidência. O diretor teria respondido que estava preparado para organizar uma projeção em Montfermeil quando Macron quisesse, mas não teve retorno. Em novembro, pouco antes da estreia na França, Labadie recebeu novo pedido do Eliseu e voltou a responder que estavam dispostos a organizar uma projeção em Montfermeil, mas que não poderia ser agendada e acabaram mandando uma cópia em DVD. Consideraram que seria uma gentileza fornecer o filme “mas sabemos também que é muito arriscado. Nós podemos ser objeto de cooptação política em pleno lançamento”, declarou o distribuidor. Ly acabou tendo notícia de que Macron “assistiu ao filme, ficou muito comovido e que o governo estaria estudando medidas para ajudar esse tipo de bairro”. Segundo o Libération, o comunicado não passou de uma forma de “neutralizar o filme” e não se comprometer.

 

 

 

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