Foi uma maratona. Em quase quarenta dias em Brasília, ela percorreu cinco ministérios, doze secretarias, dois órgãos de controle, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, o Banco Central e a Presidência da República, além de fazer até um encontro virtual com a onipresente Luiza Trajano, presidente do conselho do Magazine Luiza. Nada disso foi suficiente para que a então presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Susana Cordeiro Guerra, conseguisse convencer os legisladores brasileiros a destinar 2,3 bilhões de reais para a realização do recenseamento da população em 2021. Embora todas as autoridades tenham reconhecido a importância do Censo, o texto produzido pelo relator do Orçamento, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), previa um corte de 96% nas verbas para o órgão, inviabilizando a pesquisa por completo. Susana Guerra pediu demissão.
O deputado federal Felipe Carreras (PSB-PE), sub-relator de economia da Comissão Mista de Orçamento, se sensibilizou com o pleito e escoltou Guerra em sua peregrinação pelos gabinetes. “Eu a acompanhei e garanti, no texto, o orçamento que ela queria. Mas infelizmente isso foi derrubado”, conta o parlamentar. Foi o próprio senador Bittar quem assumiu a autoria da canetada que cortou o Censo, alegando que a coleta presencial de dados oferecia um risco sanitário, em razão da pandemia. O ministro da Economia, Paulo Guedes, atribuiu ao Congresso a responsabilidade pelo corte durante uma coletiva realizada no dia 28 de abril, logo depois que o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, determinou que a pesquisa fosse realizada. Na mesma ocasião, Guedes também disse que ia se “informar a respeito” do que havia acontecido. E terminou a entrevista respaldando o argumento do perigo de contágio defendido por Bittar.
Ao longo de 2020 e 2021, o IBGE preparou um plano para fazer o Censo a despeito da pandemia. Ele foi validado pelos técnicos do Ministério da Economia e apresentado aos parlamentares, que se mostraram, ao menos publicamente, convencidos de que as medidas de proteção eram eficazes. Na véspera da produção do relatório final do orçamento, a equipe do IBGE estava segura de que o senador Bittar compreendera a necessidade da pesquisa, já que ele não mostrara qualquer resistência à realização do Censo e ao plano de proteção sanitária. Na madrugada do dia 22 de março veio a surpresa do corte, proposto pelo senador e avalizado pela Casa Civil, chefiada pelo general Eduardo Ramos. O próprio Executivo foi sócio da operação.
Embora o ministro Guedes tenha dito que precisava se “informar a respeito”, entre os meses de fevereiro e março a presidente do IBGE teve dezessete reuniões no Ministério da Economia, em Brasília, para tratar do Censo. Três delas, em 11 de fevereiro, 17 e 26 de março, foram com o próprio ministro. Na última, ela entregou o cargo. Em reuniões que eram ocasionalmente acompanhadas por técnicos da Economia, Guerra fazia uma solitária defesa da pesquisa, sem contar com o endosso verbal do Executivo. Participantes das reuniões contam que ela chegou a sugerir que os técnicos do Ministério a apoiassem de forma mais enfática. Mas, internamente, eles afirmavam que a pasta já havia cumprido o seu papel ao pedir a dotação orçamentária para o IBGE. Nos bastidores, os secretários da Economia estavam mais preocupados em resolver as divergências orçamentárias com o Congresso em torno das emendas parlamentares – só as do relator somam quase 30 bilhões de reais.
Circular por gabinetes em Brasília não era a especialidade de Susana Cordeiro Guerra, 39 anos, que é economista e funcionária de carreira do Banco Mundial, vivendo há mais de vinte anos nos Estados Unidos, onde estudou e trabalhou. Ela fez graduação em Harvard, onde também se especializou em Desenvolvimento Internacional, e concluiu o PhD em Ciências Políticas e Governo pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). Foi indicada para o IBGE por Paula Guedes, filha do ministro. Como é funcionária concursada do Banco Mundial, Guerra foi cedida para o governo brasileiro em 2019, ano em que deixou Washington, onde fica a sede da instituição, e voltou para o Rio de Janeiro, sua cidade natal.
Em 2019, assumiu um IBGE que, nos quatro anos anteriores, enfrentara severos contingenciamentos orçamentários e redução de pessoal, em razão de aposentadorias que não eram repostas por novos funcionários. Em 2018, ainda no governo de Michel Temer, o Congresso não aprovou a verba necessária para começar o preparo do Censo de 2020. Dos 344 milhões de reais previstos, apenas 250 milhões foram liberados para o início de compra de equipamentos e treinamento de pessoal. Em 2019, quando a nova gestão assumiu, nada havia sido comprado. Em 2020, o Censo foi cancelado consensualmente, diante das incertezas da pandemia, e seu orçamento foi destinado para o Ministério da Saúde.
A partir de então, um plano passou a ser elaborado para que a pesquisa fosse realizada em 2021 mesmo com a pandemia. Os cerca de 200 mil funcionários contratados em caráter temporário seriam treinados com protocolos de saúde desenvolvidos pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap) especificamente para o Censo, portariam equipamentos de proteção, os chamados EPIs, e seriam previamente vacinados, conforme aval já obtido junto ao Ministério da Saúde. Caso a pandemia não estivesse em desaceleração, o plano previa adiar o início dos trabalhos em até três meses. O argumento do IBGE era de que o potencial de contágio da coleta de dados seria muito inferior ao de outros eventos realizados durante a pandemia, como o Enem e as eleições municipais.
OBrasil está há onze anos sem Censo — o que iguala o país a Estados como o Afeganistão, o Congo e a Líbia, que também não reúnem dados estatísticos atualizados, segundo informa a carta pública assinada por ex-presidentes do IBGE instando as autoridades a preservar a pesquisa. A Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda que os Censos sejam realizados em anos “zero”. Não só o Brsil, como dezenas de outras nações postergaram os planos de contagem no ano passado, temerosos dos efeitos do coronavírus. Países como os Estados Unidos e o México foram exceção: mantiveram a coleta de dados. O que aproxima o Brasil do Afeganistão e o distancia dos que adiaram a pesquisa no ano passado é o fato de, ao longo da década, nenhum tipo de contagem populacional ter sido feita no país — mesmo em coletas menos detalhadas que o recenseamento. Uma contagem estava programada pelo IBGE para 2015, mas foi cancelada em razão de restrições orçamentárias. À época, o assunto não provocou nenhuma mobilização da sociedade ou do Congresso.
Como a última contagem foi realizada em 2010, o temor dos pesquisadores é de que a série histórica medida em décadas se perca em razão do atraso e prejudique as comparações internacionais. Além disso, quanto mais tempo se leva para atualizar a pesquisa, maior é o seu impacto na distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que é feita com base nos dados demográficos fornecidos pelo IBGE. Outro efeito nocivo do adiamento é o seu impacto em outros levantamentos estatísticos, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), que calcula o desemprego, e nas fórmulas que projetam valores de benefícios sociais, feitas com base na renda das famílias, aferidas pelo Censo.
Batalhar por orçamento para o Censo nunca foi fácil justamente por se tratar de um evento circunstancial — e não uma pesquisa anual. Mas não se tem notícia de outro episódio em que um técnico do órgão tenha sido deixado na chuva em busca de recursos que jamais iriam chegar — destino que todos pareciam saber, exceto o próprio IBGE. Em sua jornada em Brasília, Susana Guerra só não foi ao STF — e é justamente ali que está a última esperança de manutenção da pesquisa.