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questões da infância

Os nem-nem da adoção

Adoções caíram na pandemia; de 30 mil crianças e adolescentes em abrigos no Brasil, 25 mil estão no limbo – nem voltaram para as famílias nem entraram na fila para serem adotadas

Lianne Ceará | 14 dez 2021_15h38
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O desejo da psicopedagoga Renate Priebe, 49, sempre foi ser mãe, mas ela não sentiu confiança para isso no primeiro casamento. No segundo relacionamento, o tempo virou inimigo, e por via biológica já não era mais possível. Mesmo assim, diante da opinião negativa de alguns familiares, ela e o marido tinham receio de adotar uma criança. Em abril de 2017, Priebe viveu o que chama de “luto pela impossibilidade de ser mãe de barriga”, com toda a ansiedade e a culpa que costumam acompanhar esses processos. Decidida a deixar o luto para trás, começou a pesquisar sobre o processo de adoção e decidiu, com o marido, Sidnei Castro, 57, dar entrada no processo junto ao Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre. Desde que apresentou os documentos e foi habilitada para adotar uma criança, em janeiro de 2018, o casal tem uma pasta onde guarda todos os papéis relacionados à espera de seu filho ou filha. 

Desde 2018 o casal gaúcho se junta aos 32,7 mil pretendentes aptos para adoção espalhados pelo Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Atualmente, o Brasil tem 29,5 mil crianças e jovens acolhidos em abrigos e orfanatos. Desses, 16 mil foram abrigados no último ano (10 mil só nos últimos seis meses), ou seja, já entraram durante a pandemia, o que pode indicar que muitos são filhos de pais e mães levados pela Covid. Mas é certo afirmar que a pandemia reduziu o número de adoções: de março a dezembro de 2020, houve 2,5 mil adoções, 10,6% a menos do que no mesmo período do ano anterior. De janeiro a outubro de 2021, o número é ainda pior e tem uma queda de 18,6% com relação a 2019.

No entanto, de todas as crianças e adolescentes em abrigos, 4,1 mil já cumpriram todos os trâmites legais e são considerados aptos para adoção. A cada 100 crianças disponíveis, o Brasil tem 800 pretendentes habilitados a adotar. Outro fator que aumenta a fila são as exigências sobre o perfil dos adotados – a maioria dos habilitados aceitam crianças com até seis anos de idade; em contrapartida, a maior parte das crianças disponíveis, 1,1 mil, são maiores de 15 anos, e só 892 têm menos de seis anos. A advogada e presidente da comissão de adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Silvana Moreira, afirma que as exigências sobre as crianças vêm caindo e que o real problema não é esse. “O problema não é o perfil restrito dos habilitados, que já mudaram e aumentaram muito. Os habilitados não têm culpa de as crianças envelhecerem nos abrigos muitas vezes sem a destituição do poder familiar”, diz. Em 2010, 31% dos pretendentes aceitavam adotar crianças de qualquer etnia. Hoje, são 39,6%.

As outras 25,2 mil crianças são aquelas que, embora já estejam em abrigos, não foram oficialmente desligadas de suas famílias biológicas. Muitas são filhas de pais vivos. Os motivos que mais levam crianças aos abrigos são diversos, mas os mais comuns são protegê-las de situação de vulnerabilidade, abuso, violência familiar ou situação de rua, segundo o CNJ. Ao chegarem ao abrigo, as crianças e jovens devem passar pelo processo de busca familiar. Caso os parentes não sejam localizados, os jovens enfrentam o período de destituição do poder familiar. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) indica que esse período de institucionalização seja de, no máximo, dezoito meses. O CNJ informou que “depois desse período, o juiz precisa decidir se a criança será reintegrada à família de origem ou se poderá ser adotada”. Já o prazo para destituição familiar é de 120 dias.

Na prática, Silvana Moreira afirma que os prazos são comumente extrapolados pela própria Justiça. “O prazo de dezoito meses de institucionalização não é respeitado. O de destituição familiar chega a sete anos e meio, em média. Nenhum dos prazos estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente é respeitado, e não há sanção nenhuma. É a lei contrariando a própria lei. Enquanto isso, as crianças passam anos e anos no abrigo, viram filhas do Estado”, explica. Isso tudo faz do Brasil um cenário que a especialista considera “o pior possível”: uma fila longa de gente querendo adotar, quando, na verdade, há muitas crianças em abrigos – mas só 4,2 mil estão disponíveis para adoção. A perda dos prazos e a negligência acabam fazendo com que muitas das crianças e jovens só saiam dos abrigos aos 18 anos, quando já não podem mais ficar. 

“Esses são os nossos nem-nem, estão no limbo jurídico, nem voltaram para a família biológica nem foram disponibilizados para adoção. A maioria sai do abrigo aos 18. Serão filhos de ninguém indo para lugar nenhum”, afirma Moreira. A especialista diz que a pandemia trouxe ainda um grande problema: o aumento do número de órfãos. “De repente, nos deparamos com um alto número de órfãos, que é uma coisa de contexto de guerra”, conta. A advogada lembra um caso que conheceu durante a pandemia: três irmãos, dois meninos, um com sete e outro com um ano de idade, e uma menina, de quatro anos, foram acolhidos durante o ano passado quando a mãe estava internada com Covid. A menina também estava contaminada. A mãe morreu de Covid, e as crianças ficaram no abrigo, onde continuam até hoje. Moreira percebe o problema em seu cotidiano, mas as lacunas nos dados oficiais sobre esse grupo dificultam a real dimensão. À piauí, o CNJ respondeu que não há dados sobre órfãos da pandemia acolhidos. 

 

Para a pretendente Renate Priebe, a pandemia trouxe outra maneira de enfrentar essa espera. No final de 2019, após procurar a comarca responsável pelo seu processo para saber como ele andava e ser orientada a participar de grupos de apoio, decidiu procurar um. Juntou-se ao Travessia, grupo de apoio à adoção do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia. Só chegou a ir para um encontro presencial, mas já pôde sentir o acolhimento. Depois, veio a quarentena e os encontros passaram a ser digitais, uma vez por mês. “Nossa, me faz muito bem, me ajuda nesse processo de amadurecimento, de perceber histórias de adoção que no final deram certo”, conta. Mas nem todos os encontros são tão satisfatórios. A pedagoga também conta do dia em que viu a cena de um bebê encontrado numa sacola em Panambi, no interior do Rio Grande do Sul, que havia sido arremessado de um ônibus em movimento. “Sei que existem muitas outras questões do contexto da mãe que impossibilitavam a criação da criança, mas quando eu penso na situação do bebê eu sinto raiva. Ele vai ter sequelas e traumas que poderiam ser evitados. Acho que existem outros meios, como a própria adoção afetiva, ou chegar ao hospital e dizer ‘não quero’”, reflete Priebe. 

Enquanto isso, o Projeto de Lei 4414, de 2020, de autoria do senador Fernando Bezerra (MDB/PE), que pretende acelerar o encaminhamento de crianças e adolescentes órfãos ou abandonados em contexto de pandemia ou calamidade pública para o cadastramento no sistema de adoção, ainda não foi votado. 

Ao Judiciário, além da orfandade, a pandemia trouxe a dificuldade com a digitalização. “Nosso setor foi a penúltima competência a ser digitalizada”, diz Silvana Moreira, completando que “só agora estão atualizando os processos do Rio de Janeiro, mas isso não aconteceu só aqui”. 

Como a advogada previa, no Rio Grande do Sul, Priebe também enfrentou problemas parecidos e até evita realizar procedimentos relativos ao cadastro de forma online, mas, com o confinamento, foi obrigada. Em dezembro do ano passado, o casal gaúcho renovou o interesse em continuar na fila da adoção através de e-mail. No entanto, em outubro deste ano, ao ligar para saber como andava o processo, foi informado de que a renovação não tinha sido digitalizada. “Isso já me deu um nervoso. Como assim? A gente oficializou a renovação, fez tudo certinho. Eu tenho tudo na pasta”, lembra. Nos dias que se seguiram, o problema foi solucionado, mas a angústia poderia ter sido evitada. 

Em 2007, Priebe estagiou em abrigos de Canoas, no Rio Grande do Sul, e nem sonhava em adotar, mas via as crianças, os prontuários de cada uma e refletia sobre a trajetória delas. Hoje, se emociona ao pensar que seu filho ou filha pode ser um deles. “É estranho falar que estou na fila, porque essa espera, na verdade, é uma gestação. Só não tem um prazo definido como na biológica, e a criança já vem com uma história. Me emociono ao pensar que a minha criança já está lá.” No próximo dia 23, Renate completa 50 anos e confessa que o melhor presente seria o fim dessa espera, que já dura quase quatro anos.

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