Vírus não têm registro de nascimento nem passaporte. Não são sequer considerados, por uma parte de nós, humanos, como seres vivos. Mas todos têm, como nós, um código genético, uma espécie de manual para reprodução. E esse código muda, tem mutações; dá origem a variantes, na medida em que o vírus vai pulando de pessoa em pessoa. Quando falamos dos “nossos coronavírus”, estamos falando dos vírus “nascidos aqui”, ou seja, surgidos de mutações nos seus códigos genéticos ocorridas em pessoas no território brasileiro. Mais adiante, quando falarmos da variante de Manaus, descoberta no Japão, estaremos, portanto, nos referindo a uma mutação do coronavírus encontrada em pessoa que estava em Manaus, embora o coronavírus mutante que ela abrigava tenha sido identificado no Japão, onde foi examinada.
O código genético básico usado como referência nos diversos laboratórios para identificar as mutações locais é o da primeira identificação do vírus, divulgada pelos chineses em janeiro de 2020, a partir dos vírus obtidos dos pacientes de Wuhan, na China.
- OS VÍRUS COMUNISTAS DE TRUMP E DOS BOLSONARISTAS
A primeira tentativa de dar uma nacionalidade ao coronavírus foi política. E partiu da dupla Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos, e seu secretário de Estado, Mike Pompeo. No início de maio do ano passado, quando os Estados Unidos superavam a marca do milhão de infectados pelo coronavírus e tinham contabilizado mais de 66 mil mortos pela doença que causava, Trump disse, numa cerimônia na Casa Branca, que o vírus foi o pior ataque que o país já tinha sofrido em sua história e culpou a China por não ter controlado a doença. “Isto é pior do que Pearl Harbor. Isto é pior do que o World Trade Center”, disse, referindo-se aos ataques dos japoneses contra a base norte-americana no Havaí, em 1941, e dos terroristas islâmicos contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, em 2001, a primeira com 2 400 e a segunda com cerca de 3 mil mortes. “Isso [a pandemia] nunca deveria ter acontecido. Isso deveria ter sido parado na China. Deveria ter sido parado na fonte. E não foi.”
Logo em seguida, Pompeo disse ter “enormes evidências” de que o vírus era produto de um laboratório de Wuhan, a cidade chinesa na qual a pandemia começou. “A China tem uma história de infectar o mundo. E tem também um histórico de laboratórios de baixo padrão.” Tanto Pompeo como Trump, de início, sugeriam que o vírus era fabricado, teria sido produto de engenharia genética no tal laboratório de Wuhan, de onde teria escapado por desleixo. E, mesmo agora, com Biden no lugar de Trump, os norte-americanos estão pedindo que a OMS revise suas conclusões sobre a origem do vírus para checar mais uma vez a hipótese de um escape acidental do laboratório chinês.
No Brasil, também no ano passado, a teoria de um comunavírus, um vírus comunista chinês, foi apresentada em reunião ministerial pelo então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e recebida pelo riso entusiasmado do presidente Jair Bolsonaro. Mais recentemente, o ministro da Economia, Paulo Guedes, voltou a se referir ao vírus chinês, para fazer graça, sugerindo que os chineses fizeram o vírus, mas a vacina norte-americana era melhor; e só se desculpou pela bobagem depois de saber que sua fala tinha sido gravada.
Hoje, o vírus tem um nome científico: Sars-CoV-2, referente ao fato de ele ser o segundo da família dos coronavírus e à doença básica que provoca, em inglês severe acute respiratory syndrome, ou, em português, síndrome respiratória aguda severa. E, sobre a origem do vírus, uma comissão da Organização Mundial da Saúde, formada por especialistas de vários países, esteve na China no início deste ano e chegou a duas conclusões. Uma: “é muito provável” que o Sars-CoV-2 seja um dos vários vírus que passam de animais – no caso, os morcegos – para os seres humanos. A outra: é “extremamente improvável” que o vírus tenha escapado de um laboratório.
E o que pode ter pesado mais para tirar a graça da piada do vírus comunista chinês: foram os chineses que adotaram o uso de máscaras e o lockdown, o fechamento de locais públicos para impedir as aglomerações e proliferação da doença, que ataca as vias respiratórias preferencialmente e têm nos seres humanos a sua fonte de reprodução. O sucesso dessas medidas é um fato. Até agora na China são menos de 5 mil mortos, numa população de 1,4 bilhão de habitantes – contra mais de 600 mil mortos nos Estados Unidos e mais de 500 mil no Brasil, com populações muitos menores.
- MUDARAM OS VÍRUS OU MUDAMOS NÓS, OS BRASILEIROS?
No início deste ano, ficou claro que o Brasil vivia uma segunda onda da Covid-19, ao se aproximar da média de mil óbitos diários causados pela doença. Meio ano antes, esse número fora atingido no topo de uma primeira onda. A partir dali, as mortes entraram em queda contínua, diminuindo: na primeira semana de novembro eram 340 por dia. Em seguida, começou a nova escalada, e a média de mortes, em meados de abril deste ano, foi a mais de 3 mil por dia. O que teria levado à nova onda de infecção? Mudaram os vírus? Mudamos nós? De fato, as duas coisas.
Como se sabe, temos um sistema imunológico, um sistema natural de imunização, de defesa de nosso organismo. Quando somos atacados por seres como vírus e bactérias, esse sistema produz e faz circular, pelo conjunto de canais do chamado sistema linfático, os anticorpos, estruturas diminutas, mas com capacidade de localizar, acoplar-se ao invasor e destruí-lo. O sistema tem uma memória: guarda a receita para produzir os anticorpos específicos, caso o invasor tente nos infectar novamente. E disso surge a chamada imunidade de rebanho: o vírus já infectou tanta gente que a probabilidade de ele encontrar alguém por perto, ainda sem defesa imunológica, para infectar, torna-se mínima.
Nós mudamos, mas os vírus também mudam. E mudam mais e mais estruturalmente. Os vírus, num aspecto, o de sua química, são como nós: formados por duas substâncias básicas, as proteínas e os ácidos nucleicos. As proteínas são responsáveis por quase todas as funções das células. E os ácidos nucleicos armazenam os genes, nos quais ficam as informações que definem tanto as características dos seres como as instruções para a construção das proteínas.
Os vírus, no entanto, são muito mais simples: enquanto o nosso genoma tem cerca de 20 mil genes, os vírus são como cápsulas de proteínas carregando seus genomas, de meia dúzia a poucas dúzias de genes. E são minúsculos. Um coronavírus tem cerca de 90 nanômetros de comprimento. Um nanômetro é um milésimo de milímetro. E o milímetro você pode ver: as réguas escolares comuns têm 30 centímetros, cada um dividido em dez milímetros.
Não é pelo fato de serem diminutos que os vírus não são considerados seres vivos. Mas porque não têm as características básicas que nós, seres humanos, definimos: seres vivos são os que têm, como nós, nas suas próprias células, as instruções genéticas e a estrutura física para se reproduzir e se alimentar. Os vírus são parasitas: invadem células vivas, de animais ou vegetais, injetam nelas seus poucos genes e proteínas e forçam seus hospedeiros a fazer réplicas de si mesmos.
Um vírus entra numa célula e, um dia depois, pode ser que mil vírus saiam desse conjunto vivo copiador. E, como nele podem ocorrer erros, dele saem mutações, variantes: o mesmo vírus, mas com o genoma alterado. E saem também duas outras qualidades dos vírus. Uma, boa para eles próprios: as mutações podem modificá-los de forma a ajudá-los a se espalhar mais rapidamente. E a outra, relativamente ruim para eles: se a variante é mais letal do que a que lhe deu origem, mata mais; quando isso acontece, o vírus perde hospedeiros que o ajudariam no seu esforço essencial de alimentação e reprodução por cópia.
3. TRAGÉDIA DE MANAUS. E O ENTERRO DAS PRESCRIÇÕES DO CAPITÃO CLOROQUINA?
A curiosa história do “coronavírus brasileiro” descoberto no Japão e batizado por lá de “a variante de Manaus” reforça a conclusão de que para conter a gravíssima epidemia em curso no Brasil é necessário apoiar sem hesitação os esforços que estão sendo feitos por uma verdadeira internacional de pesquisadores empenhados nesse mesmo propósito. Essa história será contada por partes. Primeiro, com a extravagante prescrição médica do presidente para intervir no auge da epidemia na capital amazonense.
A cidade foi palco de cenas dantescas provocadas pelo vírus nos primeiros dias deste ano. O número de vítimas internadas com a doença superou logo o número de leitos em unidades de terapia intensiva da cidade. E o volume de oxigênio necessário para colocá-los em regime de respiração artificial também logo superou o contido nos cilindros de oxigênio líquido disponíveis. Familiares chegaram a retirar doentes de hospitais esperando que eles morressem e fossem enterrados mais decentemente em casa – mas mesmo o serviço funerário da cidade entrou em colapso.
Era ministro da Saúde, desde maio de 2020, o general Eduardo Pazuello. Ele fora colocado no cargo após apenas um mês de gestão de Nelson Teich. Este médico tinha sucedido Luiz Henrique Mandetta e se demitido, como declarou agora, no início de maio em depoimento na CPI do Senado, por não endossar a medicação prescrita pelo presidente para prevenir a doença.
A despeito de vários estudos científicos terem mostrado que o uso de cloroquina e drogas aparentadas não têm qualquer efeito positivo no combate à doença, Bolsonaro preferiu tirar do comando da Saúde um médico com ideias próprias e pôr no lugar um general do Exército que resumiu sua postura da seguinte forma: “É simples assim, um manda, o outro obedece.”
A obsessão de Bolsonaro pela cloroquina chegou ao ponto de seus assessores no Planalto terem preparado, como contou Mandetta em seu depoimento à CPI, a minuta de uma decisão da Anvisa, a agência de vigilância sanitária do país, para modificar a bula da droga e incluir entre as suas prescrições a de uso no tratamento inicial da Covid-19. Isso ele não conseguiu, ainda.
Uma das grandes iniciativas da gestão Pazuello, evidentemente para agradar seu chefe, foi a de despejar cloroquina em Manaus para tentar conter a epidemia. No auge da crise na cidade, entre 12 e 13 de janeiro, o Ministério da Saúde distribuiu 120 mil doses de hidroxicloroquina por treze unidades de saúde pública de Manaus com a recomendação de uso da droga no chamado “tratamento precoce da doença”. Essa prescrição do presidente não teve qualquer efeito na contenção da doença. Um inquérito foi aberto pelo Ministério Público do Amazonas para investigar esse uso indevido de dinheiro do Estado. A funcionária do ministério encarregada da operação foi ouvida e passou a ser chamada por alguns jornais de “capitã Cloroquina”. Mas, seguindo a lógica de Pazuello, Bolsonaro mandou, ele obedeceu; ele mandou, a moça obedeceu. Portanto, como diria Pazuello, é “simples assim”: o “Capitão Cloroquina” é quem manda; não é ela, é Bolsonaro.
Para concluir este ponto, uma pergunta: não é motivo para a CPI do Senado responsabilizar o presidente pelo dano causado? É o que se verá.
4. A INTERNACIONAL DE CIENTISTAS QUE VIGIAM O CORONAVÍRUS MUNDO AFORA
Janeiro deste ano foi o mês em que foi identificada a hoje famosa “variante de Manaus”. O nome, dado no Japão, deve-se ao fato de um mutante do novo coronavírus ter sido encontrado no país em janeiro de 2021, em pessoas infectadas vindas de Manaus. O governo japonês montou, como outros países ricos, um sistema de vigilância de saúde nas suas fronteiras especialmente atento para pessoas que venham de regiões infestadas pelo vírus. Numa dessas checagens quatro pessoas que haviam visitado a capital amazonense foram diagnosticadas com Covid-19 ao desembarcarem em Tóquio, no dia 2 de janeiro deste ano. E, oito dias depois, o Ministério da Saúde do país já tinha feito o chamado sequenciamento do genoma dos vírus portados por eles e visto que se tratava de uma variante nova, batizada então de “a variante de Manaus”.
Por coincidência, poucos dias após o anúncio feito pelos japoneses, no dia 12 de janeiro, um centro internacional criado para acompanhar a pandemia, o Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde, na sigla em inglês), que conta com pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), publicou os resultados de um estudo sobre vírus presentes em 31 amostras coletadas de pacientes infectados entre 15 e 23 de dezembro em Manaus. Do total, treze eram de uma variante nova, batizada então de P.1, a qual, foi se ver depois pelo genoma, era a mesma variante de Manaus encontrada no Japão. No Brasil, em março, essa variante já tinha andado bastante: havia se espalhado por ao menos dezessete estados e infectara populações sul-americanas e mesmo de países mais distantes.
“A alta importante nas infecções que se vê na maior parte dos países da América do Sul, sem dúvida, está sendo impulsionada também pelas novas variantes”, disse Cristóbal Cuadrado, do Colégio Médico do Chile, em matéria publicada pelo diário Valor Econômico no final de março. “A situação epidemiológica atual é fruto da rápida propagação da P.1 e da débil resposta dos países em manter as fronteiras abertas, mesmo sabendo da circulação dessas cepas”, conclui ele. A essa altura, infectados com a P.1 eram encontrados na Argentina, Bolívia, Colômbia, Paraguai e Peru.
Há uma certa caça relativamente ampla a pessoas com os vírus e seus mutantes. No início de março, autoridades britânicas identificaram uma pessoa que estava sendo procurada no Reino Unido por ter contraído a variante de Manaus. Dias antes, o serviço de saúde pública inglês informara que seis pessoas haviam sido diagnosticadas com a cepa brasileira. Ela fora detectada pela primeira vez em três pessoas na Inglaterra e em outras três na Escócia.
As variantes mais perigosas são classificadas internacionalmente em dois grupos. As de “interesse” são acompanhadas pelas autoridades de saúde por seu eventual potencial de disseminação. As de “preocupação” estão um grau acima, porque já foi possível determinar, na prática, que são efetivamente mais perigosas. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, está incluída no primeiro grupo, entre outras, a variante identificada inicialmente no Rio de Janeiro e chamada tecnicamente de P.2. No segundo, estão as variantes do Reino Unido, da África do Sul e a de Manaus, P.1.
No Brasil, tudo indica que a P.1 ou de Manaus tem grande prevalência. Monitoramento realizado pelo Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo, divulgado no final de abril, mostra que ela dominava a cena paulista, em aproximadamente 90% dos casos. Outra variante, uma das pioneiras a infectar os brasileiros, trazida provavelmente da Europa, foi constatada em fevereiro de 2020 e, oito meses depois, era responsável por 90% dos casos. Nesse intervalo, outra variante europeia, descoberta na mesma época da concorrente, chegou a ter 30%, mas nove meses mais tarde sumiu das estatísticas. Nesse momento, a variante britânica deu as caras, chegou a 10% e caiu para aproximadamente 5%. Em outubro, surgiu a do Rio de Janeiro, que alcançou 40% no início deste ano e entrou em queda contínua, quando a de Manaus apareceu. No final de 2020 tinha 30% dos casos – em abril deste ano, sua participação era de menos de 5%.
O estudo divulgado pelo Cadde neste ano foi consequência de trabalho anterior, realizado pelos mesmos pesquisadores para avaliar a situação da capital do Amazonas após o ápice de sua primeira onda de Covid-19, em 2020. Em setembro daquele ano, o Cadde tinha divulgado pesquisa com base em amostras do banco de sangue da cidade para estimar a parcela dos seus habitantes contaminada com o Sars-CoV-2 e chegado à conclusão de que, aproximadamente, dois em cada três manauaras já haviam tido contato com o vírus. Segundo a médica e imunologista Ester Sabino, professora da USP e coordenadora do projeto, tal índice indicaria a possibilidade de a cidade alcançar a chamada “imunidade de rebanho”, disse ela ao Jornal da USP na ocasião.
Na prática, a imunidade de rebanho não existia. E um estudo mais detalhado do vírus então se impôs, tendo como perspectiva a possibilidade de encontrar uma variante, um vírus com características novas, contra as quais os infectados na primeira onda não teriam defesa preparada.
5. COMO SEPARAR O CORONAVÍRUS DE SEUS MUTANTES USANDO AS 30 MIL LETRAS DO GENOMA DE WUHAN
RT-PCR, do inglês, Reverse Transcriptase-Polymerase Chain Reaction, é o teste padrão para identificar a presença do genoma do coronavírus obtido de amostras extraídas de pacientes supostamente infectados. A transcriptase é uma enzima presente em todos os organismos vivos, mas não nos vírus. Ela repara e replica: cuida da manutenção da integridade dos genomas. A transcriptase reversa transforma o código do coronavírus de RNA, que é facilmente degradado, em DNA, que é mais estável.
Os vírus são relativamente simples. Suas instruções geralmente estão numa fita única, de RNA, a sigla para ribonucleic acid, o nome em inglês. Ao transformar o RNA do vírus em DNA, a transcriptase reversa permite que sejam feitas dezenas de cópias, que são necessárias para as diversas operações, de sequenciamento e comparação do código do vírus com os de seus mutantes. Com a epidemia, disparou o número de testes RT-PCR em pessoas interessadas em saber se estavam ou não infectadas pelo vírus. Um dado do IBGE mostra que, até julho de 2020, 13,3 milhões de brasileiros tinham feito o teste, disponível na rede pública de saúde e em clínicas particulares. Como são feitos esses testes?
Segundo a bióloga Maria Carolina Sabbaga, que integra a coordenação da Rede de Alerta das Variantes da Covid-19 do Instituto Butantan, o grande centro de pesquisa e produção de imunizantes paulista, primeiro se coleta material do nariz ou região da garganta da pessoa. O material é recolhido por meio de uma espécie de cotonete, o swab. Após a coleta, o swab é colocado no interior de um pequeno tubo, que contém uma solução. O tubo é lacrado e identificado com dados do doador do material. Essas informações são colocadas num cadastro informatizado.
No interior do tubo, o material coletado se dispersa na solução líquida que envolve o swab. No laboratório, uma parte dessa solução é retirada e tratada para que todo o material genético que não interessa ao teste, ou seja, que não seja material genético da pessoa ou do vírus, seja extraído. “Proteínas e lipídios, por exemplo, são descartados”, explica Sabbaga. O restante da solução permanece armazenada por um período.
Depois disso, a primeira providência é verificar se existe de fato material genético humano. Se não houver, não tem validade: o teste é para identificar o vírus e o doador. Se existir genoma humano, o material é, então, submetido ao teste RT-PCR. “Se for somente humano, o resultado é negativo. Se for encontrado material humano e do vírus, é positivo”, diz a bióloga. Os resultados são colocados no sistema de cadastramento. Assim, os postos de saúde, nos quais o material foi coletado, informam as pessoas testadas. O sistema permite também que o Ministério da Saúde e outros órgãos acessem essas informações.
Para realizar o sequenciamento, uma primeira etapa torna a extrair da solução a parte que contém o material genético do vírus, diz Sabbaga. Para isso, é preciso preparar essa mistura de maneira que o genoma viral se destaque em relação ao humano.
Aí, então, vem o sequenciamento propriamente dito. Ele pode ser apresentado como o estudo de sequências de uma imensa lista de milhares de letras, que se referem a compostos químicos, diz o biólogo Emmanuel Dias-Neto, cientista-chefe do Laboratório de Genômica Médica do A. C. Camargo Câncer Center. Primeiro, Dias-Neto separa genomas que são feitos de DNA, como os humanos, de plantas e demais animais, dos genomas de vírus que têm genoma de DNA e também de RNA, como o do Sars-CoV-2.
As letras que representam os vírus de RNA têm a sequência ACUG, que representam os compostos adenina, citosina, uracila e guanina. Juntamente com a timina essas são as chamadas bases nitrogenadas, por possuírem nitrogênio em sua composição e que, acrescidas de um açúcar e um ácido fosfórico, formam o ácido ribonucleico (RNA) e o ácido desoxirribonucleico (DNA). A diferença entre os dois é que na base nitrogenada do DNA no lugar da uracila aparece a timina.
Como o vírus que produz a Covid-19 é de RNA são essas quatro letras, ACUG, que aparecem, repetidas milhares de vezes, mas diferentes sequências de letras que representam os compostos químicos presentes nos materiais genéticos sequenciados.
A seguir, a sequência em exame é analisada pelo setor de bioinformática, composto por profissionais com formação em biologia e informática. Como é feito esse trabalho? “Imagine que você tenha escrito um texto com 30 mil caracteres”, explica Dias-Neto. “Isso é o genoma viral. Suponhamos que alguém, por algum motivo, teve que digitar novamente esse texto e cometeu erros, trocas de letras. Como se sabe onde o erro ocorreu? Lendo o texto. As palavras digitadas erradamente têm sentido diferente do original ou não têm sentido algum.”
No sequenciamento é usado um recurso que Dias-Neto chama de “alinhamento”. “Eu uso as 30 mil letras do primeiro genoma descrito na cidade de Wuhan e procuro alinhá-lo com um pequeno trecho do genoma que eu acabo de analisar. A seguir, uso um segundo trecho, e assim por diante. Isso é feito por computador. Na verdade, quando fazemos o sequenciamento do vírus, não dá para ler as 30 mil letras de uma vez. Usamos trechos de 100, 150, 200 letras. E esses trechos vão sendo alinhados ao genoma inicial.”
De acordo com Dias-Neto, o computador é programado para mostrar o alinhamento dos trechos que têm, pelo menos, 99% de identidade com trechos do genoma original. “O 1% que fica de fora pode ser fruto de erro de sequenciamento ou pode ser um sinal de que o material sequenciado é de uma variante. No sequenciamento, cada genoma é lido e comparado milhares de vezes. À medida que, nessas leituras, determinados trechos do genoma apresentam as mesmas diferenças em relação ao genoma original, fica claro que não se trata de erro, mas de mutações. E isso significa que o vírus analisado é diferente do original.”
- OS CAMINHOS DA INFECÇÃO E DAS VACINAS E AS RELAÇÕES ENTRE AS ESPÍCULAS DOS VÍRUS E OS RECEPTORES DAS CÉLULAS
É da natureza dos vírus invadir as células para se reproduzir. Para isso, no caso do vírus da Covid-19, na sua superfície externa, esférica como se vê nas imagens que buscam representá-lo, existem como que pregos cravados, que são as espículas (em inglês, spikes), proteínas que podem ter afinidade com receptores das células, que também são proteínas.
Os receptores exercem funções essenciais para a célula humana, explica o biólogo Dias-Neto. “Existe, por exemplo, um receptor que vai jogar glicose para dentro da célula, que é utilizado como energia para a pessoa sobreviver. Tem um receptor que é usado para a ligação de um hormônio. Cada célula pode ter de dezenas a centenas de receptores. O vírus se utiliza de vários desses receptores. Ele tem que arrumar uma maneira de entrar na célula.”
O biólogo lembra que esse comportamento é explicado por Charles Darwin em sua obra clássica A Origem das Espécies, que apresenta a teoria do processo evolutivo baseado na seleção natural, que dá vantagem aos seres que obtêm, por meio das mutações, melhor adaptação ao ambiente. “Por exemplo”, continua Dias-Neto, “um vírus que encontra uma célula, e não tem afinidade com nenhum receptor daquela célula, não consegue entrar. E isso para o vírus é fim de linha, porque ele não tem a maquinaria necessária para se multiplicar. Depende da célula do hospedeiro. De dez vírus que encontram uma proteína, pode ser que somente dois, que se ligaram ao receptor, consigam entrar. Mas pode ocorrer uma mutação que faz com que dez se conectem ao receptor e todos entrem.”
Renato Santana, biólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que as mutações acontecem “absolutamente o tempo todo”, à medida que o vírus se replica. Mas elas ocorrem em proporção muito pequena em relação ao total replicado. “Digamos que cada vírus gere outros cem. A mutação ocorre, ao acaso, em apenas um vírus. Se essa mutação oferece uma vantagem, como, por exemplo, uma replicação melhor, mais veloz, ou se, com ela, o vírus vai conseguir escapar da resposta imunológica humana, essa mutação começa a ser selecionada positivamente. E o vírus mutante começa a crescer na população viral e se estabelece. Uma mutação que não traz vantagem para o vírus desaparece e nós não conseguimos detectá-la”, diz Santana.
Como resultado de mutações que tornam o vírus mais eficiente, a versão original, que no início é responsável por grande parte dos casos de contaminação, começa a ter essa participação reduzida com o surgimento de uma variante melhor adaptada e desaparece. Diz Dias-Neto: “A nova variante reina por um tempo, até que surja outra melhor adaptada ainda, que toma o seu lugar. É um processo que não tem fim ao longo do tempo.”
A spike é o principal foco das vacinas produzidas contra o Sars-CoV-2. Diferentes tecnologias utilizadas na produção de imunizantes têm em comum o estímulo à produção de anticorpos contra a proteína S, que é o nome técnico da já apresentada spike. Isso vale para as chamadas vacinas de vírus inteiros (inativados ou atenuados), como a CoronaVac, produzida pelo Butantan, para as baseadas em vetores virais, como a fabricada pela Fiocruz, e para as mais avançadas tecnologicamente, como as vacinas genéticas de RNA mensageiro ou DNA, produzidas pelas farmacêuticas Pfizer e Moderna.
As vacinas, de diferentes formas, utilizam a spike do Sars-CoV-2, encarada pelo sistema imunológico como um corpo estranho, para provocar a produção de anticorpos que agem contra a proteína pelo organismo humano. Quando vírus inteiros invadem o organismo de uma pessoa vacinada, seu sistema imunológico está preparado: “relembra” o processo de imunização desencadeado contra a spike presente na vacina e produz anticorpos. Dessa forma, impede que o vírus penetre na célula e se reproduza.
7. PESQUISA NÓS TEMOS, MAS O MUNDO, AGORA, EXIGE A VIGILÂNCIA GENÔMICA
Voltando a um ponto anterior de nossa história, o episódio sobre os trabalhos realizados pelo Ministério da Saúde do Japão e pelos cientistas do Cadde no Brasil, divulgados, por acaso, de forma quase simultânea: eles têm focos diferentes. Embora ambos se baseiem no sequenciamento genético para identificar variantes, no caso japonês isso se deu por meio do que se chama atualmente de “vigilância genômica” voltada para a “vigilância epidemiológica”, a necessidade que os países têm de se defender das epidemias, hoje especialmente, num mundo globalizado, no qual, como se viu, um vírus sai da China e em poucos meses infecta o mundo. O trabalho dos pesquisadores brasileiros era outra coisa: eles realizaram um estudo científico mais aprofundado, sem urgência. A vigilância epidemiológica precisa ser feita em “tempo real”, para que as autoridades de saúde possam agir rapidamente; a pesquisa científica tem prazo mais largo para ser concluída, porque busca aprofundar o conhecimento, visando ações futuras.
A vigilância epidemiológica é mais antiga, é uma necessidade que os povos descobriram bem antes de ver com microscópios eletrônicos os vírus e de ter identificado os ácidos nucleicos e os genomas e de se dar conta da possibilidade da “vigilância genômica”. Os passageiros e tripulantes de navios que podiam trazer a chamada “peste negra”, a peste bubônica que dizimou um terço da população da Europa na Idade Média e teve um surto no Brasil no início do século passado, tinham de ficar numa espécie de isolamento social, em “quarentena” nos navios durante quarenta dias, impedidas de desembarcar.
A vigilância genômica, uma estrutura de laboratórios, equipamentos, cientistas e técnicos, tornou-se uma necessidade dos dias de hoje, especialmente para um país como o Brasil, com a maior área de floresta tropical do planeta. E a intervenção humana desordenada, como a que vem sendo estimulada pelo governo do presidente Bolsonaro, pode levar a um desequilíbrio ecológico de grande amplitude e consequências. “A Amazônia é um potão de vírus”, disse David Lapola, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri), em entrevista à agência France Press. E, quando se gera um “desequilíbrio ecológico”, disse ele, pode acontecer um pulo dos vírus de animais para os humanos, como o que teria ocorrido dos morcegos para nossa espécie no caso do novo coronavírus.
Uma das consequências positivas de uma crise como a que vivemos agora é que ela está provocando uma maior integração entre pesquisadores de todo o mundo. O caso do projeto já citado do Cadde, diz a pesquisadora Ester Sabino, que o coordena, é um exemplo disso. Ela explica que seu projeto ajuda a resolver, em parte, o problema crucial dos recursos. O financiamento é dividido entre a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) e o Medical Research Council, do Reino Unido. “É um projeto fechado um ano antes de começar a pandemia. O mundo está procurando formas de responder mais rápido às epidemias. E cada vez responde mais rápido, desde a epidemia do ebola. A gente foi conhecer esse pessoal na epidemia de zika. Estávamos tentando nos organizar para ter respostas rápidas a possíveis novos arbovírus, o que envolve doenças como febre amarela, dengue… Aí chegou o Sars-CoV-2, um vírus respiratório, mas a gente já estava com a estrutura estabelecida.” Segundo Sabino, a proposta original de seu projeto é apresentar resultados enquanto a epidemia está acontecendo. “Na época da epidemia do zika, nossa pesquisa foi capa da Nature, em 2017, quando a epidemia já havia acabado há, pelo menos, um ano.”
“Desde o ebola, os recursos internacionais cresceram, porque se concluiu que as pesquisas não podem ser realizadas apenas nos locais onde a epidemia está ocorrendo. Isso alterou alguns conceitos aplicados anteriormente. As publicações de artigos, por exemplo, passaram a ser mais rápidas, as revistas especializadas em ciência têm acesso aberto, não é preciso pagar para ler o artigo, houve facilitação para o envio de reagentes e de materiais para ampliar os estudos, foi ampliada a criação de infraestrutura.”
- NA VIGILÂNCIA GENÔMICA, O BRASIL NÃO É O REINO UNIDO. E NEM PRECISA SER, DIZEM ALGUNS COM PROPRIEDADE
Os vírus não param de se adaptar e espalhar a pandemia, e os pesquisadores não param o esforço para identificá-los com o objetivo de prevenir formas mais graves da doença. No último dia de março, o Butantan anunciou que, por meio de sequenciamento, fora encontrada na cidade paulista de Sorocaba uma pessoa infectada com uma variante do coronavírus descoberta inicialmente na África do Sul. Pouco depois, um comunicado da UFMG informou que pesquisadores da instituição haviam descoberto uma variante nova na Região Metropolitana de Belo Horizonte. No final de abril, o Butantan informou que descobriu duas novas variantes circulando no estado: em Itapecerica da Serra, uma já descrita na Suíça e no Reino Unido; e, em Jardinópolis, uma mutação de outra mutação, da chamada P.1, uma das principais em circulação no país. Além disso, identificou, na Baixada Santista, a variante sul-africana, já encontrada em Sorocaba.
Os trabalhos realizados pelo Butantan e pelos pesquisadores da UFMG são, pode-se dizer, de vigilância genômica. No caso paulista, a história começa no início da pandemia, quando a demanda de testes RT-PCR cresceu de tal forma que o Instituto Adolfo Lutz, órgão responsável pela vigilância epidemiológica e encarregado do processamento dos testes no estado, não deu conta. Em dado momento, o governo paulista encarregou o Butantan de resolver o problema. A solução foi a estruturação de uma rede de apoio ao Adolfo Lutz, laboratórios espalhados pelo estado, para testar o material coletado na rede pública de saúde. Grande parte das instalações envolvidas nesse processo são de universidades públicas, mas também há laboratórios privados.
Em algumas semanas as amostras represadas foram testadas e hoje o trabalho segue em dia. Segundo Sabbaga, a capacidade atual do Butantan de processar os testes é de 8 mil por dia. “A partir dessa quantidade significativa, surgiu a ideia de realizar sequenciamento genético dos que apresentassem resultado positivo, por amostragem”, explica.
O sequenciamento é feito a partir do material coletado armazenado nos laboratórios da rede de apoio. Sete laboratórios realizam o sequenciamento. “Para definir quantos serão feitos, levamos em conta nossa capacidade semanal de sequenciamento e a percentagem, em relação ao total do estado, da população e de casos positivos detectados em cada uma das dezessete DRS, diretorias regionais de saúde paulistas. A partir daí, há uma espécie de sorteio para escolher as amostras a serem sequenciadas.”
Uma vez realizado o sequenciamento, o resultado é depositado no servidor do Butantan, batizado de Vital, e analisado pela área de bioinformática, encarregada de identificar as variantes das amostras.
Por enquanto só existe uma rede de vigilância genômica nacional, a do Ministério da Saúde. “Quando identificamos a variante sul-africana em Sorocaba, nós comunicamos a vigilância epidemiológica da cidade e uma equipe foi enviada à casa da pessoa infectada para saber se havia viajado ou entrado em contato com alguém que tivesse viajado”, diz Sabbaga.
Em Belo Horizonte, o trabalho dos pesquisadores do Laboratório de Biologia Integrativa (LBI) do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, e do Grupo Pardini, uma das maiores empresas privadas de medicina diagnóstica do país, que identificaram uma possível variante em circulação na capital mineira e em cidades vizinhas, também partiu de amostras, escolhidas aleatoriamente, de material recolhido de pessoas que testaram positivo para o vírus. Foram sequenciados 85 genomas de Sars-CoV-2 e identificados “dois novos genomas com um conjunto de dezoito mutações desconhecidas, o que caracteriza possível nova cepa do Sars-CoV-2”, informa o comunicado da UFMG de 7 de abril.
Com trabalhos desse tipo em vários pontos do país, estão sendo criadas redes genômicas nacionais. O governo federal também tenta fazer sua parte. “Desde o início da pandemia nós fazemos parte da Rede Corona-ômica, de vigilância da Covid-19 no Brasil. Ela é suportada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação [MCTI]”, explica o biólogo e professor Renato Santana, um dos coordenadores do trabalho realizado pelo LBI. Referindo-se às 85 amostras analisadas, ele diz: “A vigilância genômica que a gente faz é uma amostragem aleatória do que está circulando, para verificar se estão surgindo novas variantes. É um número que representa a população testada. Isso aumenta a chance de identificar uma nova variante, mesmo com a frequência baixa de sequenciamento.”
Alessandro Ferreira, farmacêutico, bioquímico, vice-presidente do Grupo Pardini, que atua junto com a equipe de Santana, afirma que o objetivo do trabalho que resultou na descoberta anunciada no dia 7 de abril foi fazer uma investigação genômica para descobrir a incidência das P.1 e P.2, nome das principais cepas em circulação no país e da britânica na população de Belo Horizonte. “Encontramos uma grande prevalência da cepa P.1, 40% das amostras. E o sequenciamento, realizado pela UFMG, identificou dois genomas novos, com um conjunto de dezoito mutações que ainda não haviam sido descritas, mas que estão nas mesmas regiões do vírus da P.1 e da britânica.”
A Corona-ômica citada por Santana é uma das oito sub-redes da Rede Vírus, organizada pelo MCTI em março do ano passado. De acordo com o ministério, ela cuida de “monitoramento e sequenciamento do genoma do vírus circulante no país, permitindo que medidas possam ser tomadas em tempo hábil”. Entre seus objetivos está “identificar mutações associadas à virulência e até mesmo potenciais alvos terapêuticos”.
“Alguns afiliados da rede são apoiados pela Finep”, explica o virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale, do Rio Grande do Sul, coordenador da Corona-ômica. Isso significa que estão atrelados a projetos de financiamento, que têm prazo limitado. “Com esses recursos, abastecemos de insumos os laboratórios e custeamos bolsas de pós-doutorado. Isso atende os laboratórios com insumos e recursos humanos. No total, são doze laboratórios. Vários são de universidades. Há ainda o Laboratório Nacional de Computação Científica, no Rio de Janeiro.” Segundo Spilki, esse é o núcleo embrionário da Corona-ômica nacional, que conta com a adesão de outros grupos de pesquisadores e mesmo, diz ele, de “laboratórios privados, grandes conglomerados que fazem sequenciamento, alguns até terceirizados pelo próprio SUS”.
Os sequenciamentos produzidos pela Corona-ômica são, de acordo com Spilki, depositados no Gisaid, um banco de dados sediado na Alemanha, que recebe sequenciamentos do mundo inteiro, que foi criado para receber genomas dos vírus da influenza e agora ampliou seu objetivo.
O Ministério da Saúde também tem sua rede de vigilância genômica. Dela fazem parte, segundo Adriano Abbud, do Adolfo Lutz, laboratórios da Fundação Oswaldo Cruz e do Instituto Evandro Chagas, do Pará, que são federais, e de instituições estaduais, como o próprio Lutz, o Laboratório Central de Saúde Pública Professor Gonçalo Moniz, da Bahia, e o da Fundação Ezequiel Dias, de Minas Gerais. Os quatro estaduais fazem parte da rede Laboratórios Centrais de Saúde Pública dos Estados (Lacen). Essa rede recolhe amostras do país inteiro para sequenciar. Por solicitação de piauí, o Ministério da Saúde informou que, “desde fevereiro de 2020, são realizados uma média de 360 sequenciamentos por mês, totalizando cerca de 5.800 sequenciamentos desde o início da pandemia”.
Tudo isso é bem recente e as iniciativas contam com recursos limitados. A rede do Butantan é de março deste ano. A incorporação da Rede Genômica Fiocruz à do Ministério da Saúde ocorreu em fevereiro. A Rede Vírus foi criada por decreto em março do ano passado, mas, segundo Spilki, a sub-rede que ele coordena somente passou a receber recursos para custear os projetos em novembro passado.
De acordo com Abbud, biólogo especializado em saúde pública, que ocupa o cargo de diretor do Centro de Respostas Rápidas do Adolfo Lutz, no final de abril o país tinha, desde o início da pandemia, mais de 6 mil sequenciamentos do Sars-CoV-2 depositados no Gisaid, dos quais 1.800 eram do ano passado. Apesar de a participação brasileira ter crescido, nos números da Gisaid ela representa muito pouco do total de casos no país: 0,03% desse total no início de fevereiro, segundo a Folha de S.Paulo. Em contraste, o Reino Unido tinha 5% dos casos sequenciados.
Para Abbud, do Adolfo Lutz, a comparação é despropositada. A diferença de qualquer país para o Reino Unido é brutal. É preciso olhar o quadro mais amplo, diz ele. “O Brasil nunca sequenciou tanto e de maneira tão bem feita. No Mercosul sequenciou três vezes mais que o segundo colocado. Na América Latina somente o México está um pouco à frente.”
Abbud lembra ainda a questão crucial: “Se a gente sequenciar tanto quanto o Reino Unido, vai deixar de fazer o quê? Vai abrir mão de leitos hospitalares?” Ele lembra, com propriedade, que os recursos que o Ministério da Saúde utiliza vêm da mesma fonte que paga os leitos hospitalares da rede pública, o SUS.
9. A TÍTULO DE CONCLUSÃO, A COMPARAÇÃO DE BOLSONARO COM BIDEN
O mundo vive uma situação dramática, em que as mutações do Sars-CoV-2 geraram centenas de variantes, algumas delas extremamente perigosas, como a P.1. Diante do comportamento natural do vírus, resta contrapor as armas disponíveis hoje: o distanciamento social e as medidas higiênicas para evitar a contaminação e, assim, dificultar a circulação do Sars-CoV-2. As vacinas são outra arma a ser utilizada nesse combate, mas é evidente que, diante da escassez global dos imunizantes, levará tempo para que seu poder efetivo se realize.
Combinar as regras de higiene e distanciamento social com a vacinação surte efeito, como se pode ver pelo exemplo dos Estados Unidos. O país ainda é o com maior número de casos – mais de 33,7 milhões – e com maior número de óbitos – acima de 600 mil. Mas, desde a posse do presidente Joe Biden, em 20 de janeiro, a situação vem se alterando de forma evidente. Biden, ao contrário de seu antecessor, Donald Trump, apoia as medidas restritivas de circulação e a vacinação – em seus primeiros cem dias na Casa Branca, o país aplicou 200 milhões de doses. No final de junho, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), cerca de 65% dos americanos com mais de 18 anos já haviam recebido ao menos uma dose da vacina. O órgão orientou que pessoas totalmente imunizadas poderiam deixar de usar máscara em boa parte dos ambientes fechados, medida considerada arriscada por alguns especialistas. De qualquer forma, o país vive um quadro bem diferente daquele existente na época de convívio de Trump com a pandemia.
O que acontece nos Estados Unidos não ocorre no Brasil. Por aqui, um discípulo de Trump, o presidente Jair Bolsonaro, segue na Presidência. Apesar de o Ministério da Saúde ter alterado sua atuação desde a saída de Pazuello, acelerando a aquisição de vacinas e apoiando campanhas de medidas de prevenção à doença, o próprio presidente – acuado pela instalação da CPI da Covid no Senado – parece cada vez mais empenhado em seguir o que de pior o dirigente americano fez: atacar a China e não respeitar as regras de distanciamento e higiene. Além disso, volta e meia reafirma que não tomará qualquer vacina.
Esse posicionamento, além de influir no comportamento de parcela razoável da população brasileira, prejudica a própria imunização: em meados de maio, os dois fabricantes nacionais de vacinas, o Instituto Butantan e a Fiocruz, enfrentavam sérias dificuldades para continuar o fornecimento das vacinas, ante a falta dos insumos básicos para produzi-las, importados da China. Parecia claro que as frequentes declarações antichinesas de Bolsonaro e de membros de seu governo criaram uma situação diplomática tensa entre os dois países, o que influenciou no fornecimento da matéria-prima das vacinas.
Além disso, durante a CPI da Covid, ficou evidente, a partir de depoimento de dirigente da farmacêutica Pfizer, que o governo de Bolsonaro mostrou descaso na aquisição das vacinas produzidas por esse laboratório. As negociações se iniciaram em meados do ano passado e, até dezembro, ao menos cinco ofertas de doses de vacinas foram apresentadas, algumas das quais foram completamente ignoradas. Carlos Murillo, gerente-geral da empresa na América Latina, disse que, se o contrato tivesse sido assinado em agosto do ano passado, o Brasil teria disponíveis 18,5 milhões de doses da vacina até o segundo trimestre deste ano. Desse total, 4,5 milhões já teriam sido entregues, entre o final do ano passado e março deste ano, dos quais 1,5 milhão em dezembro.
O Ministério da Saúde só assinou um acordo com a farmacêutica em março, adquirindo 100 milhões de doses, dos quais 14 milhões devem ser entregues neste mês de junho, e os 86 milhões restantes, no terceiro trimestre. Até meados de maio, haviam sido entregues 2,2 milhões de doses – ou seja, metade do que seria possível caso tivesse sido aceita a oferta inicial.