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questões cinematográficas

Os Papéis de Aspern – apelo de Henry James contra a bisbilhotice

Diretor e roteirista não sairiam ilesos de um tribunal que julgasse atentados à obra alheia

Eduardo Escorel | 05 jun 2019_08h07
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Deveria haver sirenes de alerta, como as que existem em áreas de risco geológico no Rio de Janeiro, para avisar espectadores desatentos do perigo que correrão se assistirem a certos filmes. Caso existissem, estariam soando desde 23 de maio, quando Os Papéis de Aspern, adaptação da novela de Henry James, estreou no Rio de Janeiro e em Niterói. Apesar da falta de interesse predominante no que o circuito exibidor tem oferecido ultimamente, há algumas alternativas melhores para ver do que essa produção britânica e alemã.

Também deveria existir um tribunal, em Haia, por exemplo, que julgasse atentados à obra alheia. O diretor e os roteiristas da adaptação de Os Papéis de Aspern não escapariam ilesos se fossem submetidos a um julgamento desses. O fato de ser o primeiro filme dirigido por Julien Landais, cujo currículo inclui alguns trabalhos como ator, além da direção de comerciais de moda e videoclipes, não serviria de atenuante. Como é notório, e comentamos em coluna recente, há estreias que são obras-primas.

Finalmente, seria de grande serventia se houvesse uma instância de avaliação internacional para atores em papéis principais. E, em casos de condenação, os produtores fossem obrigados a se valer dos recursos digitais disponíveis para apagar o canastrão e substituí-lo por outro ator à altura do restante do elenco. Dessa maneira, o espectador de Os Papéis de Aspern teria sido poupado de assistir a Jonathan Rhys Meyers no papel do caçador de relíquias literárias Morton Vint, também narrador do filme, em atuação constrangedora, oposta em tudo às de Vanessa Redgrave, como Juliana Bordereau, e em especial a de sua filha Joely Richardson, como Miss Tina, as guardiãs das relíquias literárias do falecido poeta romântico Jeffrey Aspern, objetos de desejo de Vint.

Como nenhuma dessas três medidas cautelares dá sinais de que poderá vir a existir, só nos resta esperar que os críticos de cinema em geral, e os da grande imprensa diária em especial, assumam seu papel cívico e cumpram o dever de sinalizar com clareza sempre que catástrofes como Os Papéis de Aspern estiverem se aproximando.

O malfeito de Landais e seus corroteiristas – inclusive Jean Pavans tradutor francês da obra de James –, vai de encontro à premissa da obra original publicada em 1888. Desconsidera a sutileza do texto literário e faz, ainda por cima, adendos abusivos, supostamente eróticos ao texto (há três edições brasileiras de Os Papéis de Aspern, duas de 1984. Uma, na coleção “Armazém do Tempo” da Global, em tradução de Maria Luiza Penna; outra, pela pequena editora Interior, de Além Paraíba, em tradução de Álvaro A. Antunes. A terceira é de 2015, pela editora Penalux com tradução de Chico Lopes).

Cidadão britânico nascido nos Estados Unidos, o autor e as duas atrizes inglesas mereciam tratamento melhor do que o oferecido pelo filme que estreou no 130º aniversário de publicação de Os Papéis de Aspern, em 2018, em sessão especial no Festival de Veneza na qual Vanessa Redgrave foi premiada com o Leão de Ouro pelo conjunto de sua carreira, o chamado Golden Lion for Lifetime Achievement Award.

Ao descrever seu processo criativo e mencionar a lenda que ao ser  ouvida em Florença “suscitou uma chama” e serviu de inspiração para Os Papéis de Aspern, James escreve: “nove décimos do interesse do artista é pelo que acrescentará [aos ‘fatos’] e como os irá revirar”. A lenda “de certo modo manteve seu interesse, mas tornou-se ao meu ouvido uma grosseria trivial, ou ao menos meio vaga e obscura”. Os “fatos”, ele diz, “felizmente afastaram-se de mim, […], a tempo de não me esmagar. Foi, então, para todos os efeitos, que minha imaginação preservou poder suficiente para reagir sob efeito do mero encanto fundamental – o encanto, quero dizer, de uma cena final do rico drama obscuro de Shelley, encenado no próprio teatro da nossa ‘modernidade’. Essa foi a beleza que me atraiu. Tinha havido, por assim dizer, um prosseguimento avante do homem real, o divino poeta” [o romântico inglês Percy Bysshe Shelley, 1792-1822].

James explica que “o aspecto italiano da lenda manteve-se; talvez apenas porque as condições possíveis da vida da minha Juliana na Itália de outros tempos podiam tornar concebível a sua privacidade afortunada, a longa situação nunca invadida e jamais entrevista na qual eu represento que a circunstância dela se baseia. Sim, até há um quarto de século atrás [meados do século XIX] ainda era concebível uma Juliana inexplorada, não narrada [unparagraphed] – tanto quanto qualquer tesouro enterrado, ou qualquer túmulo não profanado seria improvável agora. E o caso tinha ainda o ar do passado na medida precisa em que esse ar, eu confesso, mais me atrai – quando a região sobre a qual ele paira é suficientemente distante sem ser longe demais.” (Henry James, Literary Criticism, 1984. Tradução por minha conta e risco.)

Para o crítico Philip Rahv (1908-1973), cofundador da Partisan Review, que circulou de 1934 a 2003, o tema implícito de Os Papéis de Aspern pode ser considerado “o caráter social e moral ambíguo do artista”. Para Rahv, “essa leitura da história é sugerida pela posição do inquilino de Juliana –  o ‘editor patife’ como ela o chama – uma posição apenas a um passo de distância daquela em que se encontra o artista. O inquilino tem toda a arrogância e curiosidade implacável do artista; e como esse último ele não pode justificar de forma concebível seu comportamento a não ser com base no ‘direito’ algo ambíguo do artista de tornar público o que é intrinsecamente privado. Assim, o enredo de Os Papéis de Aspern pode ser visto como simbólico do perigo perpétuo e da trama da arte, cujos praticantes sempre correram o risco de aniquilação moral ao desencavarem e ‘publicarem’ aqueles segredos que por medo, orgulho, delicadeza ou vergonha ‘pessoas decentes’ estão decididas a guardar para si mesmas”. (The Great Short Novels of Henry James, Philip Rahv, ed., 1944.)

Em seu primeiro filme, Landais passa ao largo dessas questões, ou melhor, ele as contraria. Demonstra de modo insofismável não estar à altura do desafio de transpor para o cinema tudo que está subjacente ao comportamento do “editor patife” e é apenas sugerido por James. O falecido poeta romântico “escapa à nossa compreensão na página impressa”, escreveu Anthony Lane na New Yorker, “protegido pelo desejo perene do autor [James] de nos manter adivinhando, enquanto Landais adere ao princípio segundo o qual, se você tem um poeta o melhor a fazer é colocá-lo em exposição”.

“Na era do hacker”, segundo Lane, “e dos confins de um drama de época, [Redgrave] emite um magnífico apelo em favor da vida privada, e uma refutação à nossa inconcebível demanda: nos deixe bisbilhotar.” Apelo que, eu diria, é mais de James do que de Redgrave.

Para Lane, finalmente, os flashbacks da vida erótica do jovem Aspern, cuja “intenção é pôr fogo na tela, exalam o inconfundível aroma de um comercial de perfume, e aguardei ansioso uma narração, em tom de barítono dramático, para completar a cena: ‘Poesia. A nova fragrância. De Aspern. Sinta o aroma do passado.’” Pano rápido.

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