De segunda a sexta, expediente das 8 às 19 horas, com 2 horas de almoço. Aos sábados, jornada das 8 às 12 horas. Durante pouco mais de quatro anos, essa era a rotina de trabalho da dentista Natalia Maestrello no Grupo Odonto Marilia Eireli, uma clínica no interior paulista. Apesar de bater ponto diariamente, Maestrello não recebia hora extra, 13º salário ou FGTS. Também não havia férias, apenas um recesso não remunerado de quinze dias no fim do ano.
Maestrello não tinha carteira assinada e sequer emitia notas fiscais para receber o pagamento. O salário (que variava entre 3 mil e 6 mil reais mensais, a depender da quantidade de atendimentos realizados) era pago diretamente na conta pessoa física da dentista. Quando foi demitida, em julho de 2020, não recebeu um só centavo como verba indenizatória. Depois do desligamento, ela entrou com uma ação trabalhista para pedir reconhecimento de vínculo empregatício e cerca de 200 mil reais em indenização.
No processo, o Grupo Odonto Marilia Eireli argumentou que ela trabalhava de forma autônoma, sem que houvesse jornada de trabalho definida, ou subordinação a um superior. Segundo a tese apresentada, Maestrello era apenas uma prestadora de serviço e, portanto, não havia obrigação de pagar os encargos trabalhistas reclamados na ação.
A Justiça do Trabalho entendeu que se tratava de um caso clássico de fraude na CLT. No dia 30 de novembro de 2022, o juiz Alexandre Garcia Muller, da 1ª Vara do Trabalho de Marília, reconheceu vínculo de emprego entre Maestrello e a clínica odontológica, que foi condenada.
Maestrello, no entanto, nunca viu a cor do dinheiro.
Nove meses depois da sentença na primeira instância, o Supremo Tribunal Federal anulou a decisão do Tribunal Regional do Trabalho. O Grupo Odonto Marilia Eireli, antes mesmo de levar o caso para a segunda instância, entrou com uma Reclamação Constitucional na Corte, alegando que o TRT desrespeitou uma jurisprudência aberta pelo STF que autoriza a terceirização de funcionários. O ministro Gilmar Mendes, em decisão monocrática, afirmou o seguinte: “Destaco que essa Corte já se manifestou no sentido de inexistir qualquer irregularidade na contratação de profissionais por meio de pessoas jurídicas ou sob a forma autônoma, a chamada ‘pejotização’ para prestar serviços inerentes à atividade-fim da contratante, concluindo, assim, pela licitude da ‘terceirização’ por ‘pejotização’.”
Ana Carolina Ferreira, advogada que representa a dentista, diz que entrou com um recurso e ainda trabalha para tentar reverter a decisão. Mas Natalia Maestrello já não nutre muita esperança por um desfecho positivo. “Tenho tentado nem pensar muito no processo para não ter uma frustração maior.”, diz.
A divergência entre o STF e tribunais do trabalho remonta a, pelo menos, 2017, ano em que a Reforma Trabalhista foi aprovada, sob a presidência de Michel Temer. A nova legislação autorizou que empresas terceirizem a atividade-fim, que é a principal atividade da empresa (em um hospital, por exemplo, os médicos e enfermeiros são funcionários responsáveis pela atividade-fim). Até a aprovação da lei, a súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho proibia esse modelo de contratação. Apenas funcionários da atividade-meio (o setor da limpeza do hospital, nesse exemplo) poderiam ser terceirizados.
A terceirização é a contratação de um funcionário a partir de uma terceira empresa. Funciona assim: a “empresa A” contrata serviços oferecidos pela “empresa B”, que envia um profissional contratado por ela para realizar o trabalho. O serviço prestado pode ou não ser contínuo. Dessa forma, a primeira empresa economiza custos de encargos trabalhistas, que ficam sob responsabilidade da empresa contratada.
Aqueles que criticam as decisões do STF apontam que a corte está usando as brechas para a tercerização para abrir caminho para algo não autorizado, a pejotização. O funcionário é forçado a se cadastrar como microempreendedor individual (MEI), o menor modelo de empresa disponível no país atualmente e com baixo faturamento, para emitir nota fiscal e receber o salário como se fosse uma pessoa jurídica (um PJ, daí o termo “pejotização”) e, dessa forma, fica sem garantias da CLT, como férias remuneradas e FGTS.
No formato clássico da terceirização, o trabalhador, ao menos, tem direitos trabalhistas assegurados, que são pagos pela empresa terceira.
Beatriz Castelo, advogada trabalhista e membro da Comissão do Trabalho da OAB de São Paulo, diz que a CLT define o papel de um empregado e diferencia a terceirização legítima do que é irregular: “Empregado é todo aquele que trabalha pessoalmente, mediante remuneração, de forma continuada e com subordinação. Pessoalmente significa que você não pode mandar uma outra pessoa no seu lugar. Se for um trabalho com esses quatro elementos, o contrato feito com a pessoa jurídica é inválido, porque, na realidade, o que se deu foi um contrato de emprego.”
Empresas processadas na esfera trabalhista têm se aproveitado das modificações na Reforma Trabalhista e da jurisprudência aberta pelo STF, e estão entrando com Reclamações Constitucionais no STF para reverter sentenças da Justiça do Trabalho. O expediente tem funcionado.
De janeiro a agosto do ano passado, pelo menos 841 Reclamações Constitucionais sobre o tema da “pejotização” e terceirização foram julgadas pelo STF. Do total, 546 foram consideradas procedentes. Isso significa que em 65% dos casos, o Supremo, em decisões monocráticas, reverteu sentenças inicialmente favoráveis ao trabalhador. Os números fazem parte de um estudo feito por pesquisadoras da Fundação Getulio Vargas, que analisa a atuação do STF em ações trabalhistas.
Uma das responsáveis pela pesquisa, a professora da FGV Olívia Pasqualeto, explica que as decisões da Corte estão ancoradas, principalmente, em dois entendimentos proferidos pelo próprio STF, que são complementares à Reforma Trabalhista: a ADPF 324 [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, um instrumento previsto no artigo 102 da Constituição e regulamentada pela Lei nº 9.882/1999, usado para questionar decisões de órgãos públicos que, em tese, violam preceitos constitucionais] e o Tema 725, relacionados à terceirização da atividade-fim.
A ADPF 324 é uma ação de 2014 (mas que foi julgada em 2018, após a Reforma Trabalhista) movida pela Associação Brasileira do Agronegócio, que questionava a súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que proibia a terceirização da atividade-fim. Já o Tema 725 foi originado a partir de um Recurso Extraordinário movido pela Cenibra (de 2016, mas julgado em 2018), empresa japonesa de celulose, para questionar uma decisão da Justiça do Trabalho. Ainda que tenham origens diferentes, a demanda das duas entidades era a mesma: reconhecer a legalidade da terceirização da atividade-fim. Nos dois casos, julgados após a promulgação da Reforma, em 2017, houve aval à terceirização irrestrita e o precedente foi aberto.
Tanto a Reforma Trabalhista quanto os dois julgamentos em questão, porém, regularizaram a terceirização da atividade-fim, não a “pejotização”. “O STF criou um precedente a partir de um caso concreto, que é o julgamento sobre a terceirização da atividade-fim. Mas esse tema tem servido de precedente para outras formas variadas de contratação, não necessariamente irregulares, mas formas de contratação que não são terceirização nem da atividade-fim nem da atividade-meio”, explica Pasqualeto.
A pesquisa feita por Olívia Pasqualeto, Ana Laura Barbosa e Laura Fiorotto destrincha julgamentos sobre Reclamações Constitucionais de diferentes setores econômicos, como advogados contratados no modelo de associação, expediente que pode ser usado, na visão delas, para burlar a CLT, já que o escritório contratante fica desobrigado de pagar direitos trabalhistas. Quarenta empresas invocaram a ADPF 324 para questionar decisões de tribunais do trabalho que reconheciam vínculo de emprego. Deu certo em trinta casos. Outras 27 invocaram o Tema 725. Funcionou em vinte casos.
Ana Laura Barbosa, professora de direito da ESPM e que também participou do estudo, diz que há um vácuo jurídico sobre o assunto: “Nos parece que o Tribunal não se debruçou sobre o tema da ‘pejotização’. Não há, no STF, uma discussão sobre como identificar uma fraude, por exemplo. É como se o Tribunal estivesse aplicando um precedente que nunca existiu.”
Nem mesmo dentro da Corte há consenso. O ministro Edson Fachin, por exemplo, ao julgar a Reclamação Constitucional 57917, originada a partir de um processo trabalhista de um médico que pedia reconhecimento de vínculo junto ao hospital em que trabalhava, afirmou que a ADPF 324 não poderia ser invocada para avaliar um caso de “pejotização”: “A decisão pelo reconhecimento do vínculo da obreira diretamente com a contratante (…) não se deu com fundamento na ilegalidade da terceirização da atividade-meio ou fim da contratante (…). Tal situação não foi objeto de debate quando do julgamento da ADFP 324”, diz o ministro em sua decisão.
“De maneira geral, os ministros tinham um posicionamento muito parecido, no sentido de validar toda e qualquer forma de terceirização. Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Barroso, por exemplo, vão nessa linha. O ministro que mais se destacou no sentido de uma posição mais protetiva aos trabalhadores foi o ministro Fachin. O Fux também teve um posicionamento mais nesse sentido durante o período que analisamos”, avalia Pasqualeto, da FGV.
A piauí procurou os ministros do Supremo. Por meio de sua assessoria, Barroso disse que não vai comentar. Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes não responderam aos contatos da reportagem.
Castelo, da OAB, afirma que “para a doutrina e para os operadores do direito do trabalho, ‘pejotização’ é sinônimo de fraude à legislação trabalhista. Seria a contratação daquele que deveria ser empregado através de uma pessoa jurídica. Não se confunde, portanto, com terceirização, que é autorizada pela lei”. Neste sentido, avalia a advogada, há uma interpretação equivocada no Supremo. “Alguns ministros, no entanto, vêm utilizando indevidamente a expressão ‘terceirização por pejotização’, afrontando a gramática do direito do trabalho.”
Fixado na grade de entrada do Fórum Trabalhista Ruy Barbosa, na Barra Funda, Zona Oeste de São Paulo, há um cartaz que diz: “Mobilização nacional em defesa da competência da Justiça do Trabalho.” O movimento, que começou no fim do ano passado, é uma reação de entidades jurídicas às decisões do STF no âmbito trabalhista.
No dia 13 de novembro de 2023, 67 entidades – OABs regionais, sindicatos, universidades e associações de advogados – assinaram uma carta em defesa da Justiça do Trabalho. O documento dizia que o artigo 114 da Constituição atribuiu à Justiça do Trabalho a competência para julgar conflitos decorrentes das relações de trabalho. E concluiu com uma mensagem à Corte. “Não cabe ao STF, como órgão de cúpula do Poder Judiciário, a revisão de fatos e provas, quando os processos já foram regularmente instruídos e julgados pelos órgãos da justiça especializada, no exercício de suas atribuições constitucionais.”